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Geração sanduíche: com famílias menores, a nossa rede de apoio também encolhe?

Mulheres são mais 'ensanduichadas' por falta de rede de apoio que permita trabalhar, cuidar de filhos pequenos e pais idosos ao mesmo tempo

30 jun 2023 - 16h47
(atualizado em 26/10/2023 às 17h23)
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Yara ao lado da filha comemora o aniversário de 102 anos da mãe
Yara ao lado da filha comemora o aniversário de 102 anos da mãe
Foto: Arquivo pessoal

Os primeiros números revelados pelo censo de 2022 mostram que a família brasileira está mais enxuta. Segundo o IBGE, nos domicílios do país vivem menos de 3 pessoas em média. Para ser mais exata, são 2,79 pessoas por residência, número que atesta que as famílias numerosas do passado são algo cada vez mais raro no presente. 

Os efeitos do encolhimento das famílias são sentidos por uma parcela considerável da população. São pessoas como a jornalista e roteirista Yara Reimberg, 53 anos, que personifica a chamada "geração sanduíche". O termo foi criado há quatro décadas para descrever alguém de meia idade que ficou espremido ou ensanduichado, cuidando ao mesmo tempo de pais idosos e filhos pequenos. Isso se deve à combinação de dois fatores: longevidade dos mais velhos e  maternidade tardia.

Yara sabe como ninguém o impacto de ser ensanduichada por duas gerações separadas por um século de vida. Quando a filha Rafaela nasceu, a mãe da jornalista era uma senhora centenária. Na época, Dona Aparecida tinha uma certa autonomia. Estava lúcida, caminhava, fazia sozinha atividades como comer, tomar banho e se vestir. Mas, como boa parte das pessoas idosas que alcançam a longevidade, a cada novo ano de vida acrescentado à biografia, mais cuidados se fazem necessários. Infelizmente, viver mais significa também viver com doenças crônicas, debilitada e muitas vezes dependente de alguém. 

A filha e a mãe de Yara ficaram sob seus cuidados
A filha e a mãe de Yara ficaram sob seus cuidados
Foto: Arquivo pessoal

No caso de Yara, ao mesmo tempo em que a mãe exigia mais cuidados, ela tinha uma filha pequena para criar e ainda dar conta da vida profissional. Como tantas outras mulheres do país, ela é filha única e mãe solo. Como lidar com tudo isso? 

"A gente vive sem o apoio familiar de antigamente. Com uma família cheia de irmãos, primos, tios e tias, um vai segurando a barra do outro", diz Yara, que sentiu exatamente os efeitos da longevidade e de famílias mais enxutas nas duas pontas. Ela não teve uma rede de apoio nem como mãe e nem como filha. "Não tenho irmãos, o pai da minha filha tem um irmão só e, com a minha mãe, as irmãs dela já eram idosas e quase dependentes. A irmã caçula tinha 82 quando ela tinha 100 anos". 

A mãe de Yara faleceu em 2021, depois de completar 105 anos. Viveu os últimos dias deitada em uma cama, dependente de outras pessoas até para se mexer. Antes, tinha sobrevivido a um infarto e a um AVC. Mas a fratura do fêmur no final da vida foi decisiva para deixar dona Aparecida mais debilitada. "Quando minha mãe estava acamada, tinha que trocar ela de posição a cada 3 horas para não causar ferida na pele. Aí você tem também uma criança para levar para escola, tem que fazer a comida para as duas e tem que trabalhar. Você trabalha mal e com a faca no pescoço", descreve Yara.

Nada no mundo nos prepara para dias assim. Por mais que a gente saiba que os pais não são eternos, a realidade de cuidar de quem nos cuidou  e ainda administrar trabalho, casa, filhos se impõe de forma brutal. É muito mais exaustivo do que a maioria dos ensanduichados um dia imaginou ser. "Eu vivia exaurida. Ia dormir e não conseguia pegar no sono, mesmo exausta. No dia seguinte começava a mesma rotina, sem descanso", relembra Yara. Nunca se sentiu como se estivesse cuidando de duas "crianças", condição usada com frequência para falar de idosos no final da vida. Para Yara, a simbologia é outra. "Com a criança você dedica seus cuidados para que ela vire autônoma. Já o cuidado que eu tinha com a minha mãe, o tempo todo, era o de dar um fim digno". 

Além do desgaste emocional, há o aspecto financeiro para complicar. É comum ouvir relatos de pessoas que ficaram endividadas ou mesmo falidas quando assumiram a tarefa não remunerada de cuidar de alguém da família. Com Yara não foi diferente. Nesse período em que a mãe esteve acamada, ela viu as dívidas se acumularem. "É uma questão emocional. Você não coloca pessoas amadas numa planilha. Eu pelo menos não consigo", diz ela. "Como você vai economizar na fralda que pode provocar assaduras na sua mãe? A sequela emocional vem porque você está sempre num dilema entre o que pode dar e o que deveria dar. É um drama", classifica Yara. 

Quando a filha de Yara nasceu, a mãe já era centenária
Quando a filha de Yara nasceu, a mãe já era centenária
Foto: Arquivo pessoal

Uma faceta cruel desse drama que empurra as pessoas para o papel de cuidador de duas gerações é que ele afeta de forma desproporcional as mulheres. Talvez o novo censo possa jogar alguma luz sobre essa realidade no Brasil. Sabe-se que no Reino Unido, por exemplo, 62% dos ensanduichados são mulheres entre 35 e 54 anos, pessoas que estão num período da vida super produtivo.

Nesta fase em que somos mão de obra valiosa para o mercado, mulheres são obrigadas a paralisar suas vidas, esquecer de seus anseios e sonhos porque, sem elas, praticamente não existe outra alternativa. Tirando a família, não há uma rede de apoio oficial com a qual se pode contar. Com uma população cada vez mais longeva, deveria haver alternativas para aliviar o fardo de quem cuida dos idosos da família. Como lembra Yara, "o estado é quem obriga a família a cuidar dos seus idosos, ao mesmo tempo que precisa de você como força de trabalho ativa".  

Assim como a licença parental é entendida como algo que traz benefícios para toda a comunidade, deveria haver direitos semelhantes para quem assume o papel de cuidador/cuidadora de seus familiares. Não é possível ter uma sociedade com milhões de pessoas exauridas, com problemas sérios relacionados à saúde mental, por falta de políticas públicas pensadas para a população idosa. 

Existe um provérbio famoso, cuja origem é atribuída ao continente africano, de que é preciso um vilarejo inteiro para criar uma criança ("it takes a village to raise a child"). O provérbio não só dá uma ideia do enorme trabalho que envolve criar uma criança para que ela possa desfrutar de uma vida feliz e plena. Ele também sinaliza que a função de cuidar de uma criança deve ser de toda a comunidade. A tarefa de olhar pelos entes queridos que estão no final da vida também deveria ser. 

Fonte: Redação Terra
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