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Estamos transformando a Amazônia em uma savana

Florestas tropicais resultam de dezenas de milhões de anos de evolução; se não mudarmos de rumo, vamos destrui-las em pouco tempo

8 out 2020 - 10h10
(atualizado às 16h09)
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Florestas tropicais são ecossistemas únicos de imensa complexidade que nutrem uma extraordinária diversidade de fauna, flora e microorganismos. Tratores e motosserras não querem saber disso.

Algumas pessoas podem pensar que a floresta é um lugar distante e desconectado do cotidiano urbano. Mas na floresta amazônica residem milhões de pessoas em cidades e assentamentos de enorme variedade. Muitas lidam com condições precárias, e são tratadas como fonte de mão de obra barata. A floresta é às vezes destruída em nome delas, com a justificativa do desenvolvimento econômico. No Brasil, o desmatamento quebra recordes. Se continuarmos destruindo a floresta, podemos aguardar consequências tenebrosas - e não só para a região, mas para o planeta.

Durantes as últimas décadas, a intervenção humana tem cada vez mais perturbado o equilíbrio ecológico das florestas. As mudanças climáticas levaram a um aumento de 1.5 graus Celsius na bacia amazônica, e as secas se tornaram mais frequentes e extremas. As secas de 2005, 2010 e 2015-16 foram algumas das piores dos últimos 100 anos. Desde 1980, percebemos um aumento na duração da estação seca de três ou quatro semanas nas áreas mais degradadas da Amazônia.

Florestas tropicais aumentam a evapotranspiração e esfriam superfícies. O desmatamento pode causar um aumento de 2 a 3 graus Celsius. Também diminui as chuvas, porque árvores reciclam a humidade na atmosfera.

A combinação de temperaturas mais altas, secas mais extremas, e uso contínuo das queimadas para abrir terreno para a agricultura ou pecuária está transformando a floresta resiliente em um ecossistema mais vulnerável. E estamos vendo florestas queimando.

Como consequência, a Amazônia pode não estar distante de um ponto de inflexão onde grande parte da floresta se converterá em savanas tropicais.

Um estudo publicado por um de nós na revista Science Advance avalia que se o desmatamento na bacia amazônica exceder 20 a 25 porcento da floresta, teríamos um processo irreversível de savanização. Atualmente aproximadamente 17 porcento da floresta já foi derrubada, e as taxas de desmatamento aumentaram desde 2015 na maioria dos países amazônicos. No Brasil, mais de 12.000 quilômetros quadrados da floresta (o tamanho do estado de Connecticut) provavelmente serão destruídos só este ano. Neste ritmo, podemos alcançar o ponto de inflexão dentro de 20 a 30 anos.

Os efeitos desse processo não se limitarão à bacia amazônica. As temperaturas mais altas se propagariam em direção ao sul e sudeste através do ar mais quente, afetando uma enorme parte da produção rural do país. O ar úmido que normalmente flui da Amazônia - os chamados rios voadores - se reduziria, muito provavelmente impactando a precipitação na bacia dos rios Paraná-Prata e em todo o sudeste da América do Sul.

A savanização de extensas áreas da Amazônia resultaria numa perda maciça de espécies de plantas e animais, e seria devastadora para culturas indígenas. A savanização de mais de 50% da floresta também resultaria em emissões de mais de 200 bilhões de toneladas de gás carbônico, e ao mesmo tempo, levaria a uma dramática redução na capacidade da floresta de absorvê-lo.

E por último, a perturbação do equilíbrio ecológico provavelmente gerará uma maior propagação de vírus, bactéria e parasitas, aumentando o risco de futuras pandemias.

Como podemos cultivar práticas sustentáveis que nos permitam evitar o ponto de inflexão da savanização da Amazônia?

Os habitantes da região podem liderar o processo de realizar profundas transformações socioeconômicas, fomentando estratégias de conservação e desenvolvimento responsáveis.

Nas últimas décadas, os debates políticos sobre o desenvolvimento da Amazônia têm sido dominados por duas perspectivas irreconciliáveis. Por um lado, há uma visão que preza a conservação e defesa de territórios indígenas e terras da União. Por outro, existe o estímulo desenvolvimentista para utilizar recursos naturais em prol da agricultura, energia e mineração, causando ciclos acelerados de degradação.

