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Enem 2018: As lições de quem faz a prova dentro de um hospital

No total, 42 alunos terão permissão para fazer o exame dentro dos hospitais, por estarem sob tratamento médico. Eles serão acompanhados por fiscais do Inep.

26 out 2018 - 11h21
(atualizado às 15h32)
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Instituto de Tratamento do Câncer Infantil (Itaci), no bairro de Pinheiros, em São Paulo, já teve prova do Enem para pacientes em anos anteriores
Instituto de Tratamento do Câncer Infantil (Itaci), no bairro de Pinheiros, em São Paulo, já teve prova do Enem para pacientes em anos anteriores
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Quando tinha 4 anos, Isabel Cristina Souza Nascimento teve câncer na retina e precisou substituir o olho esquerdo por uma prótese, além de fazer sessões de quimioterapia. Doze anos depois, a doença reapareceu nos ossos. Enquanto Isabel, hoje com 18 anos, tratava o osteossarcoma - uma espécie de tumor ósseo - na perna esquerda, descobriu nódulos nos pulmões.

Em dois anos, passou por cinco cirurgias. A próxima, no pulmão direito, será agora em novembro, mas ela espera que os médicos consigam adiar para depois do dia 11, quando terá a segunda prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

Assim como no ano passado, Isabel fará o Enem no Instituto de Tratamento do Câncer Infantil (Itaci), no bairro de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Ela está entre os 42 candidatos inscritos para a prova deste ano que tiveram permissão de fazer o exame dentro do hospital porque estão sob tratamento médico. O exame será aplicado nos dias 4 e 11 de novembro, dois domingos consecutivos.

"Os médicos estão querendo me operar na semana de intervalo entre uma prova e outra do Enem. Até daria para fazer internada, mas depois de uma cirurgia de pulmão que é muito doída, vai ser difícil", diz.

Isabel e os outros estudantes inscritos para fazer o Enem nos hospitais têm de respeitar as mesmas regras dos demais candidatos dos pontos regulares de aplicação. Eles serão acompanhados por fiscais do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira).

O câncer que Isabel teve na infância a fez perder o olho esquerdo. Desta vez, a doença que acometeu os ossos dificulta sua locomoção, por conta da prótese implantada na perna, exigindo o uso de muletas. O tratamento deixa seu raciocínio mais lento, principalmente para as disciplinas de ciências exatas. Mas ela não parou de estudar, embora tenha pensado em desistir muitas vezes.

A estudante concluiu o ensino médio em uma escola da rede pública de São Paulo no ano passado. Embora goste de falar em público e escreva bem, e as pessoas digam que leva jeito para o Jornalismo, pensa em estudar Medicina.

Isabel, à direita, teve o raciocínio prejudicado pelo tratamento de câncer, mas decidiu que não pararia de estudar; agora, ela fará seu segundo Enem no hospital
Isabel, à direita, teve o raciocínio prejudicado pelo tratamento de câncer, mas decidiu que não pararia de estudar; agora, ela fará seu segundo Enem no hospital
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

No ano passado, Isabel conta que teve um desempenho "mediano" no Enem e ficou com 500 pontos, em média. Agora, como já é veterana e conhece o modelo da prova, espera que vá se sair melhor. "A parte de Humanas é mais fácil do que pensava, e estamos treinando a redação."

O fato de ter feito a prova no hospital a deixou fisicamente mais confortável. Ela conseguiu esticar as pernas, apoiando-as em travesseiros, já que não pode ficar parada por muito tempo em uma mesma posição.

"É complicado estudar durante esse tratamento, são muitos percalços na vida do estudante. Mas não costumo problematizar o câncer ou tudo o que ele nos faz passar, é uma doença muito difícil, muitas pessoas são levadas a morte. Mas se tem um lado bom é que você muda, amadurece e passa a ser mais grata", diz.

Apoio da professora

Se depender da pedagoga hospitalar do Itaci, Angelita Moraes Ferreira, nenhum paciente internado que esteja cursando o ensino médio deixará de fazer o Enem. Ela leciona dentro do Itaci há seis anos e é a grande incentivadora para que os alunos façam o exame e continuem estudando durante o tratamento.

Todos os anos ela monta grupos de estudos para o Enem, pega provas anteriores para que eles resolvam e propõe redações. Quando o paciente não está bem disposto, chega a dar aulas nos leitos.

