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Tragédia em Santa Maria

MP-RS denuncia 8 bombeiros por tragédia na Boate Kiss

MP diz que alvarás emitidos pelos bombeiros de Santa Maria desde 2007 são "falsos"

19 ago 2013 - 19h31
(atualizado às 21h27)
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Os promotores Joel Oliveira Dutra (direita) e César Augusto Pivetta Carlan (esquerda) denunciaram hoje oito bombeiros no caso da Boate Kiss
Os promotores Joel Oliveira Dutra (direita) e César Augusto Pivetta Carlan (esquerda) denunciaram hoje oito bombeiros no caso da Boate Kiss
Foto: Luiz Roese / Especial para Terra

O Ministério Público do Rio Grande do Sul denunciou nesta segunda-feira oito bombeiros por conta da tragédia da Boate Kiss, mas ressaltou que os militares não tiveram relação direta com o incêndio que causou a morte de 242 pessoas em janeiro deste ano em Santa Maria. Para os promotores César Augusto Pivetta Carlan e Joel Oliveira Dutra, todos os alvarás de prevenção e proteção contra incêndio emitidos desde dezembro de 2007 pelo 4º Comando Regional de Bombeiros (4º CRB), com sede em Santa Maria, são “falsos”, desde que foi implantado o software SIGPI (Sistema Integrado de Gestão de Prevenção contra Incêndio), quando passaram a ser dispensados alguns itens exigidos pela lei.

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Dos oito bombeiros denunciados pelo MP à Justiça Militar, o ex-comandante do 4º CRB, Moisés da Silva Fuchs, atualmente chefe do Estado Maior do Comando Regional de Policiamento Ostensivo (CRPO) Central, foi apontado por crimes mais graves no Código Penal Militar (CPM). A primeira denúncia foi em relação ao artigo 312 do CPM: inserir declaração falsa com o fim de alterar a verdade em documento público. Pelo mesmo crime, foram denunciados pelo MP o tenente-coronel da reserva Daniel da Silva Adriano e o capitão Alex da Rocha Camillo, ex-chefes da Seção de Prevenção a Incêndios do 4º CRB.

De acordo com o MP, em agosto de 2009, Fuchs e Adriano expediram o primeiro alvará dos sistemas de prevenção e proteção contra incêndio da Kiss e fizeram constar no documento que a boate foi inspecionada e aprovada “de acordo com a legislação vigente”, mesmo sem terem sido observadas leis municipal e estadual. Em agosto de 2011, Fuchs teria feito o mesmo novamente, desta vez com Camillo, na expedição do segundo alvará da Kiss, com o acréscimo de não exigir prévio certificado de treinamento de pessoal, conforme exige resolução técnica da Brigada Militar.  

Fuchs foi denunciado, ainda, por prevaricação (artigo 319 do CPM), pois deixou de punir ou de instaurar Conselho de Disciplina para possível exclusão do sargento Roberto Flávio da Silveira e Souza por ser sócio/administrador da empresa Hidramix. Souza era militar do Corpo de Bombeiros e, por isso, não poderia ser sócio da empresa, que presta serviço de prevenção de incêndios em Santa Maria. As informações a respeito das possíveis infrações cometidas pelo sargento - exercício ilegal da profissão e falsidade ideológica - serão remetidos à Justiça comum, por não se tratarem de crime de natureza militar (teriam sido praticados fora da função). 

As conclusões dos promotores foram  baseadas no inquérito da Polícia Civil, no IPM da Brigada Militar e no inquérito civil público, feito pelo próprio MP. 

Suspeitas nos alvarás

A suspeita lançada sobre os alvarás dos bombeiros tem relação com os documentos emitidos para a Boate Kiss, em 2009 e 2011, quando o SIGPI já tinha sido implantado. “A ferramenta sofreu uma distorção no 4º Comando Regional dos Bombeiros”, disse o promotor Carlan. De acordo com o MP, deixou de ser observada a legislação vigente, como a Lei Municipal 3991/1991. Segundo os representantes do MP, o desprezo às normas buscava priorizar uma suposta rapidez na emissão dos alvarás e um aumento de arrecadação de taxas.

Os promotores constataram que o uso do SIGPI fez com que os Planos de Prevenção e Combate a Incêndio (PPCIs) ficassem sem a participação de profissionais habilitados e de anotação de responsabilidade técnica (ART) e sem a prévia comprovação de treinamento de prevenção e combate a incêndios de quem trabalhasse nos estabelecimentos. “O MP está dizendo que, desde 2007, todos os alvarás que não obedeceram à legislação vigente são falsos”, reforçou Joel Dutra. Para o promotor, “muito provavelmente vários prédios tenham necessidade de novas inspeções, desta vez acatando as leis municipais e estaduais”. 

