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Comunidade bicentenária no Rio de Janeiro é ameaçada de despejo

Moradores do Horto acreditam que a especulação imobiliária é o principal fator que estimula as ações de reintegração de posse em terreno da União, que tem administração realizada pelo Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro

16 ago 2022 - 15h36
(atualizado às 17h51)
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Foto de moradores do Horto impedindo passagem de polícia para reintegração de posse.
Foto de moradores do Horto impedindo passagem de polícia para reintegração de posse.
Foto: Imagem: Acervo do Museu do Horto / Alma Preta

"Morar aqui é um privilégio que foi conquistado pelos nossos avós. Infelizmente, hoje eles querem apagar a nossa história e desrespeitar o nosso direito". É o que relata Vinícius*, morador da comunidade do Horto Florestal, constituída por 11 núcleos que são distribuídos nos bairros Jardim Botânico e Gávea, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Ameaçada de despejo, a comunidade hoje composta por 621 famílias tem uma história bicentenária com uma criação que remonta desde a época da escravização.

Assim como Vinícius, muitos moradores do Horto relatam que são descendentes de ex-funcionários do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ). De acordo com o portal Mapa de Conflitos, durante muito tempo, a ocupação da área do Horto foi admitida e estimulada pela própria administração do Jardim Botânico para facilitar a locomoção de funcionários que trabalhavam lá, em sua maioria, pessoas que lidam com plantas e são especialistas nessa prática.

"Foi oferecido o terreno para os moradores construírem ao entorno do parque. Cada um construiu sua própria casa com os seus recursos", conta Fábio Dutra Costa, presidente da Associação de Moradores e Amigos do Horto (Amahor). Há documentos que comprovam a ação.

Há descendentes também dos antigos trabalhadores do Real Horto (início do que é hoje o JBRJ), criado pelo Imperador D. João VI, em 1808. O Mapa de Conflitos pontua que a comunidade já foi reduto da cultura negra, sendo rota de fuga e local de quilombos; alguns de seus descendentes permaneceram em partes específicas do Horto e vivem lá até hoje.

Além disso, o Museu das Remoções explica que, durante o século XIX, o bairro do Jardim Botânico recebeu a instalação de engenhos de açúcar e de café, assim como de fábricas de tecido e de pólvora. Consequentemente, ao redor de seus trabalhos, os operários começaram a construir suas casas e a morar.

"Entre as décadas de 1940 e 1960, após as remoções da favela Beira da Lagoa - na Lagoa Rodrigo de Freitas - promovidas pelo governador Carlos Lacerda, os moradores foram transferidos para o núcleo Dona Castorina, no Horto", explica o Museu das Remoções.

O avô de Vinícius, em específico, trabalhou 36 anos no Jardim Botânico e construiu a casa em que ele mora em 1945. Já são 77 anos que a história de sua família atravessa a comunidade do Horto. "Eu costumo dizer que partes de paredes da casa têm memória viva do meu avô", conta.

Especulação imobiliária na região

"A comunidade do Horto, através da Amahor, luta há mais de três décadas para manter suas moradias e modo de vida. Por pressão da recém-criada Associação de Moradores do Jardim Botânico (AMAJB), nos anos 1980, o Governo Federal entrou com uma ação de reintegração de posse pedindo a retirada de 120 das 620 famílias que lá viviam", explica o Mapa de Conflitos.

Ainda de acordo com o portal, à medida em que a região foi se valorizando, o JBRJ começou a querer expandir os limites do parque para fins de pesquisa em detrimento das casas construídas no terreno vizinho.

Desde a década de 1980, a comunidade tem passado por sucessivas ameaças de remoção do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico, que hoje tem o domínio das terras da União, segundo a Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

"Um agravante na questão do Horto é o fato de o bairro do Jardim Botânico ser um local-símbolo para a elite da cidade, além de ser uma parte da cidade muito valorizada pelo mercado imobiliário, turístico e do ponto de vista econômico da administração pública municipal", também complementa o portal Mapa de Conflitos.

Segundo dados do Censo de 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 45,7% dos moradores do Horto se declaram como pardos, 37,8% como brancos e 16,4% como negros. No bairro do Jardim Botânico, 82,9% dos moradores se declaram como brancos, 12,2% como pardos, 4,5% como negros e 0,4% como amarelos. Os dados revelam a disparidade racial entre as localidades.

Atualmente, mais de 500 famílias da comunidade do Horto estão ameaçadas de remoção. Os moradores do Horto acreditam que a especulação imobiliária é o principal fator que estimula as remoções. Vinícius, pai de uma criança que necessita de cuidados médicos constantes, conta que o processo de desapropriação de sua casa já está muito avançado.

