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Prisão de Limeira tem Copa do Mundo com 'juiz ladrão' e final entre Brasil e França

Quadra fica aberta para os detentos do Centro de Ressocialização apenas duas horas pela manhã e duas horas à tarde

4 dez 2022 - 05h10
(atualizado às 07h38)
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Centro de Ressocialização de Limeira promove partidas entre os detentos durante o período da Copa do Mundo
Centro de Ressocialização de Limeira promove partidas entre os detentos durante o período da Copa do Mundo
Foto: Tiago Queiroz / Estadão / Estadão

A quadra de esportes é vigiada por uma torre de segurança sempre ocupada por um guarda. Os muros de 7m parecem ainda mais intransponíveis por causa de uma cerca de arame farpado que arrepia só de olhar. Mesmo assim, os detentos do Centro de Ressocialização de Limeira, cidade a 156 quilômetros de São Paulo, se esquecem do cárcere por ali, principalmente durante a Copa do Mundo. Se a liberdade tivesse um formato, ela seria uma bola.

Jogos numa prisão são irônicos. Um dos árbitros é Jonatas Philipe de Souza Sotopietra, de 32 anos, que cumpre pena de dois anos por assalto (artigo 157 do Código Penal). "Os papéis estão invertidos, né? Estou pagando pelo meu erro e, na hora do jogo, eu decido o certo e o errado". Minutos antes dessa conversa, um agente de segurança tinha feito uma piada que estava pingando na área. "Aqui dentro, todo juiz é ladrão".

O torneio não chega a ter um tribunal de justiça, mas a parte disciplinar é levada a sério. Os cartões são os mesmos do futebol de salão. O mais usado é o amarelo, dado por reclamação. Palavrões também são advertidos. "Discussão sempre tem, mas nunca vi briga", diz o juiz.

A entrada na cadeia foi tensa. Dois idosos, já com cabelo branco, saem para uma visita médica. Algemas, olhar para o chão. Ali, todo mundo só diz "sim, senhor". A gente fica com medo de fazer alguma coisa errada ou que descubram um mandato de prisão sabe-se-lá-do-que por causa de um homônimo. Os agentes também ficam ressabiados, não é comum a entrada de jornalistas. Uma decisão judicial delimitou com rigor o foco da reportagem do Estadão na última quarta-feira: só esporte.

A quadra fica aberta apenas duas horas pela manhã e duas horas à tarde. "O futebol ajuda a esquecer da realidade e a lembrar da vida nas ruas", diz Leonardo Lopes Cordeiro, de 25 anos, preso por se relacionar com uma menor de idade. Essa sensação de Leonardo é cronometrada por um relógio digital, que fica junto com o mesário Fábio Aguiar, de 39 anos, preso por um ano por venda de conteúdo pornográfico de menores (infração aos artigos 240 e 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente). É a liberdade que dura apenas 20 minutos mais os acréscimos.

Desde 2020, a unidade prisional organiza dois torneios anuais. Por causa da Copa, os times homenagearam as seleções. A final foi disputada entre Brasil e França. Deu Brasil nos pênaltis (fica a dica para o torneio real). Jogos pegados, melhores que alguns do Catar. O entusiasmo com a Copa diminuiu até o branco das paredes. O professor Fabio Pereira (nome fictício) usa a experiência de desenhista e chargista para ensinar os reeducandos a produzir imagens sobre a Copa. Os presos fizeram painéis coloridos, bandeiras e desenhos para decorar o centro de convivência.

Detentos do Centro de Ressocialização de Limeira cuidam da quadra castiga pela chuva para que os jogos possam acontecer
Detentos do Centro de Ressocialização de Limeira cuidam da quadra castiga pela chuva para que os jogos possam acontecer
Foto: Tiago Queiroz / Estadão / Estadão

Todos podem assistir aos jogos em um dos 19 alojamentos nas tevês de 14 polegadas presas no alto das paredes. Emerson Vieira, preso por tráfico de drogas pela segunda vez, acompanha seu primeiro Mundial na prisão. "Claro que eu preferia estar na rua, mas muitos são desportistas e gostam de assistir aos jogos. Dá para sentir um pouco do clima", diz o jovem de 25 anos.

Mas prisão é um lugar traiçoeiro. Quando você pensa que está com a bola dominada, a realidade vem e te dá um carrinho por trás. É um lugar de passagem, de transição, do crime para a sociedade. As mãos que fizeram um filé de frango à milanesa macio e um manjar de abacaxi que poderia ser servido numa rotisserie de São Paulo são as mesmas que mataram a companheira. Feminicídio. Foi o mesmo crime que cometeu o homem que deixou o jardim impecável na área administrativa.

De acordo com a Secretaria da Administração Penitenciária, os Centros de Ressocialização (CRs) são unidades destinadas a custodiados com menor nível de periculosidade. Portanto, ele é diferente de uma penitenciária tradicional. Aqui estão réus primários, com pena inferior a 10 anos, sem envolvimento com facções criminosas. Em geral, são presos que estão no último passo para o retorno à sociedade. O ambiente é mais humanizado e menos violento que as cadeias que povoam nosso imaginário, como a de Carandiru, filme de Hector Babenco, ou a de Shawshank, do filme Um sonho de liberdade.

Aqui, a cor predominante é o amarelo: no portão principal e nas portas dos alojamentos. Essas portas não ficam trancadas, o que permite a circulação dos presos. No dia da visita do Estadão, os banheiros estavam limpinhos, sem cheiro de xixi ou do número 2. Quem está aqui é tratado pelo nome; apelidos são proibidos. Existem banheiros adaptados para idosos e deficientes físicos e uma horta com árvores frutíferas, canteiros e estufas.

As ações sociais são conduzidas pela Prefeitura, Poder Judiciário, Instituto Ação pela Paz e Senai. Para ser admitido ali, os reeducandos passam por uma entrevista pessoal. Os pedidos de admissão são vários e chegam até por carta, como conta o diretor Fernando Gonçalves Pedro.

Há estudo e trabalho nesta prisão. As aulas são oferecidas de segunda a sexta-feira à noite por professores da rede estadual para 155 presos. O trabalho é um dos pilares da ressocialização. Hoje, 16 empresas possuem parcerias com a Fundação de Amparo ao Preso (Funap e contratam 243 reeducandos, oferecendo remuneração de um salário mínimo de acordo com a Lei de Execuções Penais.

O local funciona acima da sua capacidade. Hoje, são 280 reeducandos (esse termo é preferível a preso ou detento de acordo com os especialistas) onde caberiam 229, números que, na visão do diretor, não comprometem as atividades.

O futebol é tão importante aqui dentro porque representa uma ponte imaginária para o que os reeducandos faziam antes da prisão. Jonatas era diretor esportivo do Paulicéia, time de várzea de Piracicaba. Leonardo era atacante em um time da Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo. E o futebol também aponta para o futuro. Um reeducando que não quis se identificar disse que tinha começado o jogo perdendo, mas que estava tentando virar o placar. Fiquei em dúvida se ele falava do campeonato, da sua própria vida ou dos dois.

Estadão
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