Como o Master System ajudou a criar a cultura gamer no Brasil
O console que desafiou a Nintendo e virou rei no Brasil
Quando se fala em videogame nos anos 80 e 90, o primeiro nome que vem à mente no cenário mundial é o Nintendo Entertainment System (NES). No Japão e nos Estados Unidos, ele foi o rei absoluto. Mas aqui no Brasil, a história tomou outro rumo: quem ocupou esse trono foi o Master System, o console da Sega que, pelas mãos da Tectoy, deixou de ser apenas um eletrônico importado para se tornar um verdadeiro símbolo cultural.
Esse fenômeno não foi apenas sobre hardware ou software, mas sobre como o videogame passou a fazer parte da cultura e do cotidiano brasileiro. O Master System ajudou a moldar hábitos, linguagens, encontros e até sonhos, criando as bases daquilo que hoje chamamos de cultura gamer nacional, uma paixão que dura até hoje.
Relembre um pouco dessa história aqui no Game On!
Tectoy: a virada do jogo
Se nos Estados Unidos e no Japão - sua terra natal - o Master System foi atropelado pelo rolo compressor chamado NES, a história reservou um capítulo especial para o console da Sega em terras tupiniquins.
A chegada do Master System ao Brasil não foi um acaso. Em setembro de 1989, após fechar um acordo com a nipônica Sega, a pequena empresa de brinquedos eletrônicos Tectoy dava um passo ousado: em vez de apenas importar o console, ela o produziu e distribuiu localmente.
Mais do que vender o videogame, a empresa apostou em publicidade massiva na TV, em anúncios coloridos e vibrantes que capturavam a imaginação das crianças. E não parou aí: a Tectoy localizou manuais, traduziu jogos, criou versões únicas e, principalmente, construiu uma relação de confiança com os jogadores, algo raro em um país onde o mercado de games ainda era visto como improviso.
E foi assim que o Master System deixou de ser apenas um produto estrangeiro e se tornou uma paixão brasileira.
Um videogame para todos
Na virada dos anos 80 para os 90, ter um console era sinônimo de luxo. Os preços eram altos, a importação limitada e muitos recorriam a clones ou pirataria para não ficar de fora - eu mesmo tinha um Hi-Top Game, que aceitava cartuchos americanos e japoneses do NES.
O Master System, no entanto, quebrou essa barreira. Produzido e distribuído oficialmente no Brasil, ele se tornou mais acessível, permitindo que milhares de famílias pudessem ter seu primeiro videogame legítimo e moderno.
Vale lembrar que o Atari 2600, anos antes, já havia aberto caminho no mercado nacional com a Polyvox e despertado a febre dos videogames por aqui. Mas enquanto o Atari representava o início, o Master System consolidou a ideia de que o videogame não era moda passageira: era uma forma de lazer duradoura, acessível e parte da vida cotidiana das famílias brasileiras.
Com o trabalho da Tectoy em ajustar preços, investir em produção e criar uma rede de distribuição eficiente em todo o país, o videogame deixou de ser um privilégio para poucos e passou a se tornar uma realidade possível para milhares de famílias brasileiras.
Jogos como Alex Kidd in Miracle World — já embutido no console — e Sonic the Hedgehog abriram as portas de mundos mágicos para crianças que até então só conheciam a TV aberta ou os fliperamas da esquina.
O Master System mostrou que videogame não era privilégio: era para todos, e essa sua aceitação foi fundamental para semear as bases de uma comunidade gamer que estava apenas começando.
As locadoras e a comunidade gamer
No fim dos anos 80 e início dos 90, as locadoras de videogame floresceram, e o Master System era presença garantida nelas. Nos bairros do Brasil, as locadoras eram o ponto de encontro de crianças e adolescentes, que alugavam cartuchos no fim de semana, trocavam dicas e até viravam a madrugada disputando quem chegava mais longe.
Alugar cartuchos virou um ritual e essa rotina do "virar a madrugada" ajudou a consolidar a ideia de jogar videogame como experiência social, algo que se estendia das lojas para as salas das casas e para as ruas.
A disputa por cartuchos - especialmente os lançamentos (que só podiam ser locados por 24 horas) - e as trocas de dicas criaram uma comunidade ativa e uma experiência compartilhada.
Reunir a galera na sala de casa para disputar uma partida de Alex Kidd, Sonic ou, mais tarde, Mortal Kombat, se tornou um ritual. Esse tipo de socialização presencial, com os amigos torcendo ou discutindo estratégias, solidificou os laços da comunidade.
