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Davos, a Montanha Mágica

24 jan 2020 - 16h01
(atualizado em 27/1/2020 às 16h16)
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“Este mundo novo, social, este mundo unificado da organização e planificação, no qual a humanidade se sentirá liberada de todos os sofrimentos desumanos e desnecessários que ofendem a razão mesma, este mundo virá.... Virá porque uma ordem externa e racional... terminará por ser criada (...) com o fim de que o autenticamente espiritual possa viver de novo e possa fazê-lo de boa consciência.

Thomas Mann – “Goethe, representante da época burguesa”

Thomas Mann.
Thomas Mann.
Foto: Reprodução

Martin Heidegger, tido como o gênio da filosofia alemã, era um homem comum. Parecia, agia e vestia-se como um qualquer. Gostava de fazer suas sensacionais conferências em trajes da sua terra natal, a Suábia. Por vezes, até com o seu abrigo de caminhar e esquiar. Era intencional. O pensamento dele desprendera-se dos macro-sistemas de Kant ou de Hegel, ligando-se às questões da existência, as coisas mais corriqueiras que afligem os homens: a angústia, o tédio, o medo, a morte, o ser e o ser-aqui (dasein). De certo modo, ainda que envolvida numa linguagem cabalística, carregada de expressões obscuras que nem seus discípulos mais próximos entendiam bem, a filosofia de Heidegger era a expressão da Völkishphilosophie a filosofia populista, uma inteligentíssima leitura do cotidiano construída ao redor do comezinho e centrada no ser-no-mundo. Um pensamento que teve a audácia de se erguer na Alemanha na esteira da derrota na Guerra de 1914-18, em desafio aos grandes monólitos da metafísica ocidental, abalados e um tanto desacreditados.

O primeiro embate público entre o existencialismo e a metafísica deu-se em 1929, no seminário filosófico de Davos, na Suíça. De um lado, frente a um público eletrizado, apresentou-se Heidegger, então com 40 anos, a mais brilhante cabeça da Alemanha daquela época, um ex-católico, um rude camponês de cabelos pretos que bramia o cajado contra o estabelecido, exigindo trazer o pensamento para o chão.

Do outro, na mesma mesa, estava Ernst Cassirer, com 55 anos, um pensador neokantiano, descendente do patriciado judaico-alemão, refinado e culto, aureolado com uma cabeleira branca, que ali estava para defender o patrimônio racionalista germânico do ataque que lhe movia a gente da Floresta Negra, propondo-se exatamente “extirpar a angústia daquilo que é terreno”.

 No final do embate, para a maioria, pareceu que era Heidegger quem representava os novos tempos. O racionalismo humanista recuara.

Mal se passaram três anos após o sensacional torneio intelectual de Davos, com a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha em 1933, Cassirer embarcava para um longo exílio, enquanto Heidegger, apoiado pelos nazistas, assumia a reitoria da Universidade de Freiburg, de onde tentou alçar-se a ser o führer da filosofia alemã. O debate entre Heidegger e Cassirer, de certo modo, retomou e ao mesmo tempo deu seguimento à desavença entre Settembrini e Naphta, dois dos personagens mais importantes do romance de Thomas Mann, “A montanha mágica” (Zauberberg), publicado uns poucos anos antes, em 1924.

Davos, sede do Fórum Econômico Mundial.
Davos, sede do Fórum Econômico Mundial.
Foto: Reprodução

Nele, o italiano Settembrini apresentou-se a Hans Castrop, o personagem central (um jovem vindo de Hamburgo atacado pela tuberculose que estava a tratar-se num sanatório em Davos), como um humanista defensor do livre-pensar, enquanto que o seu rival  Naphta,  um ex-jesuíta sombrio, dogmático, era a encarnação viva da Contra-Reforma, do anticientificismo e da censura.

Nos sete anos que o jovem Castrop passou (entre 1907-1914) no Sanatório Internacional de Berghof de Davos, em meio às suas caminhadas pelas paragens alpinas aspirando-lhe o ar de champanhe, foi assediado pela argumentação lógica, sedutora e veemente de Settembrini e Naphta. Naquela montanha mágica parecia voar ao redor dele, sussurrando-lhe como se fossem fantasmas, os espíritos cultos de tempos remotos cujos ecos se misturavam com os do aqui e agora.

A razão e o mistério, a esperança e o ceticismo, o liberalismo e o autoritarismo, a liberdade e a prostração, duelaram para seduzir o rapaz tísico, símbolo da burguesia europeia fragilizada, na tentativa de fisgar a alma daquele pobre Fausto moderno. Hans Castrop refeito, atabalhoado com que escutou naqueles cimos olímpicos, desce por fim à planície para ir meter-se na guerra de 1914, travada em toda a Europa, perdendo-se na névoa e na fumaça da pólvora. É bem possível que a criação de um espaço para as grandes fortunas e administradores da riqueza tenha surgido em oposição à ONU, dominada por uma pauta esquerdista e terceiro-mundista, que nada tinha a oferecer aos “Grandes”. A missão coube a Klaus Martin Schwab, um milionário suíço.

Inspirados num destes momentos em que a realidade imita a ficção, os encontros de Davos, retomados em 1971 por uma fundação, procuram desde então recriar O Fórum das Fortunas naquele cenário de confrontos de idéias que Thomas Mann detalhou a exaustão nas 800 páginas do seu livro, e que Heidegger e Cassirer travaram in corpore em 1929. O que podemos esperar das incontáveis propostas de Davos é que neste século que ora adentra, serenadas as paixões ideológicas que devastaram o século XX, não nos percamos na neblina como parece ter sido o que aconteceu com o jovem Castrop.

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Fonte: Especial para Terra
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