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Terra na Copa

Opinião: para onde foram os moradores de rua de Copacabana?

Reportagem do Terra circulou por duas noites pelo bairro que recebe o maior número de turistas estrangeiros na Copa do Mundo e encontrou número bem inferior ao habitual de pessoas vivendo e/ou dormindo nas ruas. Ficou a pergunta que não quer calar: teria o poder público "maquiado" Copacabana e retirado os moradores de rua no pior estilo "para gringo ver"?

20 jun 2014 - 07h30
(atualizado às 12h47)
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Foto: André Naddeo / Terra

Há cinco anos escolhi Copacabana como a minha morada no Rio de Janeiro. Há cinco anos me considero um privilegiado por viver a apenas duas quadras da praia, poder pedalar na orla e ter, sobretudo, uma maior qualidade de vida. Fazer tudo a pé. Não precisar do carro para comprar pão na padaria. Pois esta é uma das grandes vantagens deste bairro: além de plano, tudo está perto.

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Há cinco anos vivencio também as mazelas de uma região que, exageradamente ou não, é tida por muitos como um retrato de uma burguesia decadente. O glamour da década de 20 deu lugar aos assaltos frequentes, à sujeira que se acumula nas ruas, às baratas e ratos que são frequentadores assíduos de Copacabana. Assim como aos milhares de turistas estrangeiros, que se espalham pela orla, pelas ruas mais afastadas da praia, e deixam felizes os empresários com uma taxa de ocupação anual nos hotéis que ultrapassa os 75%.

Há cinco anos, por fim, me acostumei a comprar cigarros na mesma banca de jornal. Ela fica localizada em frente a igreja Nossa Senhora de Copacabana, ao lado da praça Serzedelo Corrêa, bem no que pode ser considerado o "miolo" do bairro, na altura do posto 3. Não lembro de uma única vez em que, ao me dirigir para a banca no intuito de sustentar este vício que insisto em manter (juro que estou pensando em parar), não tenha visto moradores de rua por ali.

Justamente por estar ao lado da igreja católica, muitos dos que optam (ou simplesmente não têm escolha) em viver sem um teto no Rio de Janeiro (segundo a SMDS, no Censo de População de Rua, aponta o número de 5.580 pessoas quem vivem nas ruas) ficam ali localizados a espera de uma caridade - seja dinheiro, uma "quentinha", ou mesmo um afago.

Diminui número de moradores de rua em Copacabana no Mundial:

Desde o final do ano passado, uma família inteira ali se instalou, bem ao lado da tal banca de jornal. Com um carrinho destes de supermercado, guardavam roupas, suprimentos adquiridos e com um colchão, passavam o dia inteiro ali. O casal tinha dois filhos na faixa entre cinco e oito anos, e um bebê. E uma cadela.

Lembro que nas vezes em que, por hábito, ficava por ali observando as manchetes dos jornais do dia enquanto pitava, que o nome da cachorrinha, surrada e com muitas feridas, era Filó. "Filó, vem para cá, Filó", "sossega, Filó", costumavam pedir enquanto a danada insistia em pular em quem se aproximava com algum donativo. Pois bem.

Há cerca de três semanas que, mantendo minha rotina, não observo mais aquela família por ali - apenas as vendedoras de velas ao lado da igreja permaneceram. Com o início da Copa do Mundo no Brasil, como acontece no Carnaval, no réveillon, e ocorreu, por exemplo, na Jornada Mundial da Juventude, no ano passado, Copacabana concentrou uma grande parte dos turistas estrangeiros que elegeram o Rio como a cidade base (um terço dos 600 mil "gringos" que foram ao Brasil para o Mundial, de acordo com o Ministério do Turismo).

Mas para onde foi aquele casal? As crianças? O bebê? Cadê a Filó?

Em um primeiro momento, sem falso moralismo, pensei se tratar apenas de um movimento migratório. Talvez eles se cansaram dali, dessa vida, pensei. Em uma conversa com um amigo, porém, ele me fez a pergunta: "cara, você reparou que não tem mais morador de rua ali na (praça) Serzedelo Corrêa?". Na hora veio o clique. Na hora pensei na família, nas crianças, e na Filó. E fiquei com a pulga atrás da orelha.

