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A luta pelos direitos civis de Lincoln a Martin Luther King

5 abr 2018 - 13h26
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“...o gradual desenvolvimento da igualdade é uma realidade providencial. Dessa realidade tem ele as principais características: é universal, é durável, foge dia a dia à interferência humana; todos os acontecimentos assim como todos os homens servem ao seu desenvolvimento. Seria prudente imaginar um movimento social de tão remotas origens pudesse ser detido por uma geração? Pode-se conceber que, após ter destruído o sistema feudal  e vencido os reis, irá agora a democracia recuar ante a burguesia e a  classe rica? Agora que se tornou tão forte, e tão frágeis os seus adversários, deter-se-á ainda?”

Alexis de Tocqueville - A Democracia na América, 1835

Abraham Lincoln (1809 - 1865), o 16º presidente dos Estados Unidos e Martin Luther King Jr (1929 - 1968), o defensor dos direitos civis americano em 1964.
Abraham Lincoln (1809 - 1865), o 16º presidente dos Estados Unidos e Martin Luther King Jr (1929 - 1968), o defensor dos direitos civis americano em 1964.
Foto: Hulton Archive e Reg Lancaster/Express / Getty Images

Após quase meio século de silencioso descontentamento, na década dos 50 os negros norte-americanos voltaram a reagir contra a situação de inferioridade e exclusão que as leis dos brancos os condenaram. Ergueram-se contra a discriminação e a segregação racial que sofriam no seu país. Por todos estados do Sul dos Estados Unidos imperavam ainda velhas leis racistas que tornaram-nos párias sociais, ou um meio-cidadão. Se Convocam-nos para servir no exército e lutar nas guerras,  mas  impediam-nos de votar e de freqüentar uma escola pública com os demais brancos. Negavam-lhes  hospedagem nos hotéis  e nem em  lanchonetes eram atendido.

Foi este estado de coisas chocante que foi questionado pelo Civil Reigths Movement, o Movimento pelos Direitos Civis ,  que tomou corpo então. Como pano de fundo, alimentando a contestação,  estava o processo de emancipação do Terceiro Mundo,  quando os povos de cor da Ásia e da África  iniciaram a luta pela descolonização. Eles  não aceitavam mais o estatuto colonial em que estavam submetidos, subjugados pelos colonizadores europeus. Houve, portanto, uma mútua influência entre o processo de Descolonização do Terceiro Mundo e a retomada do Movimento dos Direitos Civis dos negros norte-americanos. Mas estes, os americanos,  achavam-se na retaguarda, o que levou o escritor James Baldwin a dizer que parecia mais fácil “a África inteira conseguir a sua liberdade antes de nós conseguimos tomar sequer uma xícara de café”, num bar dos brancos. (*) atribui-se a demora pelo ressurgimento desse movimento ao clima de Guerra Fria criado no após-guerra e ao macartismo (1946-1954), que facilmente poderia acusar os defensores dos direitos civis como “comunistas”.

Das grandes personalidades que emergiram nesse duplo movimento de emancipação, africano e americano,  nenhuma  atingiu a universalidade e a popularidade do reverendo Martin Luther King, Jr., Prêmio Nobel da Paz de 1964, e que terminou por ser assassinado em 4 de abril de 1968, em Memphis, a capital do estado racista do Alabama.

O dr. King ainda teve a felicidade de presenciar  a assinatura do Civil Reights Act, a Lei dos Diretos Civis, sancionada pelo Presidente Lyndon B. Johnson em agosto de 1964,  tornando ilegal e inconstitucional a segregação e a discriminação racial em todos os estados da união norte-americana.

Lincoln e a abolição

“Eu , em casa, não tive proteção, nem descanso fora dela...Fui um excluído da sociedade na minha infância e um exilado na terra onde nasci. Eu sou um estranho lá e um errante como foram os meus pais.”