"O processo aqui de casa, como grande maioria que tem sentença e trânsito em julgado, foi aberto em 87, antes da Constituição brasileira. Em 30 de junho, fez um ano que houve a entrega de mandados de reintegração e desocupação já no meu nome. Eu moro em uma área nobre hoje. O que está em jogo é o valor da terra que a gente ocupa", relata.

O presidente da Amahor, Fábio Dutra, destaca que não há um movimento de se retirar outros empreendimentos da região que também não estão ligados à pesquisa, como o Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO).

"Quando são pessoas ricas que desmatam, cortam barranco, cometem alguns crimes ambientais, nada acontece. Eles conseguem inclusive toda a documentação pertinente à área e a gente não consegue titular uma casa que está lá há mais de 70 anos. São duas situações completamente distintas", explica Fábio.

"Uma é o rico invasor, depredador do meio ambiente e do outro lado são moradores que trabalharam no Jardim Botânico, ajudaram a preservar essa área, porque eu costumo levar as pessoas para conhecer a comunidade e é uma área muito bem preservada. Eu tenho orgulho em dizer que a gente é um dos poucos bairros do Rio de Janeiro que não tem nem tráfico armado e nem milícia", também complementa o presidente da Amahor.

Os moradores do Horto também comentam que o Jardim Botânico não fala qual a finalidade pública dos locais desapropriados.

"Por exemplo, tinha um clube construído pelos funcionários do Jardim Botânico, moradores do local, que era o Grêmio Recreativo do Caxinguelê. Esse clube foi desapropriado e até hoje não foi construído nada. Hoje o que se tornou o Caxinguelê é um depósito de restos de obras. Então eles simplesmente não construíram nada, não dizem o que pretendem e os processos estão correndo em uma velocidade absurda", comenta Fábio Dutra.

"Tudo que o Jardim Botânico faz hoje, inclusive, é claramente comercial. Qualquer um que for no Jardim Botânico e andar no seu interior vai ver. São vários restaurantes, lanchonetes e a própria casa de espetáculo", pontua Fábio Dutra.

A Alma Preta Jornalismo entrou em contato com o JBRJ pedindo um posicionamento sobre as ações de reintegração de posse que ocorrem hoje na comunidade do Horto e sobre a finalidade pública para as áreas reivindicadas. Em resposta, o JBRJ declara que "as ações foram ajuizadas pela União nas décadas de 1980 e 90, e as operações são promovidas e coordenadas pelo Poder Judiciário".

Vinícius alega que foram abertos novos processos a partir de 2018 segundo um cadastro que foi feito com a comunidade em 2010 com uma outra finalidade pública. "Era um cadastro feito pela SPU (Secretaria do Patrimônio da União) com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que levaria a um processo de regularização fundiária que foi suspenso. Então eles utilizaram esses dados para abrir processos contra as pessoas que não tinham", comenta. 

Resistência

Uma das estratégias de luta da comunidade do Horto é o resgate e divulgação de sua história, visando desconstruir a narrativa de que são "invasores" do espaço, aponta o Museu de Conflitos.

Além disso, segundo o Museu das Remoções, a comunidade participa de mutirões de plantio de espécies nativas e de limpeza do Rio dos Macacos, cuidando de sua horta comunitária e possuindo também o Museu do Horto, protagonizado e construído pela Associação de Moradores do Horto (Amahor).

Em 2021, a partir de uma construção coletiva e comunitária, foi aprovada a Lei nº 7.184/2021, que declara como de Especial Interesse Social para fins de reurbanização e regularização a Comunidade do Horto, no entorno do Parque Jardim Botânico.

De acordo com Rafael da Mota Mendonça, advogado da Amahor, a Lei garante que a área ocupada pela comunidade seja destinada exclusivamente para fins de moradia. "Com isso, qualquer pessoa que venha a ocupar a área deve manter essa destinação", destaca.

"Essa lei, além de já ter nos trazido o benefício da tarifa social junto a Águas do Rio, declara que em toda a área de Especial Interesse Social não pode ser feito, pelo menos em tese, empreendimentos e comércio. Não dá para tentarem tirar a gente dali pra fazer comércio", ressalta Fábio Dutra.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, prorrogada até 31 de outubro, suspende despejos em área urbana ou rural enquanto perdurarem os efeitos da crise sanitária da Covid-19 e é um dos elementos que, em tese, também protege a comunidade no momento dos despejos.

"Enquanto não houver uma decisão coletiva, enquanto não oferecerem uma alternativa habitacional condizente e com dignidade, enquanto não se falar que existe uma finalidade pública para área até o presente momento, não tem que se pensar em fazer uma reintegração de posse", finaliza Vinícius.

*Vinícius é um nome fictício adotado para preservar a pessoa.

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Alma Preta
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