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Cadeia para adolescentes? ONGs mostram que solução é outra

Fundadoras da Casa do Zezinho e da Alice, instituições de São Paulo e Porto Alegre que têm projetos voltados a menores da periferia, criticam debate sobre redução da maioridade penal: “ninguém tem o direito de acabar com as possibilidades de uma criança”

10 abr 2015 - 09h40
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Triângulo da morte. O nada carinhoso (e bastante sugestivo) nome faz referência à região compreendida entre os bairros Jardim Ângela, Jardim São Luiz e Capão Redondo, zona sul de São Paulo. Dentro dele está o Parque Santo Antônio, considerado há décadas um dos espaços periféricos mais violentos da capital. É lá que fica a sede da Casa do Zezinho, organização social sem fins lucrativos que trabalha com crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade – e que está acostumada a desmentir a tese de que cadeia é a solução para ressocializar menores de 18 anos envolvidos com o crime.

A instituição foi fundada em 1994 pela pedagoga Dagmar Rivieri Garroux. Ou melhor, Tia Dag. “Se me chamar de Dagmar, nós vamos brigar”, disse ao receber o Terra no local. À primeira vista, o jeito ríspido a deixa com uma aparência no mínimo ranzinza. Poucos minutos de conversa, no entanto, mostram que, por trás das broncas e respostas ácidas, esconde-se alguém que teve que aprender a ser firme para conseguir enfrentar obstáculos enormes em sua trajetória.

A Casa do Zezinho começou com 7 crianças e hoje atende, anualmente, mais de 1,2 mil Zezinhos de ambos os sexos e com idades entre 6 e 29 anos. A maioria vive em situação precária, possui pouco acesso à informação, mora em barracos de um ou dois cômodos com diversos outros familiares e é cercada por ambiente violento dentro e fora de casa. As ações realizadas na sede envolvem atividades de educação, arte, cultura, formação geral e capacitação profissional.

<p>Tia Dag, fundadora da Casa do Zezinho</p>
Tia Dag, fundadora da Casa do Zezinho
Foto: Facebook / Casa do Zezinho / Reprodução

“Quando criei, nem eu sabia direito o que estava criando. Mas nunca conseguia trabalhar em lugar nenhum como pedagoga. Era demitida em no máximo três meses porque nunca me adaptava a nada nem ninguém. E continuo assim”, explicou a fundadora. A solução para a inquietação social e a dificuldade em lidar com os métodos tradicionais, então, apareceu naturalmente: criar um espaço em que pudesse aplicar um método próprio de pedagogia.

Antes de ser questionada sobre mais detalhes da instituição, o que claramente a incomodava – “leia meu livro, procure vídeos na internet, está tudo lá”, chegou a dizer –, Tia Dag foi surpreendida com a chegada de Marcos Lopes, um dos “pupilos” de que mais se orgulha. Ele trazia um garoto sereno e sorridente de 15 anos.

“Senta aqui, Nenê, você chegou na hora certa. E esse meliante?”, perguntou, apontando para o menino.

“Ele está indo embora”, respondeu Marcos.

“A casa caiu?”, preocupou-se ela.

“Não! Ele está voltando”, afirmou ele, arrancando, pela primeira vez na entrevista, um largo sorriso dos lábios da pedagoga.

“Sério? Vai embora? Vem aqui dar um beijo na tia! E você, mocinha, veio para falar de violência e recuperação, né? Escuta esses dois então”, provocou a reportagem, levantando-se e passando a bola da conversa para a dupla que acabara de chegar.

Depoimento I – Viciado em crack, acorrentado na mãe

Natural de Itapetininga, no interior de São Paulo, o menino começou a fumar cigarro aos 7 anos e em pouco tempo mudou para a maconha. Em meio ao ambiente violento do bairro, ao despreparo das instituições de ensino e às influências dos amigos, passou a tratar a droga não só como diversão, mas também como trabalho. Aos 10, traficava cocaína e crack na favela em que vivia.

“Enquanto vendia, comecei a usar cocaína. Cheguei a ficar quase um mês inteiro sem dormir, usando direto. Ia para casa de vez em quando, mas ficava a maior parte do tempo na rua”, contou. A escola, ao perceber que era usuário de drogas, “convidou-o” a se retirar. “Com mais tempo livre, comecei a roubar. Um dia, fiquei com muita vontade de usar droga, mas não tinha cocaína. A única coisa que eu tinha era crack para vender. Até então eu não usava pedra, mas resolvi experimentar e viciei. Comecei a roubar dentro de casa, fui parar no hospital, fiquei semanas dopado de remédio. Minha mãe falou que me levaria embora, mas que eu teria que ficar acorrentado”.