Frederick Douglas (ex-escravo e líder negro abolicionista) - “Life and Times of Frederick Douglass”, 1845

Alexis de Tocqueville o  historiador liberal observou, em sua visita aos Estados Unidos em 1831, que o grande problema futuro da América era o  negro. Sentiu que o pais inteiro se dividia sobre a questão da escravidão. No Sul achavam-na natural, uma “peculiar instituição” como os escravagistas a chamavam. No Norte, crescia a opinião de que ela era abominável e moralmente insustentável num país cristão.             Durante quase um século,  Norte e Sul contemporizaram a seu respeito. A divergência aumentou conforme as terras do Oeste passaram a ser ocupadas. Para os nortistas,  defensores do Movimento Free Soil, “Terra Livre”,  deveria-se liberá-las, as novas  terras,  apenas para os homens livres afim de colonizá-las. Aos sulistas isso soava como um impedimento à expansão dos seus interesses, todos eles ligados a perpetuação e expansão da escravidão. Em suma, os Estados Unidos, como disse o Presidente Abraão Lincoln num célebre discurso,  “era uma casa dividida, meio livre meio escrava”.

A Guerra de Secessão de 1861-65, foi travada para superar o trágico e doloroso impasse em que a nação se encontrava. Descontentes com a eleição de Abraão Lincol, um candidato abolicionista, os estados do Sul determinaram formar uma Confederação e separar-se da União.

Alexis de Tocqueville observou, trinta anos antes da guerra civil, que na verdade o maior interesse pela abolição partia dos próprios brancos que viam naquela instituição um empecilho à conquista do pais. Se ( a escravidão), escreveu ele,  era “cruel para o escravo era funesta para o senhor”. O que foi reiterado por Lincoln , em 1862, quando dirigiu-se ao Congresso pleiteando pela liberdade dos negros dizendo que aquilo “asseguraria a liberdade aos livres”.

Em 1º de janeiro de 1863, o Presidente Lincoln anunciou a Proclamação da Emancipação assegurando a liberdade dos escravos que viviam em estados rebeldes. (* Num encontro reservado  com lideranças negras,  Lincoln propôs aos libertados que retornassem à África, porque não acreditava que algum dia os brancos aceitassem a igualdade racial. Prevendo muito sofrimento de parte dos ex-escravos prometeu auxiliá-los na viagem de volta. Os lideres não aceitaram. Desde 1619 vivendo na América, nem saberiam onde desembarcar na África  Eles eram americanos, nada mais tinham a haver com o continente negro.)

Lincoln, no mais conhecido dos seus discursos - The Gettysburg Adress (leia a seguir) - de 19 de novembro de 1863, colocou o que estava em jogo. Não se tratava  de que os nortistas deviam ou não lutar pela manutenção da União ou se os sulistas tinham direito constitucional de formar uma confederação. A questão era outra. Era possível existir  um governo baseado na igualdade de todos os cidadãos?  Sobreviveria a democracia?   

Pela 13ª Emenda, aprovada em dezembro de 1865, a servidão foi varrida do país. Em 1875, dez anos depois da sua morte - Lincoln foi assassinado por um sulista - aprovou-se uma Declaração de Direitos  que impedia a discriminação. Esta conquista deu-se em parte pelo próprio engajamento dos negros na guerra. Por pressão de Frederick Douglass, um ex-escravo, notável militante abolicionista e primeiro assessor negro da presidência americana, Lincoln concordou em convocá-los.  Começando pelo 54º de Voluntários de Massachusettes, 166 regimentos negros formaram-se ao longo do conflito, alistando 178.975 homens, dos quais 68 mil morreram. Depois da grande matança tudo indicava que o ex-escravo seria gradualmente assimilado à sociedade norte-americana, tornando-se um cidadão como os demais.

Lincoln aclamado por multidão abolicionista
Lincoln aclamado por multidão abolicionista
Foto: Reprodução

O Discurso de Gettysburg, 19 de novembro de 1863

“Há oitenta e sete anos nossos antepassados implantaram sobre este continente uma nova nação, concebida em liberdade, e dedicada à idéia de que todos os homens são iguais.  Presentemente estamos envolvidos numa grande guerra civil testando assim o poder de resistência dessa nação, ou de qualquer outra concebida sobre aquele princípio. Encontramo-nos agora num grande campo de batalha dessa guerra. Viemos até aqui para dedicar uma porção de tal campo como um lugar de repouso eterno para aqueles que aqui deram suas vidas a fim de que a nação pudesse viver. E é conveniente e apropriado que nós prestemos juntos essa homenagem.

