PUBLICIDADE

Política

A corrupção no Brasil e a Segurança Nacional nos Estados Unidos

11 mar 2024 - 13h20
Compartilhar
Exibir comentários

Em junho de 2021 o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, lançou o memorando para o estabelecimento da luta contra a corrupção e fixou o tema como um interesse central da segurança nacional dos Estados Unidos. O texto demonstrava o fenômeno como uma ameaça global. Ressaltava que o dinheiro desviado prejudicava os cidadãos e impedia o desenvolvimento do país e do mundo (o que também se verifica no Brasil). Estabelecia, ainda, diversas metas para combate à corrupção local e global, incluindo mecanismos para identificar, congelar e recuperar ativos, bem como parcerias em nível global.

Eloisa de Sousa Arruda e Marcelo Carita Correra
Eloisa de Sousa Arruda e Marcelo Carita Correra
Foto: Divulgação e Arquivo pessoal / Estadão

As premissas fixadas no memorando são suportadas pelas pesquisas do Instituto Transparência Internacional, desde 2021 (ano em que o memorando foi elaborado) até 2023 (último ano da coleta de informações). Os dados obtidos pelo instituto são corroborados pelo artigo "A corrupção está aumentando em toda América Latina", publicado em 10 de março de 2024 no Jornal O Estado de S. Paulo (Internacional A12). O texto demonstra a ampla percepção sobre o fenômeno em países como o Brasil e o Peru (especialmente os elevados montantes envolvidos). Destaca ainda, que as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal suspendendo as cobranças de valores previstos em acordos de colaboração premiada relacionados a crimes de corrupção ativa e passiva geram considerável aumento do sentimento de corrupção sistêmica, mesmo que os fundamentos dos julgados sejam legítimos (vícios de vontade das empresas em decorrência de possíveis pressões indevidas por membros do Ministério Público).

No final de 2023, por meio da lei de revisão National Defense Authorization Act (NDAA), os Estados Unidos criaram o Foreign Extortion Prevention Act (FEPA), que torna ilícito, perante a jurisdição federal daquele país, que um funcionário de governo estrangeiro (leia-se: fora dos Estados Unidos) exija, receba ou aceite receber qualquer valor para a prática de ato incompatível com a função (seja por ação ou omissão) em benefício de qualquer pessoa na prática de negócios. As sanções cominadas envolvem, além de multas, o cerceamento de liberdade (prisão máxima de 15 anos). As características marcantes da lei são: o efeito extraterritorial da jurisdição norte-americana e a fixação da competência federal. Assim, diante da normativa, funcionários públicos do Brasil podem estar sujeitos a punições nos Estados Unidos.

Anote-se que a definição de funcionário público estrangeiro para a norma é bastante ampla, permitindo incluir empregados públicos, pessoas que têm a representação de um Estado (ainda que com vínculo transitório) e membros dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

Portanto, por meio de um processo legislativo voltado a temas de Defesa Nacional, os Estados Unidos criaram uma norma antissuborno com incidência extraterritorial, capaz de trazer aos tribunais norte-americanos funcionários públicos de outros países. Concretizaram, assim, os termos do memorando de 2021, que elevou a corrupção à condição de ameaça à Segurança Nacional.

É preciso apontar que não são todos os atos de corrupção praticados no Brasil que estão sujeitos à normativa, mas somente aqueles em que estejam presentes os elementos de conexão com a jurisdição norte-americana. Ou seja, se o agente público entabular o ato de corrupção nos Estados Unidos (território) ou praticar a conduta em face de cidadãos norte-americanos, residentes no referido país ou empresas norte-americanas. Por fim, a norma também se aplica diante de condutas praticadas em face de empresas emissoras de valores mobiliários nos Estados Unidos, ainda que ocorram fora do território do país.

Essa última hipótese é, em nossa opinião, a mais relevante, na medida em que um ato de corrupção praticado por um funcionário público brasileiro em território nacional e em face de uma empresa nacional pode atrair a incidência da norma, desde que essa empresa nacional tenha, por exemplo, ações em negociação na bolsa de Nova York.

