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Ambulatório de Identidade de Gênero pede reincorporação de apostila recolhida por Doria

Coordenador de centro pioneiro no Brasil encaminhou mensagem com pedido à Secretaria da Educação, que disse ver abordagem inadequada em material distribuído a adolescentes. 'Realidade não pode ser apagada ou deixada de lado', diz especialista

9 set 2019 - 07h10
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SÃO PAULO - O Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, solicitou em carta a reincorporação à rede escolar da apostila recolhida por ordem do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que disse ver "apologia à ideologia de gênero" no material. Para o coordenador do ambulatório, que atende, diagnostica e acompanha crianças, adolescentes e adultos com questões de identidade de gênero, essa "realidade não pode nem deve ser apagada ou deixada de lado".

Na semana passada, a Secretaria da Educação da Educação recolheu, após determinação de Doria, o material didático de Ciências para adolescentes de 13 anos que tratava de diversidade sexual e explicava termos como identidade de gênero e transgênero. O governador disse ter visto um "erro inaceitável" na apostila. "Não concordamos nem aceitamos apologia à ideologia de gênero", escreveu Doria em uma rede social.

O psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do ambulatório, discorda que haja erros no material: "O texto fala de conceitos científicos, não incentiva comportamentos. Se a escola não prepara os alunos para lidar com a diversidade, isso vai levar a um sofrimento muito maior", disse ao Estado.

Na carta endereçada a uma diretora de departamento da secretaria, Saadeh disse que "se usar termos de uso científico e corrente é fazer 'apologia da ideologia de gênero', algo está muito errado na interpretação do texto divulgado". "O texto recolhido simplesmente caracteriza e especifica cada uma das palavras usadas no dia a dia das pessoas da cidade de São Paulo", acrescentou.

Imagem de livro didático da rede estadual foi compartilhada com trecho destacado
Imagem de livro didático da rede estadual foi compartilhada com trecho destacado
Foto: Reprodução / Estadão

O ambulatório se intitula como pioneiro no Brasil e um centro de excelência para acompanhamento desses casos. O profissional destacou que "essas crianças ou adolescentes se tornaram visíveis há muito pouco tempo no Brasil e especialmente no Estado de São Paulo". Assim, o tema não deveria estar fora das escolas: "Já sendo uma realidade, as escolas deverão incluir e favorecer o desenvolvimento delas, dentro de programas e projetos específicos da área da Educação. E como fazer isso, sem conceituar?"

O especialista disse que o texto está correto ao dizer que ninguém nasce homem ou mulher. "Você nasce no sexo masculino ou feminino. Homem ou mulher é uma definição subjetiva, não genética. A frase do material está correta. Você vai se descobrindo homem ou mulher", explicou.

O ambulatório lembrou que a falta de conhecimento sobre o tema alimenta "o isolamento social, tentativas de suicídio, absenteísmo e evasão escolar, automutilação, abuso de drogas, ansiedade e depressão, além de bullying e risco de agressão dentro e fora da escola." "Por esses motivos nos colocamos a favor de que esse material seja reincorporado aos programas educacionais do Estado de São Paulo", pediu.

O coordenador do ambulatório disse que comportamentos contrários a essa discussão geralmente são alimentados por um "medo de contaminação", ou seja, o medo dos pais de que as crianças ou os adolescentes ao entrarem em contato com esses termos possam eles mesmos se tornarem trans. "Não existe isso de contaminação. As crianças são espontâneas, são o que elas são. Tanto que a existência de uma criança como essa em uma sala de aula cis não transforma a sala inteira em trans. O que há, ao contrário, é aceitação e compreensão do que está acontecendo", apontou.

Saadeh explicou que o ambulatório é aberto à população, que tem de se cadastrar e passar por processos de triagem para atendimento e diagnóstico. Segundo ele, os pais procuram os serviços se sentindo culpados pelos filhos. Mas a situação não se configura pelo simples encantamento de uma pessoa do sexo masculino pelo universo feminino, por exemplo. O atendimento vai além para entender como a pessoa se vê em relação ao seu corpo e quais os comportamentos estão ligados a essa visão.

Secretaria diz respeitar 'diversidade da experiência humana', mas vê 'abordagem inadequada'

Em nota, a Secretaria da Educação disse ter publicado resoluções constituindo grupo de trabalho para analisar e revisar as apostilas. "A Seduc ressalta que não há prejuízo aos estudantes por falta de material. Todos alunos têm os livros didáticos impressos do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), das oito matérias dessa etapa de ensino. Além disso, o conteúdo das apostilas do SP Faz Escola, complementar ao trabalho do professor, continua disponível digitalmente, com exceção do material recolhido."

Sobre o recolhimento, a pasta informou que os materiais estão armazenados nas Diretorias de Ensino, até que a comissão termine a apuração. "A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, em consonância com a BNCC (Base Nacional Curricular Comum) e com o Currículo Paulista, respeita a diversidade da experiência humana, assim como respeita a diversidade de opiniões da sociedade. A forma como o conceito de 'identidade de gênero' foi tratado na apostila de ciências do 3.º bimestre do 8.º ano revela uma abordagem inadequada do assunto, quando afirma que 'ninguém nasce homem nem mulher'", declarou.

Leia a íntegra da carta encaminhada pelo ambulatório à Secretaria

"Prezada Valeria Muhi,

Diretora do DECEGEP (Departamento de Desenvolvimento Curricular e Gestão Pedagógica)

Como Coordenador do AMTIGOS-IPq-HCFMUSP (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) quero me manifestar, junto com minha equipe, contrariamente ao recolhimento de material didático referente ao ensino de Ciências para alunos da oitavas série do segundo ciclo do ensino fundamental.

A existência de crianças e adolescentes que apresentam variação de identidade de gênero é uma realidade que não pode nem deve ser apagada ou deixada de lado. Essas crianças ou adolescentes se tornaram visíveis há muito pouco tempo no Brasil e especialmente no estado de São Paulo.

Não é à toa que é neste Estado que se encontram dois ambulatórios atuantes e de excelência no acompanhamento dessa pessoas. Já sendo uma realidade, as escolas deverão incluir e favorecer o desenvolvimento delas, dentro de Programas e Projetos específicos da área da Educação. E como fazer isso, sem conceituar?

O material recolhido não faz apologia à Teoria Queer, simplesmente conceitua e fundamenta termos usados na Medicina, Psiquiatria e Psicologia atuais.

Se usar termos de uso científico e corrente é fazer "apologia da ideologia de gênero", algo está muito errado na interpretação do texto divulgado. O texto recolhido e apresentado pela mídia simplesmente caracteriza e especifica cada uma das palavras usadas no dia a dia das pessoas da cidade de São Paulo. Não vi em nenhum trecho, qualquer incentivo ou estímulo à transgeneridade; simplesmente o reconhecimento de que ela existe dentro e fora das escolas.

Promover elucidação, conhecimento, integração, diversidade, inclusão e diminuição de preconceito são regras fundamentais da Educação. O texto em questão só cumpre esse papel. Não levar isso à população escolar aí sim é incentivar o isolamento social, tentativas de suicídio, absenteísmo e evasão escolar, automutilação, abuso de drogas, ansiedade e depressão, além de bullying e risco de agressão dentro e fora da escola.

Por esses motivos nos colocamos a favor de que esse material seja reincorporado aos programas educacionais do Estado de São Paulo.

Atenciosamente,

Prof. Dr. Alexandre Saadeh

Coordenador do AMTIGOS-IPq-HCFMUSP"

Estadão
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