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Shūkatsu: por que a forma de recrutar empregados novatos está mudando no Japão

Mudança gera mais liberdade, mas também ansiedade para a nova geração de formandos em busca de uma vaga no mercado de trabalho.

18 out 2020 - 19h35
(atualizado em 22/10/2020 às 16h23)
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Todos os anos, no início de abril, milhares de futuros formandos no Japão percorrem a cidade de roupa social preta, carregando uma maleta contendo apenas seus currículos, na esperança de conseguir um emprego nas empresas mais conceituadas do país.

Foto: BBC News Brasil

Este ritual faz parte de um processo de contratação de um ano, que acontece no penúltimo ano de universidade: a chamada temporada de "shūshoku katsudō" (que pode ser traduzida como "exercício de busca de emprego").

Conhecido como "shūkatsu", na forma abreviada, é quando estudantes do terceiro ano deixam as salas de aula para participar de seminários sobre carreiras organizados pelas universidades. No último ano, eles se candidatam a vagas e passam por um processo de seleção estruturado para garantir que estarão empregados quando se formarem.

O shūkatsu é o processo de recrutamento tradicional e predominante em todo o Japão. É vital não apenas para os empregadores e os indicadores das universidades, como também para os estudantes, cujo status social pode ser elevado pelo resultado de sua busca por emprego.

Esse sistema foi criado em 1953 pela Keidanren, organização empresarial formada por mais de 1,3 mil grandes companhias japonesas e 100 setores da indústria.

Devido à escassez de mão de obra durante o período de rápido crescimento econômico do Japão no pós-guerra, a procura por recém-formados aumentou. O sistema shūkatsu oferecia emprego vitalício aos jovens que, por sua vez, proporcionavam estabilidade para as principais empresas japonesas.

Mas, após seis décadas, essas regras estão com os dias contados. Em outubro passado, o Keidanren anunciou que aboliria o cronograma tradicional de procura de emprego, assim como as diretrizes vigentes sobre como as companhias recrutam recém-formados.

Como a baixa taxa de natalidade do Japão resultou em um declínio da população na última década, as empresas estão competindo por um grupo cada vez menor de potenciais funcionários. As companhias que não pertencem à Keidanren, ou seja, que não estão sujeitas às diretrizes, vêm aliciando estudantes promissores antes mesmo de as empresas membros começarem a recrutar.

E com companhias estrangeiras oferecendo salários mais altos e planos de carreira mais vantajosos do que as homólogas japonesas, a competição global por trabalhadores obrigou as empresas a repensarem sua estratégia.

Embora as novas diretrizes da Keidanren ainda não tenham sido finalizadas, alguns millennials japoneses creem que priorizar a paixão em detrimento das normas sociais pode resultar em uma carreira mais gratificante.

'Não esperava isso tão cedo'

"Pensei que poderia haver uma mudança em 20 anos, [mas] sem dúvida eu não esperava isso tão cedo", diz a empresária Akiko Naka, de 34 anos.

Em 2011, antes das mudanças no recrutamento, Naka fundou a plataforma de busca de emprego Wantedly, depois de ter trabalhado por quatro anos na Goldman Sachs, colocação que conseguiu por meio do shūkatsu.

Em vez de listar descrições de cargo e salários, como os tradicionais anúncios do shūkatsu, o Wantedly se propõe a combinar candidatos e empresas por meio de valores e interesses em comum.

Ao anunciar vagas em empresas menores que não fazem parte da Keidanren — muitas das quais estão localizadas fora das grandes cidades —, a Wantedly conecta essas companhias com indivíduos que estão abertos a seguir uma trajetória profissional alternativa, rompendo com a tradição e estabilidade das grandes empresas.

"Quando você é estudante, é difícil ver o cenário como um todo. Todos caímos na armadilha de seguir a maioria e perdemos a chance de descobrir o que existe mais por aí", acrescenta Naka.