Ao chegar em casa, ela o acorrentou em seu próprio braço para que ele não saísse sozinho. Foi aí que Marcos apareceu. Assim que assistiu a uma reportagem sobre a Casa do Zezinho na televisão, a mulher imediatamente entrou em contato com os responsáveis - no caso ele, que, além de ter sido praticamente criado na instituição, desenvolveu uma organização social parceira, o Projeto Sonhar, que ajuda a reabilitar menores envolvidos com drogas.

“Não adianta amarrar ou dopar. Não é nisso que a gente acredita. Se você não trabalha com a verdade, eles ficam piores quando se veem livres. Nós o convencemos de que ele deveria se tratar. Mesmo sem dinheiro, pegamos o carro e fomos ao interior buscá-lo. Falei para o Alex, que me ajudou a fundar a instituição: ‘se a gente não puder salvar esse menino, a gente fecha as portas’. Ele concordou. Quando chegamos, o encontramos amarrado e o convenci a ir conosco. Fiz uma pergunta a ele que nunca ninguém havia feito antes. Perguntei: ‘qual é o seu sonho?’. Só isso”, declarou.

Nesse momento, Tia Dag apareceu para interromper. “E porque foi que você fez essa pergunta?”, perguntou, irônica. “Porque foi a que você me fez quando eu precisei”, respondeu, tentando disfarçar duas ou três lágrimas tímidas.

Marcos Lopes e o parceiro, Alex Sandro, do Projeto Sonhar
Marcos Lopes e o parceiro, Alex Sandro, do Projeto Sonhar
Foto: Facebook / Projeto Sonhar / Reprodução

Depoimento II – Do Alemão às principais livrarias (do mundo)

Na década de 1990, o Parque Santo Antônio foi considerado um dos lugares mais violentos do mundo (Quem não se lembra do verso dos Racionais, "eles só querem paz e mesmo assim é um sonho, fim de semana no Parque Santo Antônio"?). Foi nesse ambiente que Marcos cresceu. Como se não bastasse, o pai era alcoólatra e costumava agredir ele e a mãe. Sem referência alguma, passou a admirar os chefes do crime.

“Eu me inspirava nos caras que roubavam, nos caras que matavam. Tanto que acabei entrando no crime. A primeira coisa que furtei foi a cantina da escola. Descobriram, fui expulso e comecei a trabalhar de verdade no estelionato”, disse. Na época, tinha 14 anos. Em seguida, viajou ao Rio de Janeiro com o homem que o ensinara tudo sobre aquele mundo e passou por um verdadeiro treinamento. “No Morro do Alemão aprendi a hierarquia do tráfico, aprendi todo o processo da ‘empresa’ da droga. Quando voltei, fiquei dos 16 aos 19 anos gerenciando o esquema na minha quebrada. Vi quase todos os meus amigos sendo mortos e presos”.

Certo dia, ele conversava com sua melhor amiga sobre a morte de uma colega e foi obrigado a fazer uma promessa. A garota pediu para que, quando morresse, não fosse enterrada no cemitério São Luís, onde os corpos de vítimas de violência normalmente eram colocados. Pouco depois, ela foi assassinada por traficantes rivais.

“Eu precisava cumprir minha promessa, então fui até a Casa do Zezinho, onde já frequentava, conversei com a Tia Dag e pedi dinheiro para enterrá-la em outro cemitério. A tia sentou, pegou o cheque e falou: ‘e quem vai vir pedir dinheiro para o seu enterro? Você é o próximo’. Ali eu vi que estava numa guerra sozinho”, afirmou. “Enterrei minha melhor amiga no dia em que completei 21 anos. Depois, voltei para a Casa do Zezinho para ficar. Comecei a ler, descobri o Capão Pecado, livro do Ferrèz, e me viciei em literatura. Voltei a estudar, finalizei o ensino médio, entrei na faculdade, me formei em Letras, publiquei um livro [Zona de Guerra, Matrix Editora, 2009]. Lancei na Alemanha, na Califórnia. E fundei o Projeto Sonhar com meu parceiro Alex Sandro. Agora trabalhamos resgatando adolescentes e jovens que passam pela mesma situação que nós”.  

Para Marcos, ele e seus meninos são exemplos perfeitos para entender, na prática, as consequências negativas que a redução da maioridade penal, PEC que está sendo debatida em Comissão Especial na Câmara dos Deputados, poderia ter à sociedade. “Não adiantaria p**** nenhuma. Se fosse reduzida antes, eu teria sido morto. Nunca fui pego pela polícia para ser levado à cadeia, mas já tomei tiros. Por aqui eles não querem prender, querem matar”.

Tia Dag, embora tenha nascido “em berço de ouro”, como diz, mudou-se cedo para a periferia. E se lembra bem dos anos 1990 no Triângulo da Morte, onde, de acordo com ela, morriam 17 pessoas por dia em decorrência da violência local.