Mas, num sentido mais amplo , nós não podemos dedicar-lhes, não podemos consagrar - nem santificar - este sítio. Os homens bravos, vivos ou mortos, que lutaram aqui, já o consagraram, muito mais do que o nosso poder de acrescentar algo ou diminui-lo. O mundo deverá registrar bem pouco, e nem de longe recordar o que dissemos aqui, mas ele nunca poderá esquecer o que aqueles homens fizeram (*). É para nós os que continuam vivos, que temos diante de nós uma obra inacabada pela qual eles se bateram e tão nobremente adiantaram, que melhor caberia tal dedicatória. Sim, é para nós que estamos aqui dedicados a grande tarefa que se nos defronta - que isso se endereça mais do que a esses mortos honrados dos quais retiraremos a devoção ampliada àquela causa pela qual eles esgotaram a última reserva de dedicação - tarefa essa que aqui devemos assumir para que esses mortos não tenham morrido em vão, e para que essa nação, sob a autoridade de Deus, deva renascer em liberdade, e a fim de que o governo do povo, pelo povo e para o povo não pereça na terra.”

Fonte: Richard B. Morris - Documentos básicos da História dos Estados Unidos, Ed. Fundo de Cultura, RJ., 1964.

(*) a previsão de Lincoln não se confirmou. Hoje bem poucos sabem o que foi ou o que representou a batalha de Gettysburg, mas suas palavras se encontram na maior parte dos livros de história do nosso século.

A reconstrução e a segregação

“Violaram , para com o negro, todos os direitos de humanidade, e depois lhe ensinaram a inviolabilidade dos direitos.”

Alexis de Tocqueville - A democracia na América, 1835

O chamado período da Reconstrução , the Radical Reconstruction, de 1865-1877 ,  tentou aplicar medidas que integrassem os antigos servos na sociedade sulistas.  O Sul reagiu. Em 1865 mesmo, grupos clandestinos de brancos, criaram as sociedades secretas terroristas dos Cavaleiros da Camélia Branca e a da Ku Klux Klan, a mais conhecida e duradoura,  voltadas para atemorizarem os freeman, os libertados,  e impedir a igualdade. Também proliferam no Sul os códigos negros, blacks codes, leis estaduais que retiram dos ex-escravos, ao lhes vedarem a propriedade da terras, qualquer possibilidade de tornarem-se cidadãos. A última esperança dos negros de contarem com o apoio da União se esvaiu quando deu-se o Acordo Hayes ( Hayes agreemennt).

Em 26 de fevereiro de 1877, o candidato a  presidente, o  nortista Rutherford Hayes teve que, por razões eleitorais,  pedir sustentação aos antigos donos do sul para  confirmar-se no poder. Em troca comprometeu-se a retirar as tropas federais do sul e a não intervir em seus assuntos internos. Foi o sinal para a grande contra-ofensiva racista. Estado por estado multiplicaram-se as leis discriminatórias. Em 1883 a Suprema Corte lhes fez um favor ainda maior. Assegurou que nada podia fazer quando a discriminação era feita por particulares, tornando os Direitos Civis de 1875  em letra morta.

Há pouco menos de vinte anos após a Guerra Civil, a maioria dos negros apenas transitara da situação da escravidão para a de párias. O projeto de Thaddeus Stevens, o arquiteto do programa Radical de Reconstrução,  que visava desmantelar os latifúndios sulistas e dividi-lo em lotes de  “40 acres de terra e uma mula”, nunca foi implementado. Sem terras e sem salários, num Sul empobrecido pela derrota na guerra, os ex-escravos voltaram a cair na dependência dos seus antigos senhores. Grande parte deles tornou-se meeiro nas lavouras onde antes eram escravos. Podiam pelo menos casar e constituir famílias, bem como formarem congregações religiosas separadas. As igrejas protestantes do sul, particularmente as batistas,  tornaram-se, nos longos e difíceis anos que se seguiram, os centros da comunidade negra e seu oásis espiritual. Por isso foram os alvos preferencias do terrorismo da Ku Klux Klan que as incendiavam em ataques noturnos.

Dois integrantes da Klan
Dois integrantes da Klan
Foto: Reprodução

Além das dificuldades econômicas decorrentes de uma região recém saída da guerra,  a mais violenta da história do Novo Mundo, os negros tiveram outros impedimentos. Alexis de Tocqueville já observara que eles eram tratados com uma certa benignidade e até compaixão quando eram escravos, mas “ o preconceito que repele os negros parece crescer à proporção que os negros deixam de ser escravos, e a desigualdade grava-se nos costumes à medida que se apagam das leis”. Se escapavam dos grilhões da escravidão caiam presos nas algemas do preconceito. Os brancos, mesmo no Norte, nunca os consideraram iguais.

