[Coluna] A insurgência negra necessária
Em 2025, nos despedimos de figuras como Arlindo Cruz, Preta Gil e Haroldo Costa, que fizeram da insurgência negra uma forma de reescrever o Brasil e que não se limitaram a ocupar os papeis destinados pela sociedadePráxis é uma palavra de origem grega que significa conduta ou ação concreta. Uma palavra cujo significado foi lapidado por aqueles que acreditam e defendem que a teoria não pode nem deve ser uma abstração intangível: a teoria ganha outra dimensão quando é colocada em prática, sobretudo, quando essa ação faz com que parte do conhecimento esteja voltado para as relações sociais e as reflexões políticas.
Um convite e tanto para sairmos das nossas confortáveis hashtags, para #colocarmosamãonamassa e mudarmos o que precisa ser transformado.
No Brasil, um dos maiores defensores dessa prática vinculada à teoria foi o sociólogo e historiador Clóvis Moura, cujo nascimento celebrou seu primeiro centenário neste ano de 2025. Nascido em 11 de junho de 1925, na cidade de Amarante, no Piauí, Clóvis Moura construiu uma trajetória intelectual marcada pelo rigor crítico e pelo compromisso político.
Autodidata, destacou-se desde o ensino médico e atuou como jornalista, sociólogo e historiador, consolidando-se cum dos principais intérpretes do Brasil. Sua obra mais influente, Rebeliões da Senzala (1959), rompeu com leituras conciliatórias da escravidão ao evidenciar a resistência negra organizada, especialmente por meio dos quilombos.
A partir de uma leitura marxista, Clóvis Moura demonstrou que a questão racial apresenta determinações históricas e políticas próprias, não podendo ser confundida com a luta de classes. Muito antes do racismo estrutural ser uma expressão recorrente no Brasil, Moura já denunciava como a ordenação racista estruturou toda a história do país, sem que isso implicasse estabelecer uma hierarquia entre as violências e as desigualdades socioeconômicas.
Mas ele não parou na denúncia. E é aí que a práxis entra em cena. Para Clóvis Moura, não há dissociação entre teoria crítica e ação política, sobretudo no que diz respeito à capacidade do conhecimento alterar a realidade social. Não por acaso, um dos principais motes de sua vasta obra foi demonstrar o papel fundamental que a população negra teve na formação da sociedade brasileira, apesar de toda estrutura racista.
Desse modo, Moura faz da insurgência, sobretudo a insurgência negra, uma lente para enxergar o Brasil, destacando personagens e dinâmicas sociais pouco ou nada conhecidas. Uma lente que convida a entender como e porque a história negra é também a história do Brasil.
Esse convite ficou especialmente evidente nesse ano de 2025. Não apenas pela celebração do centenário de nascimento de Clóvis Moura, mas também porque nos despedimos de importantes personalidades negras que fizeram da insurgência uma forma de reescrever o Brasil.
Despedidas de insurgentes
Um desses insurgentes foi Arlindo Cruz, um dos grandes músicos brasileiros, que faleceu em agosto. Nascido no subúrbio carioca em 1958, ele foi revelado no Cacique de Ramos, e se consolidou no grupo Fundo de Quintal, onde se destacou como compositor, cantor e instrumentista, responsável por ampliar o repertório do gênero com composições que uniram melodia sofisticada, poesia cotidiana e forte identidade popular, ajudando a projetar o samba de raiz para novas gerações.
Arlindo Cruz também foi peça-chave na consolidação do pagode carioca, transformando rodas de samba suburbanas em um movimento cultural de alcance nacional e afirmando o samba como espaço de memória, afeto, resistência cultural e afirmação da negritude.
Outra importante insurgente de quem nos despedimos em 2025 foi Preta Gil. Nascida no Rio de Janeiro em 1974, ela construiu uma trajetória pública marcada pela defesa do corpo negro, da liberdade estética e da diversidade, usando sua projeção na música e na mídia para tensionar padrões excludentes e ampliar o debate sobre racismo, gênero e a luta LGBTQIAPN+.
Reconhecida por refazer imaginários no cinema e na cultura, a diretora paulistana Joyce Prado, falecida precocemente, teve atuação destacada na produção cultural e na formulação de políticas culturais voltadas ao fortalecimento de iniciativas negras, coletivas e periféricas, criando espaços de memória e protagonismo para agentes culturais negros.
2025 também foi o ano do encantamento de Haroldo Costa, o eterno Orfeu brasileiro. Nascido no Rio de Janeiro em 1930, Haroldo Costa foi uma das figuras mais importantes da cultura brasileira ao dedicar sua vida à valorização da memória negra e do samba como patrimônio histórico e social do país.
Revelado ainda jovem como ator do Teatro Experimental do Negro, construiu uma trajetória múltipla como diretor de cinema, escritor, jornalista, pesquisador e produtor cultural, contribuindo de forma decisiva para a documentação e a difusão da história do samba, das escolas de carnaval e das matrizes africanas da cultura brasileira, então relegadas à marginalidade.
Com livros, pesquisas e atuação institucional, nos seus 95 anos de vida, Haroldo Costa ajudou a legitimar o samba como expressão central da identidade brasileira e contribuiu para o reconhecimento do protagonismo negro na formação cultural do país, deixando um legado fundamental para a preservação da memória, da história e da dignidade da cultura afro-brasileira.
Esses são alguns nomes dentre outros tantos insurgentes negros do Brasil. Pessoas que não se limitaram a ocupar os papeis destinados pela sociedade e tão pouco se contentaram com um pretenso sucesso pessoal. Homens e mulheres que transformaram suas trajetórias em práxis coletiva negra, conforme nos ensinou Clóvis Moura.
__________________________________
Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.