PUBLICIDADE

Socióloga sobre menores de rua: "situação é de disparate"

Yvonne Bezerra, socióloga do Rio de Janeiro, comenta em entrevista a situação de descontrole dos crimes de menores com armas brancas

20 mai 2015 - 12h18
(atualizado às 17h42)
Compartilhar
Exibir comentários

Não se sabe ainda se o assassinato do médico Jaime Gold, 57, na noite da última terça-feira, foi mesmo cometido por menores de idade em situação de rua na Lagoa Rodrigo de Freitas, área nobre da zona sul do Rio de Janeiro – o que se tem é o depoimento parcial de um frentista de posto de gasolina. É notório, porém, que a capital fluminense passa por uma desordem social nesta questão.

Ou, como classifica a socióloga Yvonne Bezerra de Mello, o que se vive hoje no Rio de Janeiro “é uma verdadeira situação de disparate”, com adolescentes munidos com armas brancas na base do “sem nada a perder”.

Socióloga Yvonne Bezerra de Mello, com mais de duas décadas de experiência no trato com menores de rua no Rio de Janeiro, diz que "nunca vi tanto menino e menina sem ter nada para fazer"
Socióloga Yvonne Bezerra de Mello, com mais de duas décadas de experiência no trato com menores de rua no Rio de Janeiro, diz que "nunca vi tanto menino e menina sem ter nada para fazer"
Foto: Reprodução / Facebook

Yvonne fala com a experiência de quem trata do tema há mais de duas décadas na capital fluminense. Foi ela uma das primeiras pessoas a chegarem à Igreja da Candelária, em 1993, na chacina em que oito menores de rua foram assassinados por policiais militares.

Foi ela também que teve próximo contato próximo com um dos sobreviventes da matança, Sandro Barbosa do Nascimento, que se tornaria o protagonista da tragédia do sequestro do Ônibus 174, em 2000, que culminou com a morte de uma refém e do próprio sequestrador.  

Bem longe da questão de se discutir a redução de maioridade penal no Brasil, Tia Yvonne, como é conhecida pelas 430 crianças em situação de rua que cuida dentro do Projeto Uerê, diz com todas as palavras: “não se trata a raiz do problema”. No momento em que se discute se o poder público “enxuga gelo”, já que os menores são presos para em seguida serem recolocados na rua, ela chama a atenção para o fato de que “eu nunca vi tanto menino e menina sem ter nada para fazer”. “A escola não educa, não se aprende nada”.

Nesta entrevista exclusiva ao Terra, Yvonne Bezerra de Mello propõe como medida de maior curto prazo um mapeamento do problema, dizendo-se, porém, pessimista enquanto o loteamento de cargos públicos, sem pessoas de caráter técnico assumindo o problema, é prática comum no Brasil. “Outro dia eu vi o secretário de Assistência Social dizendo que não sabia que o problema era tão grave assim. Meu Deus, como assim?.

Como você está vendo essa onda crescente de casos envolvendo assaltos e esfaqueamentos causados por menores no Rio de Janeiro?

O Brasil como um todo está numa situação muito ruim. Nunca eu vi tanta criança e jovem armado, sem fazer nada nas ruas. Mesmo que alguns estejam na escola, de certa forma eles estão fora, porque não estão aprendendo nada. A quantidade de jovens que sai antes do nono ano, é absurda. É um disparate o que se está fazendo nesse País. São meninos sem orientação alguma. São famílias desestruturadas, com uma escola onde ética e cidadania desapareceram. Onde você tem um problema muito sério de professores que não conseguem ensinar, que são despreparados e desestimulados (pelo Estado). É uma desordem. É o momento da marginalidade. Esses meninos não tem nada o que fazer.

Você enxerga esse problema como algo nacional, ou focado mais nas grandes cidades?

É nacional. Aqui é um pouco maior, aqui e em São Paulo, são situações parecidas. O aumento de pessoas, de crianças, adolescentes, nas ruas é absurdo. Isso não está sendo analisado. O que está acontecendo que não estamos dando conta desse número de adolescentes entrando na marginalidade, todo mundo com faca. É uma coisa muito louca controlar.

É uma questão de não se tratar as causas, ou seja, não ir na raiz do problema?