Esta situação agravou-se com a ascensão no mundo de então com as teses da superioridade racial do homem branco afirmadas pela ciência. A partir das teorias darwinistas -  sua difusão deu-se nas décadas de 1860-70 -, com a vulgarização dos conceitos   da “seleção das espécies” e da “vitória do mais apto”, discriminou-se  os negros  por alegações cientificas. Eles não haviam sido escravizados por uma maldição bíblica, por serem os amaldiçoados filhos de Cam, como diziam os teólogos escravistas,  mas porque eram biológicamente inferiores. Logo, qualquer tentativa de equipará-los aos brancos era um atentado anti-científico, uma profanação à vontade de Deus. Assim explica-se que quando o presidente Hayes os abandonou nas mãos dos oligarcas e da ralé pobre sulista, os protestos dos nortistas foram frouxos. Proliferaram então as Leis Jim Crow (*) pelas quais  criaram-se impedimentos artificiais aos negros para que eles não  votarem nos estados do Sul.

(*) Jim Crow foi um desses apelidos pejorativos, difundido por uma canção cômica de 1832,  aplicados a qualquer negro nos Estados Unidos de então. Um equivalente ao nosso Zé Ninguém. Sua tradução mais aproximada seria as Leis do Zé Ninguém! Em alguns estados os negros eram submetidos a um exame sobre a constituição, em outros exigiam que seus antepassados já tivessem votado uma vez, o que era impossível por eles terem sido escravos. 

Estimulado pelo ódio ao negro e o receio dele como homem livre, um imenso muro - o Muro da Segregação - começou a ser construído pelo racismo. Tijolo a tijolo, lei a lei, o muro cresceu. Até nos abrigos de surdos-mudos e cegos, brancos e negros foram separados. Na Carolina, eles não podiam “olhar juntos da mesma janela”. Em Atlanta, na Geórgia, existiam bíblias para negros e outras para os brancos quando eles fossem convocados para testemunhar num tribunal.

Assim os três pilares constitucionais - as 14ª e 15º Emendas e a Declaração dos Direitos de 1875 -  que garantiam os seus direitos foram invalidados pelos governantes racistas dos estados do Sul.

Mas a mais terrível marca desse período foi o linchamento. Para impedir que os negros sequer ousassem reclamar dos seus direitos, eles foram submetidos pelos brancos a uma coação brutal, a um estado de sitio permanente, a  ameaça de serem trucidados. O linchamento tornou-se uma espécie de “tribunal popular” da ralé sulista, que julgava, condenava e massacrava a vítima.  Por qualquer motivo, tanto em cidades grandes  como em remotos lugarejos, eles eram perseguidos por bandos de brancos sanguinários  e mortos pelas mais pavorosas formas; do enforcamento à fogueira, não sem antes supliciaram-nos a socos e  pauladas. Ora a justificativa era de que um deles não “tivera respeito” para com um caipira branco ou de que “lançara olhares lúbricos para uma branca”, crime considerado hediondo pelos racistas.

Preservar a pureza delas - a White Womanhood -  de um possível “contagio” era uma obsessão dos racistas. Esta fobia é que explica que, a partir de 1910,  mais de 30 estados americanos proibissem o casamento interracial.  Desvairo que só irá se repetir na Alemanha nazista durante os anos trinta e na África do Sul durante o apartheid .

A segregação finalmente foi legitimada por uma outra decisão da Suprema Corte. Em 1896, no caso Plessy x Ferguson, os juizes aceitaram que  apartar-se as raças era legal desde que respeitassem  o principio “ separate but equal”, separados mas iguais. As estradas de ferro dali por diante podiam abrir vagões  só para brancos e outros só para os negros, “desde que fossem iguais”, sem que isto ofendesse a constituição. Em pouco tempo, como num jorro,  os avisos e placas “only for white”, ou “only for blacks”, ou simplesmente “white” e “colored”,  espalharam-se pelos restaurantes,  hotéis, lanchonetes, teatros e demais lugares públicos, inclusive bebedouros. 