"Angelita é o combustível de todos nós. Estou fazendo uma quimioterapia muito forte, fico debilitada, tenho dificuldade para fazer coisas básicas, mas não vou deixar de fazer o Enem por ela", diz Isabel.

Vinculada à rede estadual de ensino, nestes anos de trabalho no Itaci Angelita acompanhou a luta e a derrota de alunos para o câncer, mas também viu aqueles que se curaram e seguiram a vida fora do hospital.

É o caso de Júlia Pascini Masculi, 18 anos, que fez o Enem do ano passado no hospital Itaci por conta do tratamento de um linfoma e hoje está na faculdade. Júlia cursa Análise de Desenvolvimento de Sistema em uma universidade particular da cidade de Peruíbe, no Litoral de São Paulo, e conseguiu bolsa de 50% pelo Programa Universidade para Todos (Prouni).

Pacientes no Itaci chegam a ter aulas de preparação para o Enem nos leitos quando estão muito debilitados pelo tratamento
Pacientes no Itaci chegam a ter aulas de preparação para o Enem nos leitos quando estão muito debilitados pelo tratamento
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Júlia teve o diagnóstico de câncer em março do ano passado. Fez seis semanas de quimioterapia e, durante o processo, por conta da queda da imunidade, teve pneumonia e infecção na pele.

"Sempre no terceiro dia de quimio começava a sentir todos os efeitos colaterais, ficava fraca, mal conseguia andar, a imunidade caía, apareciam feridas na boca e não conseguia nem comer. Ia até o meu limite, mas acabava sendo internada", lembra.

Os estudos, no entanto, ajudavam Júlia se manter entretida. "Eu praticamente ficava deitada e recebia o remédio, e, como gosto de estudar, sempre gostei, era o que me distraía. Lia livros dos médicos, a equipe do hospital é maravilhosa, e a professora Angelita me inspirou a escrever poemas."

Quando Angelita sugeriu que Júlia fizesse o Enem, ela achou que "não adiantaria nada", já que não tinha se preparado como deveria. Mas foi o resultado que garantiu a bolsa que permitiu sua entrada no ensino superior.

De volta à vida normal

Os cabelos de Júlia voltaram a crescer - na época, ela raspou a cabeça logo após as primeiras sessões de quimioterapia porque vê-los caindo a irritava - e recuperou a massa magra do corpo que havia perdido.

Não precisa mais de medicamento, estuda, vai à academia e está procurando um emprego. Ela volta ao Itaci a cada seis meses para fazer o acompanhamento padrão.

Filha única, a estudante perdeu a mãe para o câncer ainda na infância. Depois dessa experiência, aprendeu a ver a vida de forma diferente e ser agradecida "por poder acordar na própria casa, e não mais em uma cama de hospital".

Para os jovens que enfrentam doenças, ela pede que não percam as esperanças. "É preciso manter a alma viva, a única coisa que temos o controle, e a alma é tudo. Se você não está bem por dentro, por fora não vai conseguir lutar para vencer nada, qualquer doença. É preciso ter fé, é só uma fase, e às vezes vem para o bem."

Júlia conseguiu uma bolsa de 50% do valor da universidade por causa de sua pontuação no Enem que fez durante o tratamento de câncer
Júlia conseguiu uma bolsa de 50% do valor da universidade por causa de sua pontuação no Enem que fez durante o tratamento de câncer
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Isabel, que ainda não está curada e fará o Enem pela segunda vez no hospital, também incentiva os alunos a não desistirem das provas, independentemente de seus problemas, e fazê-las ao menos como experiência.

"Não dá para achar que estamos estudando pouco porque estamos fazendo um tratamento médico. Tem muito aluno estudando menos que a gente. Se você se esforçou ao longo de sua vida escolar, vai ter um bom resultado. Anime-se, bote a cara, no mínimo vai ser uma grande experiência para se aperfeiçoar da próxima vez. Já o máximo é com você", afirma Isabel.

Para a Angelita, a professora conselheira, é gratificante ver quanto o seu trabalho colabora com a vida dos jovens.

"É muito importante dentro do hospital trazer uma rotina perdida, uma perspectiva de vida. Hoje eles estão doentes. Não são doentes, mas perdem a questão da identidade. Não tem outro profissional dentro do hospital, além do professor, que pode fazer o resgate que a escolarização proporciona."

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