É isso. São ondas de meninos armados. O problema não está sendo tratado na raiz. E qual a raiz? É a família. É preciso um atendimento. É a escola que tem que mudar, a tradicional, ela não educa. Ela passa um certo conhecimento curricular, mas não educa para a vida. As crianças não tem noção de nada. Você tem um aumento enorme de gravidez na adolescência, não existe amparo, informação e educação.  Claro que quem comete delito você tem que prender. Mas prender onde? O judiciário solta os maiores também. É o sexto de pena, uma série de coisas, que fazem com que essa criaturas pensem que vale a pena (o mundo do crime). 

Imagem que circulou nas redes sociais do atendimento ao ciclista Jaime Gold, que morreu na madrugada. Ataque teria sido cometido por menores de rua
Imagem que circulou nas redes sociais do atendimento ao ciclista Jaime Gold, que morreu na madrugada. Ataque teria sido cometido por menores de rua
Foto: Reprodução / Facebook

Quanto tempo demoraria para se tratar com foco a questão?

Pelo menos 20 anos. antes disso não vai acontecer. Mas é possível. Eu tenho uma escola com 430 crianças e não tem ninguém fazendo nada de errado na rua. É possível desde que você tenha foco, que as pessoas que tenham a caneta entendam do Estado. Tudo é barganha política nos ministérios. Isso tem que acabar. O resultado é esse.

Você está falando de loteamento de cargos, ou seja, a falta de cargos técnicos?

Você não pode ter políticos nessa área, sem gestores de qualidade. Você bota um borra botas qualquer que não tem formação e isso vai dar em quê? Nada. Outro dia eu vi a declaração do secretario (municipal) de Assistência Social, o Adilson Pires, dizendo ‘ah, eu não achava a situação era tão ruim assim’. Meu Deus, como assim? Ou seja, tudo é na base do mais ou menos. Fica aquela farra de se colocar parentes para trabalhar e o pau comendo aqui fora. Temos que acabar com o mercado de cargos no Brasil. Isso é apenas uma das medidas, claro.

E qual seria uma medida de curto prazo para amenizar a questão dos menores no Rio, em São Paulo, no Brasil em geral?

Eu faria um mapeamento. Estamos falando de quantas pessoas fora da escola? Estão fazendo o quê? Nós não sabemos o número. Não sabemos quantos jovens estão aí fazendo nada. Isso é um trabalho difícil, mas precisa ser feito. A hora que nós soubermos os números, vamos saber quais políticas para esses meninos devem ser adotadas. Não é que eles não querem, eles não têm opção. Eu vejo todos os dias pelo menos uns 50. Mas não existe solução. Vai ser muito complicado.

Dá para sentir que você está muito pessimista com essa situação.

Muito pessimista. Eu que ando em diversas comunidades nessa cidade, eu vejo um número crescente e absurdo de meninos e meninas sem fazer nada. Alguma coisa temos que começar a pensar. Não existe estratégia, tudo é feito a curto prazo para votos. Aqui tudo é assim. Não se planeja. É o aqui e agora.

O projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) naufragou na questão social e influenciou de certa forma nesse ponto?

Sempre existiu o tráfico nas UPPs. Nunca foi diferente. O modelo esgotou. Não foi bem feito no começo, houve muito marketing, e não houve as reformas sociais. Não sou contra, mas o modelo esgotou. E aí se vê essa barbaridade todas as semanas. O menino ou menina, que vai para a zona sul roubar, ele já passou por todas as etapas que não funcionaram, seja na escola ou na família. Eles já passaram por etapas terríveis. Quando chegaram não tem nada. Já passou por abuso, já apanhou. E a rua é a melhor solução do que ficar em casa. 

Nota da redação: Após a publicação da entrevista, e diante da sua repercussão nas redes sociais, o secretário municipal de Desenvolvimento Social e vice-prefeito do Rio de Janeiro, Adilson Pires, contactou a reportagem do Terra para esclarecer que "eu não disse nenhuma declaração desse teor, não sei de onde ela interpretou isso".

"O que eu declarei quando eu falei sobre o tema, é que a gente faz um trabalho de qualidade de abordagem, e acolhimento, de aproximação de moradores de rua", disse ainda, antes de completar. "Nós somos aliados, não temos opiniões diferentes. Só não podemos esquecer que o que ocorreu na Lagoa foi um problema de segurança pública, tanto até que algumas medidas já foram até tomadas", finalizou. 

Fonte: Terra
Compartilhar
Publicidade
Publicidade