O compromisso de Atlanta

“Não é razoável para qualquer comunidade esperar que ela permita que o negro seja linchado ou queimado no inverno, e então recorra ao trabalho do negro na colheita do algodão no verão.”

Booker T. Washignton, 1895

1895 foi um ano simbólico. No momento em que morria a mais expressiva liderança  negra, o orador Frederick Douglass, o principal responsável pelo resgate da dignidade negra no século 19, um outro líder  propunha um pacto de submissão ao branco. Naquele mesmo ano, em setembro,  na exposição estadual do algodão em Atlanta, capital da Geórgia, Booker T. Washington, um emérito educador do Alabama , conclamou  a que os negros abdicassem de lutar pela  igualdade social e pelo acesso a uma educação superior. Que se conformassem em ser lavradores e artesãos, em trilhar uma “educação industriosa”. As ideias de igualdade para ele não passavam the extremest folly, de loucura!

Em troca desta renúncia, pediu Booker aos brancos que contratassem os negros. Que os empregadores “cast down your bucker”,  lançassem seus baldes no estuário onde se encontravam, dispostos ao trabalho,  oito milhões de negros americanos....”o mais paciente, fiel, obediente a lei, e submisso povo que o mundo já viu...” De nada adiantou. Se os brancos se encantaram com a oratória de capitulação de Booker T. Washigton - no chamado de o Compromisso de Atlanta - isto não mudou-lhes os sentimentos. Ao contrário. A filosofia de submissão de Booker estimulou os racistas a cometeram atrocidades ainda maiores, enquanto os esperados benefícios econômicos daquele postura se frustraram.

Vivendo na América, Claude McKay um poeta jamaicano horrorizado pela seqüência de linchamentos durante o chamado Red Summer, o  Verão Vermelho   de 1919,  deixou-nos sua indignação nos versos:                

“Se devemos morrer que não seja igual aos porcos,

caçados e encurralados em lugares sórdidos,

onde nos ronda o latido de cães loucos e famintos,

caçoando do nossa maldita sorte

Se nós temos que morrer

que nos deixem ter uma morte digna”

O Movimento pelos Direitos Civis

“Se não há luta, não há progresso (...) Esta luta pode ser moral ou física: ou pode ser ambas, moral e física: mas tem que ser uma luta. O poder nada concede sem uma demanda. Ele nunca o fez nem o fará. Pode-se não receber por tudo aquilo que se pagou nesse mundo: mas , certamente, pagou-se por tudo aquilo que se recebeu.”

Frederick Douglas, 1882

Cem anos depois da 14ª Emenda ter sido aprovada dando cidadania aos negros, em Montgomery, Alabama, uma  costureira negra chamada Rosa Parks,  tomada de um impulso, negou-se, num ônibus,  a sair do lugar assinalado aos brancos.. A policia a levou presa acusada de “desordem” por infringir as leis segregacionistas locais. Era o dia 1º  de dezembro de 1955. Imediatamente ativistas dos direitos civis trataram de organizar um boicote contra os serviços de transporte urbano da cidade. Escolherem o reverendo Martin Luther King Jr. para liderá-los.

Rosa Parks (foto ao centro dela sendo presa) morreu em 2005 aos 92 anos. Ela mudou a história em 1° de dezembro de 1955, quando se recusou a deixar seu assento em um ônibus urbano para um passageiro branco. Sua prisão por isso provocou um boicote de 381 dias do sistema de ônibus de Montgomery.
Rosa Parks (foto ao centro dela sendo presa) morreu em 2005 aos 92 anos. Ela mudou a história em 1° de dezembro de 1955, quando se recusou a deixar seu assento em um ônibus urbano para um passageiro branco. Sua prisão por isso provocou um boicote de 381 dias do sistema de ônibus de Montgomery.
Foto: Justin Sullivan / Getty Images

O dr. King era então um jovem pastor de 25 anos, filho de uma tradicional família de religiosos, graduado no Seminário Teológico Crozer, Filadélfia, e com Ph.D. na Universidade. de Boston. Desde cedo atraiu-se pelo movimento da não-violência de Gandhi na Índia. Mesmo que lhe dinamitassem  sua casa  o dr. King não deixou de comandar o boicote até que treze meses depois, um tribunal federal revogou a lei segregacionista. Com o sucesso do bus boycott, ele tornou-se uma personalidade nacional. Virou uma celebridade.