"Com o sistema shūkatsu, houve um descompasso entre o diploma para o qual você está estudando e encontrar uma função relevante para ele... Em vez de se candidatar a uma empresa pelo status da marca, há a necessidade de outras ótimas empresas menos conhecidas de ter a mesma oportunidade."

A empresa de mídia social Gaiax é uma das companhias que aproveitaram o fato de não estar sujeita às regras da Keidanren - e adota uma janela de contratação flexível desde 2013.

Em vez de usar o rótulo tradicional de "contratação de recém-formados", eles anunciam "contratação de potenciais" para registrar seu interesse por jovens em qualquer etapa de vida.

"Contratamos com base em seu potencial", explica o gerente de recrutamento Takumi Nagare. Segundo ele, não importa se você terminou o ensino médio ou a universidade.

Embora 60% a 70% dos jovens contratados deixem o emprego após alguns anos para abrir suas próprias empresas, Gaiax diz que atrai profissionais que desapegaram da ideia de emprego vitalício atrelada à cultura shūkatsu.

"Não achamos negativo que as pessoas queiram mudar de emprego ou abrir seus próprios negócios", diz Nagare.

Segundo ele, o recrutamento não tradicional se adequa a empresas e jovens que buscam uma trajetória profissional menos rígida.

"Mas se [outros] candidatos tiverem metas que correspondam à visão de longo prazo da empresa, eles poderão trabalhar aqui até os 60 ou 70 anos."

'A mudança tem que começar em algum lugar'

Para muitos estudantes que acreditavam que encontrariam um emprego por meio do shūkatsu, o anúncio de que o modelo está sendo abolido gerou inquietação.

"A falta de um cronograma pré-definido amplia as opções de como os alunos escolhem suas carreiras, o que, por sua vez, gera ansiedade", diz Yuji Kadono, representante da organização sem fins lucrativos En-courage.

O grupo organiza reuniões para estudantes que estão fazendo o shūkatsu com outros que já passaram por essa experiência.

Até agora, diz ela, os jovens só precisavam seguir a tradição — mas com o novo sistema, terão que ser mais proativos.

"Mas, em meio à sensação de ansiedade, há a expectativa de que, ao adotar as mudanças, poderá haver mais oportunidades no futuro", diz Kadono.

Naka, da Wantedly, compara esse período de transição à maneira como a postura em relação ao casamento mudou ao longo do tempo.

"Quando é um casamento arranjado, você pensa em como pode se adaptar à outra pessoa para fazer o casamento funcionar. Mas se as pessoas optam por se casar com quem elas querem, isso dá a elas mais liberdade, mas também um leque maior de opções, tornando mais difícil encontrar a combinação certa", diz ela.

"Mas é também por isso que novos tipos de negócios, métodos e ideias estão chegando para ajudar a facilitar esse processo."

A experiência pode ser difícil, mas Yuriko Yamaguchi, de 30 anos, agradece a mudança. Ela acha que "oferece uma oportunidade para os estudantes serem mais maduros em relação aos próximos passos que vão dar".

Yamaguchi viveu uma experiência peculiar com o shūkatsu, sendo uma das poucas alunas de seu ano que ignoraram a tradição para seguir sua própria trajetória.

"Foi uma decisão muito difícil representar minha turma de formandos sem uma oferta de trabalho ou uma vaga no mestrado", diz ela.

"A pressão social foi muito cruel e assustadora, gerando preocupação para minha família."

Mas, apesar de ter resistido ao cronograma tradicional de recrutamento, ela hoje está bem empregada como pesquisadora de design na filial de Tóquio da consultoria criativa internacional IDEO.

"A mudança precisa começar em algum lugar, e é possível que haja uma geração de jovens superansiosos", avalia.

"[Mas] por ter vivido em uma época em que não havia suporte para essa forma não convencional de fazer as coisas, posso dizer que é possível."

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Work Life.

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