Tradição ou expansão? Futebol europeu vive dilema — e críticas — com jogos em outros continentes
Partidas de times espanhóis e italianos nos EUA, Austrália e Arábia Saudita geram incômodo em entidades e obriga Uefa a fazer consulta a atletas após polêmica no calendário
Uma nova polêmica tomou conta do futebol europeu. Recentemente, jogos importantes vem sendo disputados em outros países e até mesmo fora do Velho Continente. Um exemplo consolidado são as Supercopas da Espanha e da Itália já são realizadas na Arábia Saudita.
A reclamação tem partido de grupos robustos de torcedores e também da Comissão para Justiça Intergeracional, Juventude, Cultura e Esporte, vinculada à União Europeia. "Estou profundamente decepcionado com as propostas de sediar partidas de liga nacional fora da Europa. Para mim, está claro: as competições europeias devem ser disputadas na Europa. O futebol europeu deve permanecer na Europa", disse o comissário Glenn Micallef, em publicação nas redes sociais.
A Football Supporters Europe (FSE) formalizou seu protesto em uma carta assinada com 423 grupos de 25 países diferentes. "O conceito de transportar jogadores, comissão técnica, torcedores e outros através dos oceanos para um jogo 'em casa' é absurdo, inacessível e ambientalmente irresponsável", disse o manifesto. A entidade afirma representar milhões de fãs de futebol no continente europeu.
Em 11 de setembro, a Uefa comunicou que vai consultar os jogadores sobre os pedidos das ligas espanhola (La Liga) e italiana (Serie A) para transferir partidas do campeonato para outros países. Um comitê executivo da instituição vai analisar essas solicitações, e antes de tomar uma decisão, "vai iniciar uma série de consultas com todas as partes interessadas do futebol europeu, inclusive torcedores", diz o comunicado.
"O futebol vive um dilema entre tradição e expansão. Levar partidas oficiais para outros países pode gerar críticas compreensíveis dos torcedores, mas também abre espaço para um novo modelo de engajamento global. Mesmo com o risco de distanciamento físico, a tecnologia e canais digitais permitem a criação de novas formas de relacionamento com o clube, o desafio é equilibrar essa balança: preservar a identidade local sem perder a chance de conquistar novos públicos e ampliar as receitas", analisa Sara Carsalade, co-founder da Somos Young, empresa de atendimento a sócios-torcedores.
Barcelona x Villarreal, previsto para o dia 20 de dezembro, teve o aval da La Liga para acontecer em Miami, nos Estados Unidos. Já Milan x Como vai acontecer em Perth, Austrália, em 6 de fevereiro, para evitar confronto com a cerimônia de abertura das Olimpíadas de Inverno no estádio San Siro, em Milão, na Itália.
"As críticas fazem sentido, mas há ressalvas. Jogos de abertura de campeonatos ou de pré temporada podem ser um ótimo ativo de exposição e internacionalização de marca. A NFL está fazendo isso e com enorme sucesso. Entretanto é importante ressaltar que no futebol profissional, os calendários repletos de jogos, somado ao desafio de logística, de fato podem comprometer e muito o espetáculo e impactar nos pontos disputados nesse modelo proposto de novo local pra jogo", aponta Reginaldo Diniz, CEO e sócio-fundador da Agência End to End, empresa de gestão e projetos esportivos.
Apesar das críticas, especialistas da área de negócios do esporte acreditam que levar jogos a outros locais também pode ser uma oportunidade para internacionalização das marcas, ativações comerciais para atrair novos torcedores e criar receitas aos clubes.
"Se bem feito, estes eventos podem movimentar valores elevadores e gerar legados eternos. A NFL é um exemplo no Brasil, projeto de uma marca americana, que faz um jogo comum da temporada regular mobilizar o turismo na maior cidade da América Latina. Os produtores conseguem captar novos tipos de clientes e aproximar a cultura do futebol americano com o gosto dos brasileiros", comenta Léo Rizzo, CEO da Soccer Hospitality, empresa voltada para o atendimento ao público nos estádios.
Considerada a liga mais rica do mundo, a Premier League, na Inglaterra, chegou a cogitar alguns movimentos há alguns anos, mas diretor-executivo da entidade, Richard Masters, em entrevista recente, declarou que a necessidade de jogar no exterior "se dissipou".
A tendência de mandar jogos para outros países ou continentes é uma tendência em outros esportes, tão ou mais ricos que o futebol, casos da NFL e NBA, o que além de visibilidade internacional e expansão para outras nações, traz também novas fontes de receitas.
Para Thiago Freitas, COO da Roc Nation Sports no Brasil, empresa que gerencia a carreira de atletas, é direto: "São aceitáveis algumas críticas a essas mudanças, mas nenhuma se sustenta após ponderação de tudo a volta de um jogo. Os torcedores dos principais clubes do mundo, mesmo na sua absoluta maioria, não sabem o que faz deles um dos principais clubes do mundo, e muito menos do que é necessário para que sigam sendo. Não sabem de onde vem e de onde virá o dinheiro que os sustenta e vai os sustentar", afirma.
Freitas, no entanto, faz uma ressalva importante quanto aos limites e prazos de comunicação, evitando que clubes de menor porte venda seus mandos para beneficiar um dos grandes clubes de seu país. "Não podemos permitir, por exemplo, que um quatro, cinco clubes de menor expressão vendam seus mandos contra uma certa equipe, dando a ela cinco jogos a menos como visitante, em um campeonato cujo título é sempre decidido entre duas ou três. Esse é um problema, mas de fácil administração, especialmente em países nos quais existe uma real liga de clubes."