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As mulheres que lutam para surfar as ondas gigantes mais perigosas do mundo

16 mai 2017 - 14h46
(atualizado às 14h50)
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Após anos de lobby, surfistas conseguiram a promessa de um campeonato feminino em Mavericks
Após anos de lobby, surfistas conseguiram a promessa de um campeonato feminino em Mavericks
Foto: Dayla Soul / BBC News Brasil

Desde 1999, os principais surfistas de ondas grandes do mundo se enfrentam em um torneio realizado na praia de Mavericks, na Califórnia, conhecida pelas ondas gigantes que por lá se formam. Só que até 2017, a competição estava restrita apenas a atletas masculinos.

Mas um grupo de mulheres obstinadas (incluindo algumas brasileiras) começa a vencer a discriminação.

Na primeira vez que a americana Bianca Valenti surfou uma onda de 6 m, a ferocidade do deslocamento da massa de água a arrastou para o fundo do oceano. Seu corpo foi atirado de um lado para o outro, e ela sofreu convulsões pela falta de oxigênio.

Conseguiu voltar à superfície e, enquanto nadava de volta para a areia, em Ocean Beach, perto da ponte Golden Gate, em San Francisco, a surfista prometeu que iria conquistar ondas gigantes.

Valenti, hoje com 31 anos, cresceu no sul da Califórnia e tinha apenas sete quando se apaixonou pelo surfe. Logo estava ganhando campeonatos, competindo contra meninos e meninas.

As ondas no sul da Califórnia são pequenas e as águas, mornas. A maior lesão que Valenti poderia sofrer era um corte ou alguma pancada em choques com outros surfistas ou pranchas.

O norte do mesmo Estado americano, porém, é outra história.

Lá ficam Ocean Beach e Mavericks, que muitos surfistas consideram uma espécie de Monte Everest do esporte das pranchas, sobretudo em termos de periculosidade.

Bianca Valenti, surfando na praia francesa de Biarritz, France, em 2006 - e com ondas bem menos assustadoras
Bianca Valenti, surfando na praia francesa de Biarritz, France, em 2006 - e com ondas bem menos assustadoras
Foto: Alamy / BBC News Brasil

O potencial de Mavericks como "point" de surfe já era conhecido, mas foi apenas nos anos 1970 que um surfista teve coragem de testá-lo - o então adolescente e local Jeff Clark.

Clark levou 15 anos para conseguir persuadir outros surfistas a se juntarem a ele na água gelada e para a fama de Mavericks chegar até a comunidade de big riders, como são conhecidos os surfistas de ondas grandes.

As ondas em Mavericks se devem a uma formação geológica incomum, de grande profundidade, que transforma ondulações do inverno do hemisfério Norte em "monstros" de até 18 m de altura.

Para deixar o local ainda mais perigoso, o fundo do mar tem um labrinto rochoso de túneis conhecido como o "jardim de ossos", e que teria sido responsável pela morte, em 1994, do famoso big rider Mark Foo, que se afogou quando sua prancha ficou enganchada em uma das rochas. Uma tragédia que cimentou a reputação "maldita" da praia.

Mavericks fica ainda em uma área de presença de tubarões brancos.

Ainda assim, Jeff Clark criou a competição Titãs de Mavericks, em que big riders enfrentavam os "paredões" do local.

Um "caldo" de uma onda em Mavericks pode afogar um surfista
Um "caldo" de uma onda em Mavericks pode afogar um surfista
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Os pôsteres da primeira edição continham o slogan "Homens que Surfam Montanhas". As condições eram extremamente inóspitas para os surfistas, e os organizadores sequer pensavam que mulheres poderiam querer participar.

Uma semana depois, porém, Sarah Gerhardt, estudante de doutorado californiana, desafiou as pré-concepções. Ao lado do marido surfista, ela pegou ondas em Mavericks.

Com o passar dos anos, outras mulheres se juntaram a Gerhardt em Mavericks. Uma delas é Valenti. Dez anos depois do pioneirismo de Gerhardt, mulheres passaram a surfar regularmente em Mavericks.

Mas não havia competições para elas. Para as atletas, existia também uma questão de imagem: a indústria de roupas de praia promovia o estereótipo de mulheres de biquíni, algo nada verossímil para surfistas.

Big riders, por exemplo, frequentemente surfam em águas gélidas, e por isso precisam usar macacões e até capuzes. Seus corpos são musculosos em comparação aos de modelos magras da publicidade.

Seus rostos são marcados pela água fria, com narizes escorrendo.

