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Dias de Copa, anos de chumbo: quatro décadas de um Mundial polêmico

Ao LANCE!, Emerson Leão e Zico, personagens da Seleção Brasileira no torneio de 1978, falam de suas lembranças da competição repleta de influência dos regimes militares

21 jun 2018 - 07h17
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Há exatamente 40 anos, Argentina e Peru se enfrentaram pela última rodada do Grupo B da segunda fase da Copa do Mundo de 1978, em território argentino. O placar de 6 a 0 garantiu aos anfitriões a vaga na final pelo saldo de gols, critério de desempate que acabou tirando o Brasil da decisão. No entanto, para entender o que significou esse resultado é preciso saber um pouco do contexto histórico e de alguns personagens daquela época.

Brasil empatou com a Argentina por 0 a 0 na segunda fase (Foto: Divulgação)
Brasil empatou com a Argentina por 0 a 0 na segunda fase (Foto: Divulgação)
Foto: Lance!

Tanto Brasil quanto Argentina viviam então sob regime militar, situação comum entre os países do cone sul do continente. Os regimes de exceção juntaram esforços para reprimir vozes opositoras. Tortura, execuções, limitações de direitos e até mesmo a realização de uma Copa do Mundo como veículo de propaganda.

O Mundial de 1978 caiu como uma luva para Jorge Videla, indicado à presidência da Argentina por uma Junta Militar. Entre 1976 e 1981, Videla comandou o país e foi considerado o principal responsável pelo mais cruel governo ditatorial do período. Um evento da magnitude de um Copa era o cenário perfeito para encobrir os atentados contra a democracia.

Mais do que uma meta esportiva, sediar e conquistar a Copa era um projeto de governo, um reforço na sua imagem. O time dirigido por César Luis Menotti venceu a poderosa Holanda (sem Cruyff) por 3 a 1 na final. Durante a competição, jogadores, torcedores e jornalistas pouco tiveram contato com as atrocidades do regime, mas sabiam o que se passava por ali.

Um deles era Emerson Leão, goleiro e capitão da Seleção Brasileira naquela Copa. Segundo o atual comentarista do Esporte Interativo, os cuidados com os envolvidos no torneio eram bem evidentes e feitos pelos oficiais do exército argentino. Embora protegidos, nem tudo pôde escapar dos ouvidos dos brasileiros.

- Para as delegações e para os atletas não houve situações adversas. Lógico que a gente sabia, seríamos tapados se não soubéssemos. Lógico que havia segurança redobrada, só nos movimentávamos com os oficiais do exército, tinha o blackout, tinha o toque de recolher, nós escutávamos algumas coisas. Mas no nosso reduto nunca houve algo de excesso - declarou Leão em conversa com o LANCE!.

Ainda que nada do cenário político tenha afetado física e mentalmente os brasileiros, uma bizarrice no regulamento da Copa causou revolta nos jogadores. Na última rodada da segunda fase, Brasil e Argentina chegaram empatados e o líder do grupo garantiria vaga na decisão. Enquanto os canarinhos enfrentariam a Polônia, os hermanos pegariam o Peru, ambos no mesmo dia, mas em horários distintos.

A Seleção Brasileira bateu a Polônia por 3 a 1, às 16h45, horário local. Assim, chegou a cinco pontos e saldo de cinco gols. A seleção argentina, por sua vez, entraria em campo às 19h15, sabendo do resultado da partida anterior e do que precisaria fazer para se classificar: vencer por pelo menos quatro gols de diferença. Dito e feito: os argentinos derrotaram os peruanos por até mais, 6 a 0. Vale destacar que o Peru era considerado um dos melhores times daquele mundial.

- Ali extrapolou, tanto é que depois daquilo mudou e nunca mais houve partidas assim em horários diferentes. A gente já estava sabendo que o bicho iria pegar, quando chegamos no ônibus já estava 3 a 0 - afirmou Zico, também em entrevista ao LANCE!.

Emerson Leão também lamentou a inexplicável marcação de jogos decisivos em horários diferentes, mas, diferentemente de Zico, preferiu acreditar que uma possível "marmelada" não aconteceria. Para o ex-goleiro, o erro foi da Fifa, que na época era presidida pelo brasileiro João Havelange.

- Infelizmente, a circunstância do Brasil foi jogar antes da Argentina para eles saberem do resultado e fazerem os gols que precisavam. Não adianta você desconfiar ou achar, enquanto não há o fato, não tem comentário sobre o fato. Paciência. Quem marcou foi uma coisa chamada Fifa, e o presidente da Fifa era um brasileiro. Presidente da Fifa não é para ajudar ninguém, é para ser justo, mas foi um erro e coincidentemente foi na Argentina - destacou Leão.