O primeiro modelo pode funcionar do ponto de vista ecológico, mas os desafios da região agora também são de natureza urbana. Mais de 30 milhões de pessoas habitam a Amazônia, a maioria em cidades ou povoados marcados pela pobreza. Essas pessoas precisam de meios de subsistência.

Exitem novas iniciativas aderindo aos princípios de uma bioeconomia inovadora e decentralizada enraízada na Amazônia, em contraste ao tratamento da floresta como fonte de recursos para indústrias situadas em outros lugares. A região pode acomodar tantos os seres humanos quanto a biodiversidade.

Isso significa investir em sistemas de cultivo sustentáveis como o das castanhas, cacau e açaí ao invés de soja e gado. Também implica assegurar que os lucros sejam das populações locais que atuam como guardiãs da floresta.

Habitantes das florestas já atuam nas primeiras etapas do processamento de produtos extraídos das florestas e rios ou do cultivo em sistemas agroflorestais e de aquicultura. No Mato Grosso, por exemplo, comunidades indígenas fazem a colheita de castanhas vendidas por 1 dólar por quilo para cooperativas locais. Após o processamento e empacotamento, as mesmas castanhas são revendidas a 8 dólares por quilo; um consumidor de uma grande cidade estrangeira pagará em torno de 26 dólares por quilo, umas 26 vezes o valor de venda da matéria prima.

Um produto da floresta que chegou aos mercados internacionais é o açaí, mais lucrativo que soja e gado sem necessitar a destruição da floresta. Ele gera mais de $1 bilhão por ano para a região amazônica e melhorou o sustento de mais de 300.000 pessoas da região.

Entretanto, para mudar as dinâmicas econômicas de forma mais significativa, também é necessário fomentar bioindústrias na Amazônia - e agora nós temos tecnologias para a criação de fábricas compactas, móveis, e ecologicamente responsáveis no meio da floresta.

Poderíamos falar em uma Amazônia 4.0, aproveitando as tecnologias da Quarta Revolução Industrial. O objetivo é desencadear oportunidades econômicas novas e inclusivas para a proteção de ecossistemas e comunidades em toda a bacia amazônica, beneficiando os guardiões da floresta, os povos indígenas e habitantes tradicionais como os ribeirinhos, assim como as populações urbanas.

Um de nós está trabalhando em um projeto que reúne ONGs, investidores, universidades públicas e Amabela, a Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais do município de Belterra, no Pará. A ideia é que esse grupo produza chocolates artesanais usando, por exemplo, o cupuaçu. Elas farão não só o cultivo dos ingredientes, como também o processamento e empacotamento. O grupo construirá uma bio-fábrica na comunidade, com equipamento como impressoras de comida 3-D, cozinhas solares e computadores.

Energia solar e telecomunicação mais acessíveis e baratas possibilitam a operação de minifábricas como essas em áreas relativamente remotas, sem a necessidade de investimento em infraestruturas pesadas. Aplicativos podem providenciar acesso a mercados globais, e softwares de rastreamento estão em desenvolvimento para garantir o cumprimento de normas ambientais. Hoje em dia, moradores podem aprender a manejar essas tecnologias em algumas semanas.

Outras "biofábricas" em desenvolvimento envolvem óleos gourmet e castanha-do-pará, uma indústria multimilionária. Os colhedores locais poderiam produzir farinha, castanhas torradas embaladas a vácuo e óleos extraídos por pressão a frio, por exemplo. Há também o potencial de laboratórios móveis de genômica, como sequenciadores de DNA portáteis, como valor inestimável para a ciência e medicina. Comunidades das florestas podem aprender a sequenciar o genoma de plantas, animais, e até microorganismos, baseado em seus conhecimentos das propriedades particulares de cada espécie, que elas poderiam então registrar em sistemas blockchain. Uma biblioteca genética de microorganismos seria crucial para combater patógenos da Amazônia.

Não podemos dar como garantida a resiliência das florestas. Estamos acelerando rumo à destruição da Amazônia. Transformá-la em uma savana nos aproximará de um planeta Terra inabitável. Podemos criar uma bioeconomia de florestas em pé e rios fluindo, combinando saberes tradicionais e científicos, preservando a biodiversidade e melhorando qualidade de vida por muitas gerações.

*Bruno Carvalho é professor titular na Universidade de Harvard, onde ele co-dirige a Harvard Mellon Urban Initiative e o Programa de Estudos Brasileiros. Carlos Nobre é cientista sênior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e proponente do projeto Amazônia 4.0.

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Estadão
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