Como observou Lerone Bennett, Jr., King “transferiu a luta dos tribunais  para as ruas, das bibliotecas de direito para os púlpitos das igrejas, da mente para a alma”. Sim, porque até então a luta anti-segregacionista era travada nas cortes de justiça onde os advogados militantes da NAAC ( National  association for the advencement of colored people, fundada em 1909) procuravam constranger os juizes, demonstrando a contradição entre as leis isonômicas da democracia americana e a realidade da discriminação racial. 

Capitalizando as energias despertadas pelo fim da segregação, ainda que  em uma só das cidades, ele fundou a SCLC ( The Southern Christian Leadership Conference) que passou a ser a base de suas operações em todo o Sul. Tornou-se um peregrino da causa dos direitos civis, um Freedom fighting, um combatente da liberdade, realizando a difícil tarefa de transformar os princípios sócio-teológicos do cristianismo - inspirado por sua leitura do livro de Walter Raschenbush “The Social Principles of Jesus” - , em realidade. Procurou atrair para ela, para a sua grande causa, graças a sua extraordinária capacidade de “dramatizar a verdade”, outros lideres religiosos afim de evitar que o movimento , em algum momento, resvalasse para a violência. Depois de uma viagem à Índia, em 1959,  onde foi recebido por Nehru, retornou ainda mais convencido de que a não-violência era o melhor caminho que os oprimidos tinham a trilhar na sua luta pela liberdade.

Uma nova e vigorosa liderança negra nascia para romper definitivamente com o Compromisso de Atlanta. De nada serviu a abdicação da luta pela igualdade social nem seguir apenas a “educação industriosa”  recomendada por Booker T. Washington. No anos 60 , eles compunham 10,5% da população, quase 22 milhões de negros, mas o número de pobres e marginalizados entre eles era superior a qualquer outra comunidade étnica americana.

A maioria das boas universidades continuavam fechadas a eles pois não tinham dinheiro nem os pré-requisitos para frequentá-las. Suas escolas eram pobres com professores desestimulados pelos baixos salários. Ao tentarem, no Sul,  ingressar nos colégios de 2º grau , foi preciso mobilizar-se tropas federais, como ocorreu em Little Rock, no Arkansas, em 1957. O mesmo repetindo-se com James Meredith ao pleitear estudar na Universidade do Mississippi (*).

(*) neste incidente foram convocadas, por ordem do governo de Eisenhower,  as tropas da Divisão 101º aerotransportada para assegurar o direito de 9 adolescentess negros de terem acesso à escola pública de 2º grau. Kennedy igualmente recorreu à forças federais para apoiar James Meredith.

as cidades amontoavam-se em guetos, como o célebre Harlem de Nova York, cercados pela violência, as drogas o  álcool  e o banditismo. Nos campos do sul,  onde muitos ainda estavam, moravam em choupanas drab and miserable, tristes e miseráveis,  ocupando terras improdutivas, sem crédito e sem assistência técnica. Condenavam-se a ter empregos inferiores, rejeitados pelos brancos, mal-remunerados e desprotegidos, o que levava-os a reproduzir uma vida medíocre e desesperançada.. Isto tudo era mais doloroso porque viviam no pais mais rico e  próspero do mundo. Apesar dos notáveis avanços de muitos deles, a maioria estava ali, à margem, vagando como almas penadas. limitando-se, como disse Lerome Bennett Jr., to sing, to pray, to cry,  “a cantar, a rezar  e a chorar”! 

Poucos espaços a sociedade branca lhes reservara. Mas nos que sobraram eles brilharam. A partir da grande migração negra para o Norte, fugindo dos linchamentos e da homicida segregação dos racistas do Sul, a música negra começou a ganhar o coração dos americanos. Primeiro foi o ragtime, em seguida foi o jazz e suas inúmeras variações. Kansas City, Chicago e depois Nova York , tornaram-se os grandes centros de difusão da música negra americana que , a partir dos anos vinte, iniciou a conquista do mundo. Os negros confiavam que seus grandes artistas, extremamente dotados de sensibilidade,  pudessem enternecer a dura alma do branco. A cantora de blues Billie Holiday, morta em 1959, talvez tenha sido a principal porta-voz, ainda que inconsciente,  desta esperança.      

