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Não, vacinas contra covid não mataram mais pessoas que '121 bombardeios nucleares em Hiroshima'

ALEGAÇÃO SE BASEIA EM ESTUDO QUE VERIFICOU EXCESSO DE MORTALIDADE DURANTE O PERÍODO DA VACINAÇÃO, MAS NÃO CONSIDEROU OUTROS FATORES QUE PODERIAM TER CAUSADO ESSAS MORTES, COMO A PRÓPRIA COVID; AUTOR DE POST FALSO FOI PROCURADO, MAS NÃO RESPONDEU

7 nov 2024 - 14h01
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O que estão compartilhando: que as vacinas contra a covid-19 teriam matado um número de pessoas superior do que se tivessem ocorrido 121 bombardeios nucleares em Hiroshima, no Japão.

É falso que vacinas causaram uma quantidade de mortes equivalente a 121 bombardeios nucleares em Hiroshima
É falso que vacinas causaram uma quantidade de mortes equivalente a 121 bombardeios nucleares em Hiroshima
Foto: Reprodução/Instagram / Estadão

O Estadão Verifica checou e concluiu que: é falso. A alegação se baseou em um estudo científico falho. Ao analisar dados de 17 países do hemisfério Sul, dentre eles o Brasil, os autores alegam que as vacinas mataram milhões ao redor do mundo. No entanto, em vez de provar que as vacinas contra a covid-19 causaram mortes, os autores simplesmente correlacionaram a distribuição dos imunizantes com aumentos na mortalidade, sem levar em conta outros eventos que poderiam ter impactado no excesso de óbitos — por exemplo, a própria covid. Mortes por vacinas são raras. No Brasil, desde que teve início a campanha de vacinação contra a covid-19, em 2021, eventos graves, fatais ou não, foram registrados em 1,1 casos a cada 100 mil doses administradas.

Saiba mais: Uma postagem no Instagram sugere que as vacinas contra a covid-19 causaram a morte de milhões de pessoas em todo o mundo. Na legenda, o autor do conteúdo escreveu: "dados recentes indicam que as v@cs C_19 podem estar ligadas a um número alarmante de mortes globalmente, superando até 121 bombardeios nucleares em Hiroshima". Ele orienta seus seguidores a se inscreverem no seu perfil Substack para terem acesso ao texto completo. O Estadão Verifica seguiu essa orientação e descobriu que o autor usou como uma das fontes para a afirmação um estudo científico falho.

O que diz o estudo

O texto publicado no Substack estima que 140 mil pessoas morreram no bombardeio atômico de Hiroshima, em 1945, e alega que a campanha de vacinação contra a covid-19 pode ter resultado em um número de mortes equivalente a 121 vezes o ocorrido no ataque nuclear. Com isso, o autor sugere que a vacina levou 16,9 milhões de indivíduos a óbito.

O número se aproxima do estimado pelo estudo, citado no texto, Covid-19 vaccine-associated mortality in the Southern Hemisphere [Mortalidade associada à vacina contra covid-19 no hemisfério Sul]. Essa pesquisa afirma que as vacinas contra a covid mataram 17 milhões de pessoas em todo o mundo. Os autores afirmam ter analisado dados de 17 países (Argentina, Austrália, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Malásia, Nova Zelândia, Paraguai, Peru, Filipinas, Singapura, África do Sul, Suriname, Tailândia e Uruguai).

O estudo alega que todos os 17 países passaram por períodos de alta mortalidade, que ocorreram justamente quando as vacinas contra a covid-19 foram distribuídas e administradas. Um trecho do estudo afirma que a distribuição de imunizantes e os picos de mortalidade coincidem, o que permitiria chegar à conclusão de que a vacina foi responsável pelas mortes. Mas essa conclusão não faz sentido — veja a explicação abaixo.

Correlação não significa causalidade

A biomédica, doutora em neurociência pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora da escola de saúde da Unisinos Mellanie Fontes-Dutra explica que dados isolados de correlação não são capazes de expressar relações de causalidade. Ou seja, o fato de a distribuição de vacinas ter aumentado ao mesmo tempo que o número de mortes, não significa que uma causou a outra.

"Os autores do estudo realizam uma correlação entre o aumento de mortalidade (por todas as causas) com o período em que as vacinas contra a covid-19 foram implementadas", contextualizou a professora, "sem fazer uma análise dos vieses que podem estar por trás do aumento dessa mortalidade".

Dutra cita alguns exemplos de variáveis que não foram consideradas no estudo e que poderiam impactar diretamente o aumento da mortalidade: sequelas pós-covid, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde no auge da pandemia e medidas não farmacológicas implementadas em diversos locais. "Não é correto atribuir uma relação de causalidade com a vacinação sem contemplar outras variáveis ou eventos que podem interferir nesse desfecho (mortalidade)", explicou ela.

A professora chama a atenção ainda para o fato de que os autores do estudo usaram dados agregados apenas de alguns países do hemisfério Sul, o que poderia trazer vieses sociodemográficos para a análise. "Precisamos lembrar que a pandemia da covid-19 afetou diferentemente as regiões do mundo, ampliando vulnerabilidades locais", completou.