As locadoras alimentavam as disputas de bairro e faziam torneios improvisados e tardes inteiras dedicadas para descobrir quem era o rei do joystick. E foi assim que a cultura gamer brasileira começou, em encontros simples, mas cheios de rivalidade e diversão.
Revistas: a internet antes da internet
O sucesso do Master System não se refletiu apenas nas prateleiras das lojas e nas locadoras, mas também nas bancas de jornal. O Brasil viveu, no fim dos anos 80 e início dos 90, um verdadeiro boom das revistas de videogame, com revistas icônicas como Ação Games, Videogame e Supergame — esta última dedicada exclusivamente aos consoles da Sega.
Essas publicações eram muito mais do que simples guias: elas se tornaram uma verdadeira febre entre os jogadores e funcionavam como a internet antes da internet, o ponto de encontro dos gamers em busca de informação, dicas e novidades.
As páginas traziam detonados completos, mapas de fases, análises de jogos recém-lançados e até códigos secretos que, muitas vezes, só eram conhecidos graças ao trabalho dos redatores e colaboradores. Para muitos jogadores, era através dessas revistas que se descobria como derrotar um chefão desafiador, encontrar itens escondidos ou liberar fases secretas.
Além disso, essas revistas transmitiam a sensação de pertencimento a uma comunidade: ao folhear uma edição, o jogador tinha a impressão de que havia milhares de outras pessoas vivendo a mesma paixão, especialmente quando se chegava ao espaço dedicado a cartas de leitores, onde fãs compartilhavam suas experiências, pediam ajuda para superar desafios e até enviavam desenhos e opiniões.
Esse diálogo direto entre público e redação ajudava a consolidar a ideia de que o videogame não era apenas entretenimento, mas uma cultura em crescimento, com identidade própria.
Jogos em português e a magia da localização
A Tectoy sabia que a conexão com o público ia além do hardware, e assim ela iniciou um trabalho de localização e adaptação de jogos de uma forma que ninguém havia feito antes. Enquanto em outros países os games chegavam em inglês ou japonês, no Brasil eles ganhavam versões únicas, falavam nossa língua e até incorporavam personagens populares da nossa cultura.
Um dos exemplos mais emblemáticos foi a transformação dos jogos da série Wonder Boy em adaptações estreladas pela Turma da Mônica. De repente, heróis ocidentais foram substituídos por figuras familiares da nossa cultura, reforçando a ideia de que os jogadores brasileiros faziam parte daquela experiência, que os games podiam dialogar diretamente com o cotidiano das crianças do país.
Outras pérolas seguiram a mesma linha criativa, como Chapolin vs. Drácula, uma adaptação que unia o humor clássico do herói mexicano (que até hoje faz um grande sucesso no Brasil) à fantasia dos jogos da Sega, resultando em algo que só poderia existir aqui.
Mas talvez o marco mais importante tenha sido a chegada de Phantasy Star, um dos RPGs mais sofisticados da época, oficialmente traduzido para o português pela Tectoy. Essa iniciativa foi histórica, pois tornou um gênero até então considerado inacessível muito mais próximo do público brasileiro, que podia finalmente mergulhar em narrativas complexas sem a barreira do idioma.
Essas adaptações não só aproximaram o público do console, mas também criaram um vínculo emocional inédito. Pela primeira vez, jogadores viam personagens, histórias e diálogos pensados para eles, reforçando a sensação de pertencimento.
Legado de um ícone
Enquanto no resto do mundo o Master System não teve um grande impacto e foi substituído por novas gerações, no Brasil ele ganhou uma vida própria. Graças à Tectoy, o console continuou a ser produzido por décadas, atravessou gerações e permanece como uma lembrança carinhosa de infância para milhões de jogadores.
Mas seu legado vai muito além da longevidade. O Master System foi o catalisador da cultura gamer brasileira: ajudou a definir amizades, impulsionou a mídia especializada, popularizou gêneros e, principalmente, mostrou que o Brasil podia trilhar seu próprio caminho no universo dos games.
Para milhões de jogadores, ele não foi apenas um console: foi a primeira janela para mundos de fantasia, um companheiro de infância que continua a viver na memória afetiva. Até hoje, seu impacto ecoa em cada encontro de fãs, em cada relançamento nostálgico e em cada sorriso de quem lembra da primeira vez que ligou o console e ouviu a música de Alex Kidd.
O Master System nos ensinou que os videogames não são apenas tecnologia: são memória, identidade e paixão coletiva.