Para apurar possíveis outras irregularidades em relação à expedição dos alvarás de proteção e combate a incêndios, os promotores encaminharam uma requisição ao Comandante-Geral da Brigada Militar, coronel Fábio Duarte Fernandes, para que sejam instaurado um inquérito policial militar para apurar as falsidades ideológicas inseridas nos alvarás expedidos em desconformidade com a legislação no que tange ao PPCI completo, abrangidos pela área de atuação do 4º Comando Regional de Bombeiros, desde sua implantação, em dezembro de 2007.

Os representantes do MP também requisitaram, ao comandante da Brigada Militar, a abertura de um IPM para investigar a “penúria”, termo usado pelo promotor Joel Dutra, em equipamentos usados pelos bombeiros em Santa Maria. Em depoimentos no IPM, bombeiros chegaram a dizer que não tinham trena nem lanterna. “Um chegou a dizer que fazia a medição dando passos”, revelou Joel. 

Pela atuação no resgate das vítimas, MP pede arquivamento

Em relação à atuação dos bombeiros na operação de resgate das vítimas, no dia 27 de janeiro, os promotores Joel Oliveira Dutra e César Augusto Pivetta Carlan pediram o arquivamento do caso, quanto a eventual homicídio culposo por suposta omissão. No entendimento do Ministério Público, “mesmo sem solicitação, alguns civis iniciariam a ajudar no resgate e, diante da excepcionalidade das circunstâncias naquela ocasião, na qual existiam inúmeras pessoas em franco desespero na procura de seus entes queridos e amigos, estavam todos determinados a ingressar voluntariamente na boate”.

Os promotores ressaltaram que não há indícios suficientes de que os bombeiros tenham ordenado ou solicitado o auxílio de civis que morreram no salvamento e porque não há nos autos elementos para a individualização da conduta de cada bombeiro a respeito do suposto ato de incentivo à entrada dos civis para salvamento das demais vítimas. 

O MP também pediu o arquivamento em relação aos soldados Vágner Guimarães Coelho e Gílson Martins Dias, que chegaram a ser indiciados pela Polícia Civil por homicídio com dolo eventual (doloso). Eles tinham vistoriado a Kiss. Na denúncia criminal, o MP entendeu que eles deveriam responder por homicídio culposo (quando não há intenção de matar) na Justiça Militar. Mas, agora, os promotores entenderam que não se pode imputar a eles essa prática, porque as causas determinantes diretas para a tragédia foram o uso de artefato pirotécnico e a presença da espuma tóxica, colocada após as inspeções feitas pelos bombeiros. 

Vagner e Gilson se livraram dessa acusação, mas acabaram denunciados pelo MP por negligência. Eles e o soldado Marcos Vinicius Lopes Bastide, o sargento Renan Severo Berleze e o aluno-sargento Sergio Roberto Oliveira de Andrades incorreram, de acordo com os promotores, nas sanções do artigo 324 do Código Penal Militar (descumprimento de lei, regulamento ou instrução), porque nas inspeções feitas na Kiss em 2011 registraram a necessidade da troca de mangueiras do gás, mas não mencionaram a necessidade de instalação de uma central de Gás Liquefeito de Petróleo (GLP). Sendo assim, eles teriam deixado de observar regras da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e o Decreto Estadual 37.380/1997. 

As requisições ao Comando-Geral da Brigada Militar já foram encaminhadas para Porto Alegre. Já a denúncia e os pedidos de arquivamento foram enviados para a juíza Viviane de Freitas Pereira, da Auditoria Militar de Santa Maria. Se ela receber a denúncia, o processo na Justiça Militar começa com a escolha de quatro oficiais com cargos superiores aos dos réus, que comporão um conselho para julgar o caso com a magistrada. Nos processos da Justiça Militar, os primeiros a depor são os réus.  

Os oito bombeiros denunciados:

Tenente-coronel Moisés da Silva Fuchs:

- Artigos 312 (inserir declaração falsa com o fim de alterar a verdade em documento público) e 319 (prevaricação) do Código Penal Militar (CPM)

- Penas: reclusão até cinco anos (312) e detenção de seis meses a dois anos (319)

Tenente-coronel da reserva Daniel da Silva Adriano e capitão Alex da Rocha Camillo (ex-chefes da Seção de Prevenção a Incêndios do 4º CRB):

- Artigo 312 do Código Penal Militar

- Penas: reclusão até cinco anos

Soldados Gilson Martins Dias, Vagner Guimarães Coelho e Marcos Vinicius Lopes Bastide, sargento Renan Severo Berleze e aluno-sargento Sergio Roberto Oliveira de Andrades:

- Artigo 324 do Código Penal Militar (descumprimento de lei, regulamento ou instrução)  

- Pena: se o fato foi praticado por tolerância, detenção até seis meses; se por negligência, suspensão do exercício do posto, graduação, cargo ou função, de três meses a um ano.

Incêndio na Boate Kiss
Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.

Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.

Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.

Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.

Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.

A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.

No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.

Indiciamentos
Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.

O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência - as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.

Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas - quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.

Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissando - este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.

Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele - as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.

 

Fonte: Especial para Terra
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