Publicação não está no Qualis/Capes

O estudo foi publicado pela Correlation Research in the Public Interest, que se autodefine como uma organização sem fins lucrativos que conduz pesquisa científica independente.

A organização não tem no seu site um formulário para autores submeterem pesquisas, nem há informações sobre peer-review (revisão pelos pares) — um processo importante para o aperfeiçoamento da ciência, no qual um estudo é revisado por outros cientistas não vinculados à pesquisa.

Na avaliação da biomédica Mellanie Fontes-Dutra, a ausência desses aspectos dificulta avaliar a credibilidade da Correlation para o meio científico. Ela destaca ainda que a Correlation não tem cadastro no sistema brasileiro de avaliação Qualis, mantido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que categoriza periódicos e eventos científicos conforme sua relevância acadêmica.

A professora observou também que no site da Correlation, na seção Sobre, três dos quatro autores do estudo constam como membros da diretoria da organização: Joseph Hickey (atualmente no cargo de presidente), Denis Rancourt e Marine Baudin.

Denis Rancourt divulgou discursos negacionistas durante a pandemia. Ele é membro do Pandata, um grupo fundado durante a pandemia de covid que se posicionava contra as medidas de segurança recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), assim como criticava as evidências de eficácia das vacinas. Em uma entrevista ao canal no YouTube "Dr. Drew" em um programa transmitido em julho de 2023, Rancourt ainda afirmou que não existiu pandemia, o que é falso.

Estudo foi alvo de checagens internacionais

Uma checagem feita em outubro de 2023 pela AFP Internacional sobre esse estudo entrevistou o pesquisador visitante da Escola de Saúde Pública do Imperial College London Oliver Watson. Ele explicou que, em vez de provar que as vacinas contra a covid-19 causam morte, os autores simplesmente correlacionaram a distribuição dos imunizantes com aumentos na mortalidade, sem levar em conta outros eventos que poderiam ter causado o excesso de óbitos. Como, por exemplo, o relaxamento das medidas de confinamento.

O estudo também foi refutado pela organização Science Feedback, formada por cientistas que buscam combater com análises aprofundadas a desinformação divulgada em pesquisas, especialmente nas áreas de saúde pública, mudanças climáticas e a pandemia de covid-19.

No texto, a organização relata que o estudo não levou em consideração o fato de que os picos de mortalidade excessiva durante a pandemia estavam relacionados a ondas de mortes por covid-19. Isso significa que esses picos muito provavelmente foram causados pela covid-19, e não pelas vacinas.

Óbitos por vacina são raros

O Ministério da Saúde explica que, apesar de as vacinas estarem entre os medicamentos mais seguros para o uso humano, elas — como qualquer outro medicamento — não são isentas de risco. A pasta informa que o Programa Nacional de Imunizações monitora a ocorrência dos Eventos Supostamente Atribuíveis à Vacinação ou Imunização (ESAVI) em parceria com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

ESAVI é qualquer ocorrência médica indesejada após a vacinação — não há necessariamente uma relação causal com o uso de uma vacina ou outro imunobiológico. O último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, publicado em junho de 2023, descreveu os resultados do monitoramento da segurança das vacinas de covid-19 ofertadas no Brasil. Das 4.458 mortes notificadas, após revisão das avaliações de causalidade, apenas 50 tiveram relação causal com a vacinação. Isto é, 0,013 casos a cada 100 mil doses aplicadas.

O boletim ainda cita uma publicação do Imperial College London, que estimou que a vacinação evitou no Brasil entre 700 a 880 mil mortes até o final de 2021. "Ou seja, para cada óbito por ESAVI com relação causal consistente com a vacinação, entre 43.750 a 55.000 outros óbitos foram evitados pela vacinação", informa um trecho da página 19 do documento.

O Verifica pediu dados atualizados da quantidade de eventos pós-vacinação que resultaram em óbito. Segundo o Ministério, "ESAVI graves, fatais ou não, foram extremamente raros, sendo 1,1 casos notificados a cada 100 mil doses administradas".

A checagem da AFP, mencionada acima, perguntou às agências de saúde de países mencionados no estudo científico falho, como Austrália, Nova Zelândia e África do Sul, a quantidade de mortes confirmadas resultantes da vacinação contra a covid-19.

Na Austrália, por exemplo, foram identificadas 14 mortes possivelmente ligadas às vacinas, de um total de mais de 68 milhões de doses administradas. Na África do Sul, as autoridades de saúde pública encontraram três mortes, de mais de 38 milhões de doses administradas. Ainda de acordo com o levantamento da AFP, números semelhantes foram relatados na Nova Zelândia e em Singapura.

Recentemente, o Estadão Verifica mostrou que não há razão para acreditar que as vacinas sejam tóxicas e que um estudo que analisou as tendências de excesso de mortalidade durante a pandemia não apontou a vacina contra covid-19 como a causa das mortes.

O autor do conteúdo foi alvo de checagem do Verifica quando usou um argumento enganoso ao fazer campanha contra a vacinação de crianças. Agora, quando procurado para falar sobre o assunto desta checagem, não respondeu e, posteriormente, excluiu a publicação.

Estadão
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