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Trabalho doméstico: “Eu queria trabalhar, e não servir de escrava”

Explorada no trabalho doméstico na adolescência, Luana quase morreu de exaustão

6 set 2023 - 15h47
(atualizado às 16h02)
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 “Queriam ter a pose de rica, então pegavam crianças para fazerem serviço” conta Luana
“Queriam ter a pose de rica, então pegavam crianças para fazerem serviço” conta Luana
Foto: AzMina

— A senhora sempre foi assim, de retrucar?

— Sempre! E eu agradeço a Deus, senão teria sido mais humilhada ainda. Se eu tivesse ficado muito calada, acho que tinha morrido na casa dos outros.

Luana*, mulher negra, de pouco mais de 1,55 de altura, sorriso largo, mostra que não tem papas na língua. Aos 44 anos, mãe de uma adolescente, nasceu em uma comunidade ribeirinha no Pará, e tem nove irmãos, cinco mulheres e quatro homens. Até os 10 anos, morava por lá com os irmãos e os pais, que trabalhavam na roça. 

A família era humilde. O que os pais ganhavam no campo não bancava luxos, mas foi  suficiente para uma infância regada a lembranças boas. “A gente brincava com paus, fazia boneca vassoura de açaí. Mas vivíamos felizes”, conta.As memórias da primeira infância são guardadas com muito carinho. Ela lembra que até um bombom trazido pelo pai da capital era dividido entre os 10 filhos. “Depois do jantar a gente ficava reunido brincando, meu pai contava história. Sinto falta daquela família”.

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CRIANÇAS CUIDANDO DE OUTRAS CRIANÇAS

A infância de Luana, assim como a dos irmãos, acabou interrompida cedo. Os meninos iam para roça com os pais, ou colher açaí. As meninas, por volta dos 7 anos, começaram a trabalhar como babás. Eram chamadas por famílias conhecidas para “reparar” (olhar) crianças mais novas, ou fazer companhia para tias e primas. A convivência entre Luana e os irmãos foi rareando, acabou não crescendo com eles. “As pessoas pediam para a gente ir tomar conta de outras crianças e diziam que a gente ia estudar, mas enganavam a gente. Não tinha estudo”, relata Luana.

O que havia começado com o “trabalho” de babá evoluiu para outros serviços da casa, e ela começou a lavar, passar, varrer, cozinhar. Com a promessa de uma oportunidade de estudo, parentes a levaram para Belém, mas ela logo descobriu que sua realidade seria outra. Dona Julia, sua mãe, tinha o hábito de visitá-la, e quando via que Luana não estava bem, levava a filha embora. Aconteceu várias vezes. “Essas pessoas enganavam a mamãe, diziam que a gente ia estudar e, quando chegava na hora, diziam que não conseguiram vaga. Era só mentira.” 

Passou o fim da infância e adolescência pulando de casa em casa, sempre trabalhando, enfrentando humilhações e maus tratos. Dormia chorando de saudade de casa. 

Um dos constrangimentos mais marcados na memória de Luana é a proibição de sentar à mesa e de comer a “comida boa” das refeições principais. Ou então, ser forçada a comer o que não gostava. Pior do que isso eram as ofensas racistas. “Até do cabelo da gente falavam. A gente não pede para ser preto. Era muita coisa que a gente ouvia.”

PRIMEIRA A ACORDAR, ÚLTIMA A DORMIR

A rotina de Luana no período de exploração era exaustiva, sempre acordando antes do sol nascer e sendo a última a dormir, se revezando entre o cuidado da casa e das crianças. As idas para ver a família eram cada vez menos frequentes, pela quantidade de trabalho e a falta de permissão dos patrões. Nos raros momentos em que o pai ia para Belém fazer compras, ela e as irmãs – que trabalhavam em outras casas – podiam encontrá-lo na feira. 

A adolescência foi se resumindo a trabalho pesado, mas ela acreditava viver com uma família unida e feliz. Hoje, ela entende que parte dessa cena são lembranças de um tempo que, na verdade, era de precariedade e falsas promessas. Melhorar de vida trabalhando em “casas de família” nunca se concretizou. “Meus pais não entendiam muito dessas coisas, não tinha quem os alertasse. A gente foi começando a entender assistindo televisão, reportagem, e depois na escola.”

A situação de exploração atingiu o nível máximo quando Luana, ainda adolescente, foi chamada para substituir uma jovem que fugiu do trabalho. Havia objetos espalhados por toda a casa, e ela começou a trabalhar logo depois de passar pela porta. À noite, dormia num colchão no chão, com um despertador ao lado do rosto, para nunca perder a hora. Ela ficou lá porque pela primeira vez ganharia um salário mínimo. Lavava roupas com febre, não sentia o sabor dos alimentos e perdeu muito peso. Em menos de um mês, entrou em estado de esgotamento físico profundo. Quando informou que eu não ia mais ficar, a patroa perguntou: ‘Por quê? Você não queria trabalhar?’ “Eu disse que queria trabalhar, e não servir de escrava”.

Dali, Luana seguiu para a casa onde uma de suas irmãs era empregada. “Minha irmã quase caiu de costas porque não dava pra me reconhecer”. As sequelas daquele trabalho ainda persistem, já que ela perdeu a força nas mãos. Depois disso, Luana jurou não trabalhar mais como doméstica. Suas experiências seguintes, em  lanchonetes, bares e supermercado, também não foram positivas. No último emprego, desenvolveu uma infecção urinária severa, pois era proibida de usar o banheiro.

JUSTIÇA INEFICAZ

A maioria das casas em que Luana trabalhou era de parentes ou pessoas próximas à família, todas de classe média ou baixa. “Queriam ter a pose de rica, então pegavam crianças para fazerem serviço”. Nem ela, nem as irmãs, recebiam pagamento em dinheiro. Ocasionalmente, ganhavam roupas e itens de higiene pessoal, “tudo de péssima qualidade”.

7 lugares em que as crianças não deveriam estar 7 lugares em que as crianças não deveriam estar

Já adulta, Luana chegou a recorrer à justiça para tentar receber o pagamento pelos quatro meses trabalhados sem remuneração. Desistiu quando uma juíza tentou justificar a ausência da empregadora na audiência, afirmando que ela não tinha tempo, pois “trabalhava com político”. Ela comemorou a aprovação da Emenda Constitucional 72, mais conhecida como PEC das Domésticas, em 2 de abril de 2013. “Foi uma vitória muito grande, porque não é um trabalho fácil”.

Luana está desempregada. Sobrevive fazendo “bicos”, mas não paga aluguel. Conseguiu a casa própria no início dos anos 2000, onde criou sozinha a filha, hoje com 17 anos. Luta para a filha passar no vestibular e faça uma faculdade, mas não abandona os próprios projetos. Terminou o Ensino Médio depois de adulta, e sonha em estudar psicologia. Com olhos marejados, ela se diz frustrada por não alcançar uma qualidade de vida melhor para si e para os pais. “Não deu ainda, mas não vou desistir. Tenho que batalhar pela minha melhora. Quero chegar a 80 anos usando salto”.

*Nomes fictícios para preservar a entrevistada

Clique e acesse a reportagem original

AzMina
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