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Coronavírus

Após ter covid grave, atleta cria projeto com voluntários para apoiar quem tem sequelas

Raquel Trevisi, que também perdeu o pai para a doença, está à frente de iniciativa com cerca de 600 assistidos; ajuda é gratuita

8 out 2021 - 17h01
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Atleta de crossfit há quase sete anos. Duas vezes entre as nove mais bem condicionadas da competição nacional da modalidade. 38 anos. Sem comorbidades. Nenhuma dessas características impediu que a dentista Raquel Trevisi enfrentasse um quadro grave da covid-19, em setembro de 2020. Após a extubação e alta hospitalar, porém, a batalha só havia começado: a reabilitação foi dura - e continua até hoje.

A percepção de que poucos têm as mesmas condições que ela para bancar o tratamento pós-coronavírus levou Raquel a criar o Projeto Com Vida. A intenção é proporcionar qualidade de vida aos sobreviventes da covid e também para suas famílias. Hoje, mais de 600 já foram assistidos pela iniciativa, que não pagam pela ajuda.

"Tenho propriedade para cuidar das pessoas porque passei por isso", diz Raquel. Com ela, tudo ocorreu de forma muito rápida: com dois dias de sintomas já foi internada com 5% do pulmão comprometido. Após sete, o mesmo nível já era de 85%. Não havia outra saída se não a entubação.

"Senti uma movimentação esquisita dentro do quarto e perguntei se iam me entubar. O médico falou que sim… O chão se abriu. Pedi para o doutor que me prometesse que ia me trazer de volta, pois eu tenho dois filhos (de 15 e 9 anos) para criar", conta ela. Foram 30 dias no hospital, 20 deles na UTI e 16, entubada.

Diferentemente do que disse o presidente Jair Bolsonaro em pronunciamento na TV em março de 2020, o histórico de atleta não fez com que Raquel tivesse só uma "gripezinha". Pelo contrário. Quando, de fato, acordou, não se reconhecia. "Eu estava com uma cor de pele diferente, não tinha musculatura nenhuma. A sensação era de que tinha voltado em outro corpo. Eu me reconheci por conta das tatuagens", relata.

Com 25 quilos a menos, infecções, trombose na perna e no braço, sem movimentos do pescoço para baixo. A alta hospitalar representou apenas o início de um longo período de reabilitação. "Vivi de forma temporária como uma tetraplégica. Tive de reaprender tudo", diz.

A recuperação contou com uma equipe multidisciplinar de profissionais: médicos, nutricionistas, fisioterapeutas e enfermeiros. Só no primeiro mês, em que dependeu de suplementações alimentares constantes, Raquel estima ter gasto entre R$15 mil e R$20 mil. Além disso, contou com o apoio de toda família: do marido, dos filhos e dos pais.

Durante todo processo, sentia-se agradecida por estar sendo tão bem assistida e poder, durante seis meses, ficar afastada do trabalho, a fim de se recuperar plenamente. Um questionamento, porém, era constante: "E o que fazem aqueles que não têm as mesmas condições que eu?".

"Não fazem" foi a resposta da enfermeira-chefe do hospital onde a dentista ficou internada em Presidente Prudente (SP). Aquilo inconformou Raquel, que, ainda sem caminhar, em novembro, deu os primeiros passos para a fundação do Projeto Com Vida, que, hoje, faz parte do Instituto Trevisi, uma ONG.

No início, Raquel "adotava" uma família e planejava o pós-covid do paciente, com base em sua própria experiência. "O que eu precisaria se fosse essa pessoa?" era a pergunta que a guiava. Por meio das redes sociais, encontrou voluntários para a iniciativa.

Quando a atleta mergulhava nesse novo desafio, uma nova rasteira do vírus. O pai, Hugo Trevisi, referência internacional na área da ortodontia, foi internado por causa da covid-19. Em janeiro, aos 72 anos, ele não resistiu. "Meu pai era uma pessoa que você dizia: 'Esse vai viver até os 100 anos!'", lamenta a filha.

Por uma semana, Raquel não conseguia fazer nada além de sentir a dor. Com os pedidos de ajuda que chegavam por mensagens no celular, percebeu que era hora de voltar à ativa. "Comecei a acolher todo mundo, acalmar a dor de todo mundo e, consequentemente, acalmei a minha também", diz. Ao mesmo tempo, buscava honrar um desejo do pai. "Ele sempre falava: 'nunca esqueça de dizer que o pós-covid é tão grave quanto a doença'."

Até hoje, já foram mais de 600 famílias acolhidas, por profissionais da fisioterapia, medicina, psicologia, fonoaudiologia e nutrição. Outra vertente importante da ação é o acolhimento, não só do doente como também da família. "Não podemos esquecer de cuidar da pessoa que cuida", explica a dentista. Os atendimentos feitos pelos mais de mil voluntários cadastrados, ocorrem, na maioria das vezes, de forma remota.

Entre os acolhidos, está Márcia Parreira, de 48 anos. Quando teve covid, em outubro de 2020, chegou a ficar internada apenas por dois dias. No entanto, após uma semana em casa, passou a sentir forte dor no pé. A causa, descoberta em seguida, era uma trombose arterial. No caso dela, foi necessário amputar as duas pernas.

Raquel, ao se deparar com essa história nas redes sociais, correu para ajudar. Junto da NV Sociedade Solidária, de Franca, o Projeto Com vida arrecadou verba para custear as próteses. Raquel acompanha de longe, por meio de aplicativos de troca de mensagem. "Ela acabou de me mandar uma foto de pé. Que alegria!", comemorou a dentista, enquanto conversava com o Estadão.

"Depois de quase um ano, consegui ficar de pé e dar meus primeiros passos, felicidade transbordando", conta Márcia ao Estadão. "A Raquel, hoje, faz parte da minha família, mesmo não a conhecendo pessoalmente. Ela está no meu coração e ficará para sempre", continua. Pedidos de ajuda, doações e cadastro de voluntários podem ser feitos pelo site, pelo email contato@projetocomvida.com.br ou pelo telefone (18) 9-9669-3278.

Ao mesmo tempo em que trabalha "de segunda a segunda" para que todos sejam atendidos, Raquel também trata suas próprias sequelas da covid. Após um ano da contaminação, os sintomas físicos persistem: dores, inchaços, esquecimentos e falta de sensibilidade em algumas partes do corpo. A iniciativa, segundo ela, agora se encontra em novo momento. "As UTIs sempre estiveram cheias. O projeto nasceu com a covid, mas já estamos abrindo as portas para outras famílias."

Estadão
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