Mais adiante de Lincoln

“...a semente do dragão da escravidão, abolida há cem anos atrás, continuará germinando no solo sulista se nós não a arrancarmos  com mão forte.” 

John F. Kennedy, 1963

As táticas das lideranças negras mudaram. Não era mais uma elite de advogados  educados que buscava a igualdade sensibilizando os juizes. Formou-se nos anos 60  um movimento de massas. Jovens negros não suportavam mais a passividade dos seus pais e ancestrais. Milhares deles participaram dos sit-ins, - o primeiro ocorreu em Greensboro, na Carolina do Norte, em 1º de fevereiro de 1960 -   protestos não-violentos em lancherias, restaurantes e outros lugares públicos, onde reclamaram serem atendidos como qualquer outro cidadão americano.

A eles se somaram os Freedom Riders, os  Cavaleiros da Liberdade, jovens negros e brancos, intelectuais, artistas e religiosos,  que partiam do Norte em caravanas em direção ao Sul, para pressionar as autoridades locais a pôr fim na segregação. O Sul reagiu com violência. Governadores, prefeitos e xerifes empregaram  o aparato policial contra os militantes dos direitos civis (*).

(*) A oposição ao movimento do dr. Martin Luther King não partia apenas dos racistas. Jovens extremistas do Black Power, o poder negro, consideravam-no muito moderado, enquanto os Black Muslims, os muçulmanos negros, que pregavam uma total separação de raças, acreditavam-no um conciliador para com os brancos.    

Para chamar a atenção do pais  para o que ocorria lá, o dr. King apelou para que seu povo e os simpatizantes brancos marchassem juntos à Washington D.C. para  uma grande manifestação à favor da imediata aprovação pelo Congresso de uma nova lei dos Direitos Civis. O Presidente John Kennedy, empossado em janeiro de 1961,  tentara fazê-la passar  mas a coalizão entre os racistas do Sul e os conservadores do Norte o impediu.

No dia 23 de agosto de 1963,  uma multidão calculada em 250 mil pessoas juntou-se em frente ao Memorial de Lincoln na capital do país. Ali, à  sombra da estátua do  libertador dos escravos, o dr. King falou ao entardecer. Compôs, de improviso, uma das mais extraordinárias orações da língua inglesa. Um salmo político que se tornou um libelo universal à favor da igualdade racial  e da liberdade.

Eu tenho um sonho!

Eu tenho um sonho no qual um dia esta nação se erguerá e viverá o verdadeiro principio do seu credo: Nós acreditamos que esta verdade é auto-evidente, de que todos os homens são criados iguais. 

Eu tenho um sonho de algum dia nas colinas vermelhas da Geórgica os filhos dos escravos e os filhos dos senhores de escravos se sentarão juntos na mesa da fraternidade. Esta é a nossa esperança. É com esta fé que eu retorno ao Sul.

Com esta fé nos estaremos prontos a trabalhar juntos, a rezar  juntos, a lutar juntos, a irmos para a cadeia juntos, a nos erguermos juntos pela liberdade, sabendo que seremos livres algum dia.

Este será o dia quando os filhos de Deus estarão prontos a cantar com um novo significado: Meus país...doce terra da liberdade, para ti eu canto. Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos Peregrinos, de qualquer lado da montanha, deixe tocar o sino da liberdade.

E se a América será uma grande nação um dia isto também será verdadeiro.

Assim deixe tocar o sino da liberdade!

Quando nos deixarmos o sino da liberdade tocar, quando o deixarmos tocar em qualquer vilarejo ou aldeola, de qualquer estado, de qualquer cidade, nós estaremos prontos para nos erguer neste dia, quando todos os filhos de Deus, brancos ou negros, judeus ou gentios, protestantes ou católicos, estaremos prontos para nos dar as mãos e cantar as palavras de um velho spiritual negro:

Por fim livres! Por fim livres! Graças senhor Todo-Poderoso, estamos livres enfim.

Martin Luther King, 23 de agosto de 1963 (Lincoln Memorial, Washington D.C.)

Conclusões

"A verdade nos fará livres

verdade nos fará livres

a verdade nos fará livre um dia

Oh, eu creio do fundo do coração?

que nós vencermos um dia..”

