Davos, a Montanha Mágica
“Este mundo novo, social, este mundo unificado da organização e planificação, no qual a humanidade se sentirá liberada de todos os sofrimentos desumanos e desnecessários que ofendem a razão mesma, este mundo virá.... Virá porque uma ordem externa e racional... terminará por ser criada (...) com o fim de que o autenticamente espiritual possa viver de novo e possa fazê-lo de boa consciência.
Thomas Mann – “Goethe, representante da época burguesa”
Martin Heidegger, tido como o gênio da filosofia alemã, era um homem comum. Parecia, agia e vestia-se como um qualquer. Gostava de fazer suas sensacionais conferências em trajes da sua terra natal, a Suábia. Por vezes, até com o seu abrigo de caminhar e esquiar. Era intencional. O pensamento dele desprendera-se dos macro-sistemas de Kant ou de Hegel, ligando-se às questões da existência, as coisas mais corriqueiras que afligem os homens: a angústia, o tédio, o medo, a morte, o ser e o ser-aqui (dasein). De certo modo, ainda que envolvida numa linguagem cabalística, carregada de expressões obscuras que nem seus discípulos mais próximos entendiam bem, a filosofia de Heidegger era a expressão da Völkishphilosophie a filosofia populista, uma inteligentíssima leitura do cotidiano construída ao redor do comezinho e centrada no ser-no-mundo. Um pensamento que teve a audácia de se erguer na Alemanha na esteira da derrota na Guerra de 1914-18, em desafio aos grandes monólitos da metafísica ocidental, abalados e um tanto desacreditados.
O primeiro embate público entre o existencialismo e a metafísica deu-se em 1929, no seminário filosófico de Davos, na Suíça. De um lado, frente a um público eletrizado, apresentou-se Heidegger, então com 40 anos, a mais brilhante cabeça da Alemanha daquela época, um ex-católico, um rude camponês de cabelos pretos que bramia o cajado contra o estabelecido, exigindo trazer o pensamento para o chão.
Do outro, na mesma mesa, estava Ernst Cassirer, com 55 anos, um pensador neokantiano, descendente do patriciado judaico-alemão, refinado e culto, aureolado com uma cabeleira branca, que ali estava para defender o patrimônio racionalista germânico do ataque que lhe movia a gente da Floresta Negra, propondo-se exatamente “extirpar a angústia daquilo que é terreno”.
No final do embate, para a maioria, pareceu que era Heidegger quem representava os novos tempos. O racionalismo humanista recuara.
Mal se passaram três anos após o sensacional torneio intelectual de Davos, com a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha em 1933, Cassirer embarcava para um longo exílio, enquanto Heidegger, apoiado pelos nazistas, assumia a reitoria da Universidade de Freiburg, de onde tentou alçar-se a ser o führer da filosofia alemã. O debate entre Heidegger e Cassirer, de certo modo, retomou e ao mesmo tempo deu seguimento à desavença entre Settembrini e Naphta, dois dos personagens mais importantes do romance de Thomas Mann, “A montanha mágica” (Zauberberg), publicado uns poucos anos antes, em 1924.
Nele, o italiano Settembrini apresentou-se a Hans Castrop, o personagem central (um jovem vindo de Hamburgo atacado pela tuberculose que estava a tratar-se num sanatório em Davos), como um humanista defensor do livre-pensar, enquanto que o seu rival Naphta, um ex-jesuíta sombrio, dogmático, era a encarnação viva da Contra-Reforma, do anticientificismo e da censura.
Nos sete anos que o jovem Castrop passou (entre 1907-1914) no Sanatório Internacional de Berghof de Davos, em meio às suas caminhadas pelas paragens alpinas aspirando-lhe o ar de champanhe, foi assediado pela argumentação lógica, sedutora e veemente de Settembrini e Naphta. Naquela montanha mágica parecia voar ao redor dele, sussurrando-lhe como se fossem fantasmas, os espíritos cultos de tempos remotos cujos ecos se misturavam com os do aqui e agora.
A razão e o mistério, a esperança e o ceticismo, o liberalismo e o autoritarismo, a liberdade e a prostração, duelaram para seduzir o rapaz tísico, símbolo da burguesia europeia fragilizada, na tentativa de fisgar a alma daquele pobre Fausto moderno. Hans Castrop refeito, atabalhoado com que escutou naqueles cimos olímpicos, desce por fim à planície para ir meter-se na guerra de 1914, travada em toda a Europa, perdendo-se na névoa e na fumaça da pólvora. É bem possível que a criação de um espaço para as grandes fortunas e administradores da riqueza tenha surgido em oposição à ONU, dominada por uma pauta esquerdista e terceiro-mundista, que nada tinha a oferecer aos “Grandes”. A missão coube a Klaus Martin Schwab, um milionário suíço.
Inspirados num destes momentos em que a realidade imita a ficção, os encontros de Davos, retomados em 1971 por uma fundação, procuram desde então recriar O Fórum das Fortunas naquele cenário de confrontos de idéias que Thomas Mann detalhou a exaustão nas 800 páginas do seu livro, e que Heidegger e Cassirer travaram in corpore em 1929. O que podemos esperar das incontáveis propostas de Davos é que neste século que ora adentra, serenadas as paixões ideológicas que devastaram o século XX, não nos percamos na neblina como parece ter sido o que aconteceu com o jovem Castrop.