No dia do jogo do Brasil contra o México, na última terça, por volta de 22h, resolvi andar pelo bairro. Não é somente perto de casa que os sem teto se concentram em Copacabana. A Praça do Lido, no início do bairro, sempre teve um alto número de pessoas dormindo ao relento. O mesmo sempre ocorreu em ruas como Barão de Ipanema, e mesmo ao lado de agências bancárias ao longo de toda a extensão da avenida Nossa Senhora de Copacabana, a principal.

Caminhei aleatoriamente por uma hora e meia: passei, além da avenida Nossa Senhora de Copacabana, por praticamente toda a rua Tonelero, a última das grandes avenidas do bairro antes da divisão com os morros - separando a localidade da Lagoa Rodrigo de Freitas e de Botafogo. Andei por uma hora e meia também por ruas menores, paralelas, como Leopoldo Miguez e Domingos Ferreira. Saldo: sete moradores de rua. SETE.

Sete moradores de rua é o que se costumava encontrar, por exemplo, em dias "normais" apenas na praça Serzedelo Corrêa, ou mesmo no Lido. É quase o mesmo número de pessoas da família da banca de jornal. No dia seguinte, peguei uma bicicleta, acoplei minha micro-câmera e saí registrando pelo mesmo período de tempo, no mesmo horário e por circuito similar.

Apenas diferenciando as ruas paralelas e estreitas da noite passada, me deparei com nove pessoas dormindo na rua. NOVE. Detalhe: em nenhum dos dias me deparei com crianças deitadas no chão, ou lançando aquela velha e dolorosa pergunta: "traz uma coberta para mim, tio?".

Mesmo nos túneis que ligam a rua Barata Ribeiro com a Raul Pompéia, e a rua Tonelero com a Pompeu Loreiro, locais em que, até por ser abrigo contra a chuva, costumam receber um alto número de sem teto, me deparei apenas com dois homens dormindo no primeiro trecho citado. No segundo, ninguém.

Duas pessoas a mais que a noite anterior mantiveram a pergunta desta Copa do Mundo no Rio de Janeiro que não quer calar: onde foram parar os moradores de rua de Copacabana? Para onde eles foram? Escolheram por conta própria? Foram obrigados a deixar o local para uma maquiagem típica para "gringo ver"?

<p>Luiz Carlos Mallet, ex-morador do bairro</p>
Luiz Carlos Mallet, ex-morador do bairro
Foto: André Naddeo / Terra

Resolvi, então, ouvir a opinião de outras pessoas. Da mesma forma: aleatoriamente. Em meio aos milhares de turistas, pesquei quatro depoimentos de quem mora e/ou frequenta Copacabana. Por blocos, pois:

Luiz Carlos Mallet, professor. Ex-morador do bairro, mas assíduo frequentador.

"Não ter (morador de rua) é uma palavra forte. Existe ainda, mas em menor escala. Nesse período da Copa a gente tem visto poucos. Parece que o serviço social da prefeitura andou fazendo um trabalho aí e levou uma grande parte.

Lembra muito aquela questão: vamos varrer o lixo para debaixo do tapete. Vai chegar a visita, pois vamos arrumar a casa. É mais ou menos isso. Deixa acabar a Copa do Mundo e a gente vai ver que tudo isso vai voltar".

<p>Elizabeth Mota, aposentada</p>
Elizabeth Mota, aposentada
Foto: André Naddeo / Terra
Elizabeth Mota, aposentada, moradora há 66 anos (vida toda).

"Eu senti essa diferença. Diminuiu realmente. Eles tiraram para dar aquela impressão de que melhorou um pouco. Mas eles vão lá para cima. Vão para outras ruas, como a Santa Clara, e bairro Peixoto (sub-divisão de Copacabana, já na "fronteira" com Botafogo). Eles vão dormir em algum lugar. Porque eu não acho que tiraram eles para algum abrigo. Eu acho que não.

Sinceramente, eu acho que é por causa da Copa do Mundo. Quando acabar, todo mundo vai voltar, porque as autoridades não tomam providência, e não dão apoio para essas crianças e adolescentes. Eles ficam por aí. Eles não tem opção nenhuma".

Alício Guilherme Souza, advogado, morador de Copacabana há 10 anos.