Embora seja um assunto recente, vislumbra-se que as mesmas críticas referentes à amplitude do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA - Estados Unidos- norma legal que, dentre outras, estabelece sanções para pessoas e empresas que possuem ligações com os Estados Unidos e que realizem pagamentos indevidos a funcionários públicos estrangeiros) serão destinadas ao FEPA, pois, ao fim e ao cabo, são normas que se complementam (enquanto o FCPA atua no pagamento indevido, o FEPA atua no recebimento indevido). Ambas possuem a mesma principiologia, especialmente na aplicação extraterritorial.

É possível que se aponte nessas situações uma forma de lawfare (uso do direito como arma de guerra), em que autoridades norte-americanas concebidas para persecução penal são utilizadas como armas de uma 'guerra geopolítica'. Isto é, os Estados Unidos, sob o manto do combate à corrupção, estariam buscando interferir em assuntos internos de outros países.

Apesar das críticas, pode-se afirmar que, mesmo a norma sendo promulgada nos Estados Unidos, é mandatório que os agentes públicos do Brasil a cumpram, uma vez que, observados os elementos de conexão estabelecidos na legislação, a incidência extraterritorial não implica violação da soberania nacional ou de direitos fundamentais.

Considerando que a norma norte-americana é capaz de afetar agentes públicos que praticaram as condutas em locais distantes de territórios sujeitos à jurisdição dos Estados Unidos há de se analisar como se daria o processo judicial na hipótese em que o agente público pratica a conduta ilícita em outro país e não pretende se entregar voluntariamente à jurisdição norte-americana.

A primeira opção é o pedido de extradição formulado pelos Estados Unidos para que o agente responda ao processo penal. Embora o referido país tenha, declaradamente, se posicionado contra normas constitucionais que limitam a extradição de nacionais, essas determinações têm sido respeitadas pelas autoridades norte-americanas (apesar dos protestos).

No que se refere ao Brasil, a extradição do nacional é impossibilitada, na medida em que a Constituição Federal estabelece que nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins.

Diante da impossibilidade de extradição, as autoridades americanas têm adotado basicamente duas posturas. A primeira delas é produzir elementos de prova e requerer que o país de residência instaure o processo criminal em face do agente, conforme as leis domésticas. Essa solução, no que tange ao Brasil, pode ser frustrante para os fins almejados pelas autoridades estrangeiras, na medida em que as sanções cominadas e os regimes de cumprimento de pena no Brasil para crimes de corrupção são consideravelmente inferiores à cominação do FEPA.

A outra possibilidade é realizar o regular procedimento, oferecendo denúncia em face do agente público, que pode, inclusive, ter sua prisão decretada e ter bens e valores nos Estados Unidos bloqueados. Nessa situação, o agente estaria 'preso' no país de residência, impossibilitado de viajar para os Estados Unidos e outros países que mantém acordos para cumprimento de ordens de prisão. Contudo, na hipótese, o julgamento do mérito do processo não pode ser realizado sem a presença do réu, ocasionando a sua paralisação. Isso porque, apesar da regra 43 do Federal Rules of Criminal Procedure (equivalente a um Código de Processo Penal para crimes federais) prever a possibilidade de julgamento in absentia (sem a presença do réu), essa condição somente pode ocorrer se, depois de iniciado o julgamento, o réu, de livre e espontânea vontade, decidir não exercer seu direito à presença (vide Crosby v United States).

Portanto, na hipótese em que o agente público não está em território dos Estados Unidos, entendemos que não seria possível o julgamento in absentia, sob pena de violação do devido processo legal garantido pela Quinta Emenda à Constituição dos Estados Unidos, uma vez que estaria ausente antes do início do procedimento (e não após o início dos trabalhos, como permite a regulação federal).

Por fim, ressalte-se que o compliance criminal e todos os treinamentos destinados à prevenção da prática de atos ilícitos devem ser internalizados nas rotinas do funcionalismo público brasileiro. O sistema atual, baseado na existência de deveres legais fiscalizados por uma corregedoria, já não é mais eficiente para cumprir as normas do mundo contemporâneo, especialmente no viés preventivo. É preciso treinamento e ciência plena sobre as consequências de atos ilícitos (especialmente no âmbito internacional), até mesmo para que o temor da aplicação da sanção tenha o efeito de dissuadir a prática de atos ilícitos.

Estadão
Compartilhar
Publicidade
Seu Terra












Publicidade