Mavericks tem a "onda mais perigosa do mundo"
Mavericks tem a "onda mais perigosa do mundo"
Foto: Alamy / BBC News Brasil

Essa realidade é exibida no documentário It Ain't Pretty ("Não é bonito", em tradução livre), em que Valenti e colegas expressam o desejo de serem levadas a sério como atletas e não retratadas como pin-ups.

"Descobri ainda na faculdade que, a não ser que você fosse uma modelo, não haveria como conseguir patrocínio", diz Valenti, que trabalha como sommelier em um restaurante para se sustentar.

"É algo frustrante, já passei do ponto de ficar zangada. Isso te dá problemas para aceitar seu corpo".

Em 2014, porém, o interesse em mulheres big riders estava começando a crescer, e o ano marcou a realização do primeiro campeonato de ondas grandes feminino, em Nelscott Reef (EUA). Valenti foi a campeã.

"O interesse foi fantástico e aí decidimos fazer um evento em Mavericks", lembra ela.

Sabrina Brennan, cujo lobby junto às autoridades costeiras foi crucial para vencer resistência de organizadores
Sabrina Brennan, cujo lobby junto às autoridades costeiras foi crucial para vencer resistência de organizadores
Foto: Sabrina Brennan / BBC News Brasil

A ideia ganhou corpo em 2015, quando uma moradora da região, Sabrina Brennan, ficou sabendo que as autoridades costeiras da Califórnia estavam reavaliando a autorização à realização dos Titãs de Mavericks.

Ela preparou uma apresentação em que usou o argumento de que a renovação pura e simples da licença excluía as mulheres do acesso à praia. As autoridades, então, pediram que os organizadores do torneio apresentassem um plano de inclusão feminina em 2016. Mas Jeff Clark, o organizador, se recusou.

"Temos mulheres trabalhando como juízes e nas equipes de resgate. Nossoo argumento não tem nada a ver com gênero, mas sim desempenho. As mulheres ainda não o atingiram", disse ele na época, em uma entrevista para a rede de TV CBS.

Para Valenti, os organizadores estavam temerosos de abrir as portas para as mulheres por culpa do "papel patriarcal tradicional, de tentar proteger as mulheres e não apoiá-las em tomar suas próprias decisões". Mas elas decidiram questionar esse argumento: "Se você não acredita que as mulheres são boas o bastante para competir, então você não acredita nas mulheres", agrega a surfista.

As surfistas, então, formaram um grupo - o Comitê para a Igualdade do Surfe Feminino - e entregaram uma petição para as autoridades costeiras, exigindo a inclusão de mulheres.

Em novembro de 2016, um painel aprovou por unanimidade o pedido.

Os organizadores do torneio anunciaram, então, que realizariam uma bateria feminina de uma hora de duração, com prêmio de US$ 30 mil - no masculino, o vencedor recebe quatro vezes mais. E a bateria teria apenas seis surfistas - uma delas é a brasileira Andrea Moller, 37 anos -, quatro vezes menos do que na competição masculina.

Em fevereiro de 2017, os criadores do Titãs de Mavericks pediram falência, mas Sabrina Brennan e as outras surfistas estão confiantes que a exigência da autoridades se manterá mesmo com a entrada de novos organizadores. E, mesmo sem poder disputar a competição deste ano, as mulheres sentem que a maré começa a parecer favorável.

"Não importa quem assuma, as mulheres terão que ser incluídas", diz Brennan.

Paige Alms surfa no primeiro campeonato para mulheres "big riders", no Havaí, em novembro de 2016
Paige Alms surfa no primeiro campeonato para mulheres "big riders", no Havaí, em novembro de 2016
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A irmandade de mulheres big riders obteve um vitória também no circuito profissional: em novembro do ano passado, a World Surf League realizou um campeonato feminino de ondas grandes - o Peahi Challenge - nas águas de Jaws, no Havaí, que teve duas brasileiras entre as 11 premiadas (Andrea Moller e Silvia Nabuco).

"Vimos um tremendo aumento de audiência", diz o porta-voz da WSL, Dave Prodhan.

Para Valenti, trata-se de um sinal contundente de que o surfe feminino de ondas gigantes tem futuro comercial. E ela sente que está finalmente obtendo êxito no esporte ao qual dedicou sua vida.

"O que me faz continuar (no esporte) é que um dia nunca é igual ao outro", ela diz. "Você pensa em um milhão de coisas (na água) - na segurança, nas outras pessoas, nas pedras, nos tubarões. Mas, de repente, quando a onda se aproxima, tudo fica silencioso e você só pensa em uma coisa: em tentar vencer a onda."

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