As polêmicas, no entanto, não pararam por aí. Ainda na primeira fase, no jogo de estreia do Brasil, um erro absurdo de arbitragem deixou os brasileiros em alerta com o que poderia acontecer. No último minuto do segundo tempo, Zico marcou de cabeça o gol que daria a vitória por 2 a 1 da Seleção sobre a Suécia. Porém, o árbitro galês Clive Thomas anulou o lance alegando que já havia apitado o final do jogo.

- Começou logo no primeiro jogo. Você tem algum lance que você lembra que o árbitro apita o final do jogo com a bola dentro do gol? Você vê apitar antes de o cara dar um drible, mas não com a bola dentro do gol. E você sabe que aquilo mudaria a história da Copa do Mundo? Aquilo ali já me mostrou que havia algo diferente. Com a vitória a gente teria ido para outro grupo, com a possibilidade de disputar com a Argentina só na final - relembrou Zico.

O goleiro Ramon Quiroga, nascido na Argentina, mas que defendia a seleção do Peru, sempre negou qualquer facilitação de resultado para a sua pátria de origem. Mas, em entrevista ao jornal La Nación, em 1998, o arqueiro acusou alguns companheiros de terem sido subornados e lembrou que a delegação peruana recebeu a visita de militares argentinos, incluindo o presidente Jorge Videla, no dia do jogo. A história desse mundial permanece sob névoas, mas nunca houve uma prova decisiva para determinar que houve manipulação do resultado.

Claudio Coutinho: a influência dos militares na Seleção Brasileira

Assim como a Argentina, o Brasil vivia seus anos de chumbo. E a influência no futebol era tão grande ou até maior. Tanto que o presidente da CBD à época era o Almirante Heleno Nunes, um militar.

Entre 1975 e 1977, a Seleção era dirigida pelo lendário Osvaldo Brandão, multicampeão pelo Palmeiras e que tiraria o Corinthians da fila de títulos depois de sua passagem pela CBD. Brandão disputou 27 jogos à frente do selecionado, venceu 22, empatou três e perdeu apenas dois: 87,04% de aproveitamento.

Bastou um empate sem gols com a Colômbia nas Eliminatórias para Heleno Nunes militarizar de vez o produto de maior destaque da Confederação: tirou Brandão do comando e, para o seu lugar, contratou Claudio Coutinho, capitão do exército e velho conhecido nas comissões técnicas da Seleção.

- Foi ordem direta de cima, Coutinho era novo, era militar, a comissão técnica, em sua maioria era militar. Os caras foram colocados ali em cima da hora. Se você for ver pelo retrospecto do Coutinho, não tinha motivo para ele ser técnico da Seleção. Só por ser técnico do Flamengo? O que ele tinha ganho no Flamengo? Campeonato regional? E o cara vai ser técnico da Seleção? Com um monte de fera ainda... Então foi meio estranho. O cara foi colocado ali, novo, vai ouvir o que vem de cima, abaixa a cabeça e acabou - lamentou Zico, que sofreu com essa influência, já que revelou ter sido tirado do time por ordens superiores:

- Eu joguei contra a Polônia e com um minuto eu me machuquei. Para mim a Copa estava meio "zicada", foi ruim para cacete. O grande problema ali é que foi criada uma desculpa para tirar a gente do time, que não tinha sentido. O campo era ruim e por isso ele tirou, foi o grande erro. O Coutinho, que era o meu técnico no Flamengo, não tem problema, ele está lá para decidir, se tiver que sair, sai. O que não pode é você acabar um jogo e o presidente da Confederação dizer que vai entrar fulano, fulano e fulano. No dia seguinte chega o treinador e fala você, o Edinho e o Reinaldo vão sair para entrar X, Y e Z. A gente já sabe isso pela imprensa - explicou o eterno camisa 10 do Flamengo.

Formado pela Escola Superior de Educação Física do Exército, Coutinho se preparou dentro e fora do país, trazendo para o Brasil, inclusive, os testes de Cooper, utilizados por ele na preparação da Seleção para a Copa de 1970, na altitude do México. Seu conhecimento sobre os esportes era elogiado entre colegas, jornalistas e jogadores. Apesar de nunca ter jogado futebol e ter treinado outras modalidades, se mostrava um profundo conhecedor das tendências. Emerson Leão elogiou o antigo comandante, e rechaçou a hipótese de que tenham havido interferências externas em suas escolhas.

