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Libertadores

Marcelo Gallardo, o 'Napoleão', deixa legado histórico na América do Sul, mas tem futuro incerto

Técnico argentino se despediu do River Plate após 13 títulos em oito anos e mira novos ares para 2023

26 out 2022 - 15h10
(atualizado em 28/10/2022 às 09h56)
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É difícil traçar um paralelo à história de Marcelo Gallardo no River Plate, seja como jogador ou como técnico. O talento com a camisa 10, também foi visto quando passou a atuar à beira do campo. São mais de 20 títulos no currículo, sendo 13 como treinador e a paixão fanática da torcida. Nos oito anos como técnico, construiu um legado difícil de igualar na América do Sul. Levantou os troféus do Campeonato Argentino, da Copa Argentina (três), da Supercopa Argentina (dois), da Libertadores (dois), da Copa Sul-Americana e da Recopa Sul-Americana (três).

A despedida de Gallardo repercutiu inclusive no Boca Juniors. O ex-meia e atual diretor de futebol do time xeneize, Juan Román Riquelme, destacou o trabalho do técnico do seu maior rival. "O futebol argentino perde um grande treinador. Com certeza, os seus torcedores perdem um dos grandes ídolos de seu clube", disse.

Apelidado de Napoleão por ser considerado um grande estrategista, Gallardo se notabilizou neste período por montar times organizados e competitivos. Seu repertório tático é um problema para os técnicos adversários. Suas equipes gostam de trocar passes, muitas vezes com toques curtos e rápidos, o que envolve os times adversários. Ele também se destaca ao colocar em prática alguns preceitos táticos do futebol atual: pressão alta e intensidade com a bola.

Desde a chegada de Marcello Gallardo ao River em 2014 até o dia do anúncio de sua despedida, o time foi quem teve a maior média de posse de bola (60,8%), finalizações (14,9) e finalizações certas (5,2) nos torneios do futebol argentino, segundo números da plataforma de estatísticas Opta.

Um outro atributo de Gallardo é a remontagem das equipes. O talento para repor destaques vendidos ao futebol europeu é o que ajuda a entender a força do time ano a ano. A base produz ótimas safras de jogadores, enquanto o departamento de futebol do clube pinça ótimos jovens em outras equipes dentro e fora da Argentina. O processo de recriar times sem perder o nível de jogo é um diferencial do seu trabalho.

Cinco jogadores da seleção argentina campeã da Copa América no ano passado foram treinados por Gallardo. O clube tem uma filosofia e um projeto bem definidos, com a ajuda de outros profissionais, como Gustavo Grossi, que se destacou comandando a base do clube portenho e desde 2021 ocupa a mesma função no Internacional.

"Considero que foi, nos últimos anos, o único treinador sul-americano que além de treinador profissional, foi um formador. Considero o Marcelo o melhor formador de atletas de todas as idades no continente, porque ele melhorou o rendimento de atletas de 30 anos e também realizou junto ao elenco principal profissional transições fantásticas de atletas jovens", disse Grossi ao Estadão.

Gallardo e sua comissão técnica têm profundo conhecimento das operações das divisões de base do clube. No período do presidente Rodolfo D'Onofrio entre 2013 e 2021 no poder, o clube evoluiu na captação de garotos, incrementou a infraestrutura para dar condições favoráveis ao amadurecimento de jovens estrelas e estabeleceu uma metodologia única em todas as divisões voltada a um futebol "para frente".

O domínio do River Plate só não foi maior no continente sul-americano devido ao crescente poderio financeiro das equipes brasileiras frente aos seus rivais do continente. Ele deixou marcas quando ganhou, mas também quando perdeu.

Gallardo teve seu trabalho dissecado por Abel Ferreira antes dos duelos entre Palmeiras e River Plate pela Libertadores de 2021 em que o time brasileiro levou a melhor após dois grandes confrontos.

"Parabéns pelo excelente jogo que fizeram hoje. Vamos ganhar e vou dedicar-te a vitória!", confessou Abel no papo com o argentino, em seu livro Cabeça Fria, Coração Quente, enaltecendo a qualidade de seu adversário, após a segunda partida.

As origens de Marcelo

Filho de uma dona de casa e um operário que foi padeiro e até vendeu sorvete, Gallardo fez parte de uma família que estava longe do luxo, mas que não faltou comida na mesa. Entrou na base do River Plate aos 12 anos e o custo de conciliar estudos com o futebol foi alto. Acordava às 6h da manhã e só voltava para casa às nove da noite, tendo que passar quatro horas no transporte público nos trajetos de ida e volta. Absorveu do pai Máximo o companheirismo que hoje reproduz na relação com seus filhos.