"Não tem mais morador de rua aqui em Copacabana na Copa do Mundo. Simplesmente por causa do turismo. Nos Jogos Pan-Americanos (em 2007) também não havia morador, e nem prostituta na (avenida) Atlântica (a da praia), não havia pedinte, nada. Está acontecendo a mesma coisa agora, com a diferença de que agora está ocorrendo um volume de turistas muito maior. Tem muita gente de fora. Às vezes você até vê um cara pedindo (esmola), mas você percebe que ele não é morador de rua. Não tem morador de rua nessa época. E não vai ter".

<p>Cláudio Lopes, comerciante</p>
Cláudio Lopes, comerciante
Foto: André Naddeo / Terra
Cláudio Lopes, comerciante, morador há 40 anos (vida toda)

"Por conveniência, sim, diminuiu o número de moradores. Quando acabar a Copa do Mundo vai voltar tudo do jeito que estava antes. A realidade do morador de rua é que aqui ele tem condição de arrumar alguma coisa. O morador de rua que atua em Copacabana tem moradia fixa, mas onde ele mora ele não consegue sobreviver. Aqui ele está sempre contando com esmolas e doações de pessoas que acham que estão fazendo o bem. Cria uma zona de conforto para eles.

As políticas sociais estão equivocadas, e o poder público não está agindo de maneira coerente. É muito fácil o estrangeiro falar que veio aqui e não viu morador de rua. Vai saber, às vezes foram obrigados ou até remunerados para estarem em um abrigo. Não sei como funciona isso. Se você quer se mostrar para o mundo, você tem que mostrar o que você é, mostrar a sua realidade. Mas politicamente isso não é correto. É assim que funciona".

O outro lado

Como reza a regra do bom jornalismo, obviamente que era preciso ouvir a secretaria municipal de Desenvolvimento Social (antes era de Assistência Social, mas o nome da pasta mudou) sobre o fato. Se houve recolhimento involuntário (nenhum agente pode levar a força morador de rua para abrigos, é apenas pelo convencimento), se houve aumento de operações no local e etc. Eis a resposta:

"O serviço de abordagem social às pessoas em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro, durante a Copa do Mundo, segue o mesmo padrão do trabalho realizado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) ao longo de todo o ano. Em todas as regiões do município a secretaria promove um monitoramento diário, inclusive em Copacabana.

No bairro, o trabalho é realizado por equipes do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) Maria Lina de Castro Lima, formada por assistentes sociais, psicólogos e educadores sociais. O serviço, que acontece nos períodos diurno e noturno, é planejado conforme mapeamento e necessidade identificada pela equipe da 2ª Coordenadoria de Desenvolvimento Social (CDS), responsável pela região.

Durante as ações, os profissionais do município oferecem os serviços da rede de proteção social da Prefeitura do Rio, inclusive a possibilidade de tratamento contra a dependência química. A atuação da SMDS visa a construção de projetos de vida para a população em situação de rua da cidade do Rio de Janeiro. O trabalho é processual e requer a adesão do usuário, pois ele deve ser o protagonista da própria história. Cabe a SMDS oferecer ações contínuas e permanentes, que incluam encaminhamentos para a rede de acolhimento disponível, onde as pessoas recebe cuidados básicos e acompanhamento técnico multi profissional.

De acordo com informações de nossas equipes, neste momento, os principais pontos de concentração de pessoas em situação de rua no bairro ficam na Rua Almirante Gonçalves com Avenida Atlântica e na Rua Barão de Ipanema. São localidades que tem recebido ações diárias, inclusive noturnas. Em ambos, o perfil da população em situação de rua é de maioria adulta, homens, muitos catadores de material reciclável, que não aceitam as ofertas de acolhimento dos assistentes sociais do município.

Este ano, a SMDS realizou 2.488 abordagens sociais à pessoas em situação de rua na Zona Sul da cidade. Sendo que esse número não indica o número de pessoas abordadas, já o mesmo cidadão pode ter sido abordado mais de uma vez."

Moradores de Copacabana, cariocas, brasileiro, turistas, enfim. Cada um tem o direito de tirar a própria conclusão. Com este texto em primeira pessoa, fecho esta reportagem-crônica-opinativa com uma frase que guardei do último personagem da entrevista, Cláudio Lopes, o comeciante e morador há 40 anos de Copacabana que, para mim, é o resumo desta ópera grotesca. "Eu preciso esconder os meus defeitos para que eu não seja criticado. Se os meus defeitos aparecerem, o mundo cai cobre mim". Clap, clap e clap.

Fonte: Terra
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