“Meu próprio pai foi assassinado. E por um menor! O Nenê queria matar quem fez aquilo com ele. Mas eu deixei? Não. Sou totalmente contra essa redução da maioridade penal. Todo mundo é bom para chegar julgando. ‘Essa gentinha de droga’, dizem. Mas, se acontece na classe média, o filho viciado vai para uma clínica carésima. E aqui? Vai para onde? Para a Casa do Zezinho. O Projeto Sonhar. O Cooperifa. É nóis, entendeu? O que tem que ter é mais escola. Mais instituições de ensino, na verdade, não essas ‘ex-colas’. Elas já foram”.

<p>Crianças do projeto Boquinha, da instituição Alice</p>
Crianças do projeto Boquinha, da instituição Alice
Foto: Alice / Projeto Boquinha / Divulgação

“Fazer com que todas as crianças tenham sonhos é uma revolução”

Há 15 anos, as jornalistas Rosina Duarte, Clara Glock e Eliane Brum se uniram para criar uma organização social em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O projeto principal da instituição, chamada Alice (Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação), é um jornal. Óbvio, não? O diferencial é que ele não é feito por jornalistas, estudantes ou intelectuais, mas por quem mais tem a dizer (e nunca é ouvido): os moradores de rua.

“A proposta da Alice é mostrar o que a sociedade não vê. É trazer à tona histórias de grupos que não têm direito à comunicação, que nunca aparecem na mídia convencional. Histórias que vão morrer", disse Rosina ao Terra. "O Boca de Rua (nome da publicação) é pensado sempre pelo grupo. São eles mesmos que fazem tudo. Eles pensam nos temas, eles entrevistam, eles escrevem, eles fazem a venda. Até para mim era difícil entender, no início, como aquelas pessoas com tamanha dificuldade podiam enxergar a vida de forma tão lúcida. Com o tempo aprendi que tinha mais a escutar do que a passar”.

A equipe é composta por cerca de 35 adultos. Alguns já conseguiram moradia, outros vivem em albergues, mas todos têm alguma vivência nas ruas. São vendidos 15 mil exemplares do jornal a cada três meses, cada um por R$ 2. Dentro dele, existe um encarte intitulado Boquinha, feito exclusivamente por crianças e adolescentes - na maioria filhos e parentes dos adultos integrantes do Boca de Rua.

“O intuito é mostrar o mundo a elas e também mostrá-las ao mundo. Dizem que crianças que não têm acesso à cultura não têm criatividade. É mentira! Elas têm uma profundidade de pensamento... O crime está no cotidiano delas. Elas têm pais envolvidos com drogas, parentes no tráfico, familiares vítimas de bala perdida, irmãos mortos, mães na prostituição. E nosso orgulho é que nenhuma criança que passou pelo Boquinha e cresceu está hoje na rua. Todos os nossos adolescentes estão estudando”, afirmou.

Quer saber algumas das “reportagens” que esses menores criaram? Em uma delas, inventaram uma “lei” que possui dois artigos: “toda criança tem direito a colo de mãe” e “toda criança tem direito a viver toda sua vida e não só a infância”. Em outra, aproveitando a onda de manifestações que acontece no Brasil, fizeram seu próprio protesto. A reinvindicação principal: ter direito a sonhos.

“Claro que isso tudo não é só responsabilidade do nosso projeto, é de um conjunto de ações. Mas nossa contribuição é no sentido de fazer a criança enxergar além do que ela vive. Quando você não tem outros parâmetros, vive apenas na sua realidade e tua autoimagem se adequa a ela. No momento em que sai disso, vê outros mundos e consegue pensar além. Se conseguirmos fazer com que elas tenham sonhos, o que suas mães não tiveram, estamos fazendo uma revolução”, declarou a jornalista.

“É por isso tudo que a discussão sobre redução da maioridade penal é um absurdo. Primeiro porque, na prática, é ineficiente. Sabemos que o índice de reabilitação em presídios é pequeno. Segundo porque qualquer pessoa que conviveu com um menino de 16 anos em situação de vulnerabilidade sabe que ele tem uma chance imensa de ser manipulado. Colocá-lo em uma escola de crime não faz sentido algum. Nós, que atuamos nisso, sabemos que a reversão do processo é muito possível. Já vi acontecer inúmeras vezes diante dos meus olhos. Vários adolescentes chegaram aqui com histórico de furtos e crimes bem mais graves e reverteram suas histórias, sim. A sociedade ainda não aprendeu que punição não é o caminho. Rotular menores como criminosos é um aborto. As possibilidades de qualquer criança são infinitas, ninguém tem o direito de acabar com isso”, finalizou. 

Fonte: Terra
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