O temperamento complicado na juventude arrefeceu conforme os anos se passaram. "Sou apaixonado, sou 'sanguíneo', reajo a certas coisas que estão acontecendo comigo. Ainda assim, com o tempo consegui lidar com algumas dessas frustrações que muitas vezes aparecem quando algo não está sendo bem feito, injustiça, por exemplo. Mas comecei a ter um pouco mais de cuidado com a forma como me expresso. Antes era pior", confessou em entrevista ao Clarín, dizendo que fez terapia aos 20 anos.

Gallardo encerrou sua grande carreira como jogador no Nacional, do Uruguai, e virou treinador do próprio time na temporada seguinte, comandando seus ex-companheiros em campo. A experiência foi tratada por Gallardo como "um curso acelerado" para ser treinador. Ele ajudou a equipe a ganhar o Campeonato Uruguaio naquele ano.

O desempenho de destaque o levou de volta para casa. O começo de Gallardo no River Plate empolgou torcida e imprensa. A equipe emplacou 32 jogos sem perder, igualando o recorde da história do clube. Na primeira temporada, ganhou o título da Copa Sul-Americana. Por ser um ídolo ainda como jogador, também contou com grande respaldo interno para superar as adversidades e ganhar apoio em momentos difíceis.

Temporada atual em baixa

O início desta temporada foi de frustrações e a crise se instalou. O time de Gallardo marcou apenas nove pontos nas oito primeiras partidas do Campeonato Argentino, o que gerou críticas pelos resultados e rendimento em campo abaixo do esperado. O técnico até ficou sem dar entrevistas coletivas após os jogos. Na Copa Libertadores, foi eliminado precocemente nas oitavas de final, algo que não acontecia desde 2016.

A era Gallardo já dava sinais de que chegava ao fim. O River Plate terminou na terceira posição do Campeonato Argentino e teve papel crucial para definir o Boca Juniors como campeão. Enquanto o rival empatou com o Estudiantes, o River poderia "aliviar" para o Racing, que disputava o título. O time de Gallardo venceu a partida e ajudou justamente o Boca a levantar a taça. Após a partida, o técnico pontuou a importância de valores como caráter e integridade.

"O que eu gostaria de destacar é que, num país onde todos suspeitam de tudo, onde tudo é tão mesquinho, que parece até vazio de valores… Nós, dentro do futebol, às vezes temos a possibilidade de plantar sementes que signifiquem que, acima de tudo, possa se ter respeito e dignidade pela profissão, pelo futebol, pela paixão que esse esporte nos gera".

Se o futuro de Marcelo Gallardo é cercado de incertezas, o passado no River Plate já está escrito em pedra. Uma estátua em sua homenagem, com 7,2 metros de altura e pesando quase sete toneladas, será inaugurada em 9 de dezembro, no dia de aniversário da "final eterna" da Libertadores de 2018 sobre o Boca Juniors.

Qual o futuro de Gallardo?

O próximo passo de Marcelo Gallardo pode ser em solo europeu. A experiência exitosa e o currículo invejável o credenciam a treinar um clube do Velho Continente, embora não tenha levantado taças na última temporada. Seu nome já é conhecido internacionalmente e seu trabalho não passou batido pelo técnico Pep Guardiola, que elogiou o argentino.

"O que Gallardo tem feito no River é incrível. Precisamos ver o futebol sul-americano. Parece que existe apenas a Europa no mundo, e eu não entendo como Gallardo não é indicado entre os melhores treinadores do mundo. Não apenas por um ano, mas sim por tanto tempo", disse Guardiola ao canal TNT Sports, em 2019.

Não faltam exemplos de técnicos argentinos vitoriosos na Europa. Marcelo Bielsa, Mauricio Pochettino e Diego Simeone são alguns dos principais nomes. Mas ao contrário dos compatriotas, que entraram no mercado europeu treinando equipes menores, Gallardo pode iniciar sua trajetória de forma diferente, já que é dono de um currículo mais prestigiado.

Em maio do ano passado, o diário Olé informou que Gallardo foi tentado pela Roma, que recebeu uma resposta negativa do treinador. Nos últimos anos, ele também foi sondado por alguns clubes brasileiros, mas a pedida salarial milionária - mais de R$ 2 milhões mensais, segundo a imprensa argentina - assustou.

O técnico Lionel Scaloni faz um ótimo trabalho de recuperação na seleção argentina e elevou a equipe de patamar, mas caso o desempenho na Copa do Mundo do Catar seja abaixo das expectativas pode ganhar a concorrência de "Napoleão". No Brasil, os técnicos dos principais clubes também podem coçar a cabeça. A imagem de Gallardo deixa uma sombra e seu nome deve novamente ser sugerido para assumir um time brasileiro em 2023.

Estadão
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