- Coutinho era um homem muito culto, muito estudioso e de muito diálogo. Era uma pessoa que eu tive o prazer e gostei de conviver, além de respeitar bastante. Ele tinha em mim uma pessoa de confiança, por ter sido capitão para ele várias vezes. Nós demos a ele o que ele precisava, pois não era um homem do futebol, mas estudou para ter conhecimento do futebol e alguns jogadores tinham diálogo com ele e o ajudavam muito. Ele tinha autoridade suficiente, se tivesse que dialogar, era com a sua comissão técnica e com seus atletas, nada mais do que isso - concluiu o ex-goleiro.

Coutinho deixou o comando da Seleção em 1979, retornando ao Flamengo para conquistar títulos cariocas e um Brasileirão. É considerado um dos responsáveis pela montagem do time campeão mundial, em 1981, dirigido por Paulo Cesar Carpegiani. No entanto não chegou a ver seus ex-comandados levantarem a taça, pois morreu afogado, em novembro daquele ano, quando praticava mergulho no Rio de Janeiro.

Entrevista completa com Emerson Leão

Qual é a primeira coisa que vem à sua cabeça quando pensa na Copa de 1978?

Quando eu penso na Copa de 1978, que foi na Argentina, eu penso em decepção, porque ela não foi conquistada por méritos, e sim por uma circunstância política que todos nós já sabemos. E isso por si só já é decepcionante.

Aquele gol do Zico anulado logo no primeiro jogo deixou todos revoltados também?

Aquilo não, aquilo foi um problema de arbitragem, algo inusitado. Por conta disso, a palavra certa seria 'ridículo', mas aquilo não influenciou na nossa classificação. Foi uma situação momentânea de jogo, nós empatamos, poderíamos ter ganho, mas depois ganhamos, nos classificamos e seguimos.

Como era a organização da Copa? Era boa? E os gramados?

O gramado de Mar del Plata não estava tão fixado ao chão, era bonito, mas com o tempo chuvoso e a raiz sem estar muito madura, escorregavam muito, estragava o gramado e atrapalhava os jogadores, mas nada que tivesse sido relevante.

Como foi a gestão do grupo por parte do Coutinho?

Só jogam 11, às vezes não dá para jogar todos. Quando você está lá na Seleção ou quando você assina um contrato, não está lá que você tem que ser titular, você que se faz titular por meio do seu empenho, da sua dedicação, da sua qualidade e da preferência do seu treinador. Todos ali eram adultos o suficiente para saber que não era necessário fazer esse tipo de coisa, cada um já sabia o seu valor, não havia isso.

Entrevista completa com Zico

Qual é a sua lembrança da Copa do Mundo de 1978?

A lembrança é que eu comecei a imaginar que Copa do Mundo para mim seria uma merda. Eu estava chegando, jogador de maior destaque em termos de ascensão, revelação do futebol brasileiro, muita expectativa. Eu já estava com 25 anos, porque eu não participei da Copa de 1974, que era um ano que eu gerei uma expectativa grande se eu iria ou não. Naquele ano eu ganhei a Bola de Ouro da Placar e não fui para a Seleção.

Você ficou ressentido de alguma forma por não ter ido em 1974?

Eu era jovem, o Brasil inteiro falando que você tinha que ir para a Seleção, fazendo gol para cacete, disputando Campeonato Brasileiro, sendo o melhor jogador, como é que você não vai ficar assim?

Como encarou os privilégios da Seleção da Argentina na Copa de 1978?

O time da casa sempre tem uma certa preferência. Por exemplo, o segundo melhor estádio que a seleção argentina jogava era em Rosário, então como primeiro do grupo ela ficava no Monumental de Nuñez, se fosse segundo, iria para Rosário, tudo preparado, mas isso aí acontece em todos os lugares, os donos da casa têm um certo privilégio.

Você acha que o Brasil 'perdeu' a Copa naquele empate com a Argentina?

Lógico, aquele 0 a 0 foi fundamental para eles, porque só dependiam deles e jogando depois do nosso jogo.

Você acha que a inexperiência do Coutinho foi um diferencial para a Seleção não vencer a Copa?

Não foi por causa disso, quem estava ali eram jogadores bons, a contusão do Rivellino acho que foi fundamental, porque era um jogador remanescente de uma Copa do Mundo, ele era a maior qualidade do elenco.

Pelo fato de ser uma ditadura na Argentina, vocês tiveram algum problema?

Nada, nada. Não tivemos nenhum problema com treinamento, deslocamento... Pelo menos eu não me lembro, não teve nenhuma influência.

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