We shall overcom, tida como a Marselhesa negra

Da mesma forma que o assassinato do Presidente Abraão Lincoln, em 15 de abril de 1865, acelerou a aprovação  da emenda redentora, a  dramática morte a tiros do Presidente John F. Kennedy, em 22 novembro de 1963, em Dallas, Texas, tornou impossível a rejeição  da nova Lei dos Direitos Civis. Foi seu sucessor, o Presidente Lyndon B. Johnson, um sulista, quem a sancionou em 2 de julho de 1964, sete meses após da tragédia de Dallas.

Nos seus principais artigos ela  determinou que fossem removidos quaisquer impedimentos erguidos contra minorias em seus direitos de votar. Baniu a segregação nos lugares públicos e dessegregou as escolas públicas, os sindicatos e os locais de emprego , bem como impedindo qualquer discriminação no acesso aos recursos dos fundos da assistência federal.

Abriu-se o caminho para um grande projeto de integração racial. O próprio Presidente Johnson lançou as bases da chamada Grande Sociedade ( The Great Society),  que pretendia abolir com a pobreza no país. Parte do plano foi levado em frente, ainda que prejudicado pelo enorme desgaste do envolvimento do seu governo na Guerra do Vietnã. As verbas para a educação e assistência aumentaram e, mais tarde,  tiveram seguimento com a ação afirmativa ( affirmative-action) que procurou atender os desejos de educação superior e emprego por parte dos jovens negros.

Martin Luther King Jr. sabia que era um homem marcado para morrer. Os racistas jamais iriam perdoá-lo. Mas ainda teve cinco anos pela frente onde saboreou vitórias parciais  do “Nonviolence”. Foi assassinado, por um atirador solitário,  em 4 de abril de 1968 em Memphys, no estado racista do Mississippi.

Sua morte contribuiu  para que a sociedade americana tomasse em suas mãos a decisão de enfrentar com mais rigor e medidas práticas  a tragédia do racismo. Manter os negros segregados revelou-se não só uma desumanidade mas um fator permanente de insegurança - a seqüência dos motins raciais na década dos anos 60 foi devastadora - e de desgaste da imagem do país - símbolo da democracia - perante o mundo. Provocada a América reagiu.

Hoje ostenta uma poderosa classe média negra auto-confiante  que não mais aceita que se divulgue pela mídia em geral e pelo cinema,  imagens pejorativas dos negros. Se graves problemas de marginalidade e violência ainda cercam boa parte da população afro-americana, é visível a emergência de bolsões de prosperidade. Ainda que o racismo sobreviva é fator significativo que a maioria da opinião publica norte-americana o encare como uma perversão cultural a ser  superada. O muro da segregação, tal como o  muro ideológico que até a pouco separava Ocidente do Oriente,  começou, pedra por pedra,  a ser desmontado.

Evolução demográfica dos EUA (1790-1960)

Data População total Negros Percentual (%)
1790 3.929.214 757.208 19,3
1820 9.638.453  1.771.653 18,4
1860 31.443.750 4.441.830 14,1
1890 62.947.714 7.488.676 11,9
1920 105.710.620 10.463.131 9,9
1960 179.323.175 18.871.831 10,5

Fonte: Lerome Bennett Jr., Before Mayflower, a history of negro in America: 1619-1964

Bibliografia

Adams, Willi Paul (cop.) - Los Estados Unidos de América. Editora Siglo XXI, Historia Universal Siglo XXI, México, 1979.

Bennett, Jr., Lerone - Before the Mayflower: A History of the Negro in America, 1619-1964. Penguin Books, Baltimore, Maryland, 1966

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Branch, Taylor – Pillar of fire: America in the King years, 1963-65. Simon & Schuster, N.York, 1998

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Lincoln, C. Eric - Martin Luther King Jr., a profile. Hill and Wang, Nova Iorque, 1970

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Morris, Richard B. - Documentos básicos da História dos Estados Unidos. Editora Fundo de Cultura, RJ, 1964

Segal, Charles M. (comp.) - Conversations with Lincoln. G.P. Putnam’s Sons, Nova Iorque, 1961

Thomas, Benjamin - Abraham Lincoln. Alfred A. Knopf, Nova Iorque, 1957

Fonte: Especial para Terra
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