Desta vez é diferente?
No nosso pequeno mundo da economia brasileira, é mais fácil crer que os juros caíram porque a inflação desabou
Há quem pense que tudo é uma questão de fé. Uma pessoa doente que tem fé pode se curar, por exemplo. Se não ficou boa, é porque a fé foi pouca. Dizer que a doença era incurável não ajuda, porque o argumento contrário será que haveria cura, se a fé fosse maior.
Alguns analistas econômicos reproduzem esta falácia atribuindo toda a importância ao estado das expectativas. Tudo o que dá certo na economia decorre da confiança aumentada no futuro grandioso da nação. A explicação se encaixa a posteriori, impossível de ser verificada. Questão de fé.
Juros baixos representam a novidade mais estonteante da economia brasileira dos últimos anos. Por que os juros caíram tanto? Para quem explica tudo pela confiança, isso é consequência do compromisso inaudito que o novo governo tem com a austeridade fiscal. De fato, vários comportamentos na economia podem ser explicados por profecias autorrealizáveis. Exemplo banal: se todos acharem que a Bolsa vai subir, haverá uma pressão compradora e as ações irão realmente se valorizar. Grandes economistas, como Keynes, J. Muth, F. Knight ou Friedman, incorporaram o estado das expectativas em seus modelos teóricos. Mas não fará sol amanhã só porque nós fizemos uma fervorosa vigília (mas, se houver sol, não faltará quem diga que foi obra do pensamento positivo). No nosso pequeno mundo da economia brasileira, é mais fácil acreditar que os juros caíram porque a inflação desabou. E ela desabou pela coincidência entre um declínio monumental da atividade econômica que quebrou a espinha dos agentes formadores de preço e eventos extemporâneos positivos, que nada têm que ver com confiança em quem quer que seja.
Entre 2012 e 2015, o número de desocupados girou em torno de 6,9 milhões, ao passo que a inflação de serviços ficou persistentemente acima de 8% ao ano. Agora, temos 12,5 milhões de desocupados e o preço dos serviços sobe a um ritmo de 3,6% ao ano, menos da metade. O que refreou o desejo do barbeiro de ajustar o preço do corte do cabelo foram condições objetivas. Não só o metalúrgico desempregado deixou de ser seu cliente, como pode ter feito um curso rápido e virou ele mesmo um barbeiro concorrente. Também os preços monitorados tiveram comportamento exemplar. A inflação dos itens controlados pelo governo recuou de 10,36% anuais, em setembro de 2018, para só 2,87%, em setembro último. Neste período, a gasolina veio de 3,94% ao ano para uma deflação de -0,04%, ao passo que a energia elétrica despencou de 20,4% ao ano para 4,46% ao ano. Difícil de imaginar que este recuo esteja associado a algum tipo de expectativa.
A boa notícia é que a economia deve se recuperar, estimulada pelos juros baixos. Depois da recessão que tivemos, seguida por três anos de crescimento desprezível, é preciso ser muito rabugento para não ver isso com bons olhos. A notícia não tão boa é que é provável que a recuperação volte a pressionar a inflação. Nada de dramático, mas, quanto mais forte for o crescimento, maiores serão as chances de que os juros voltem a subir. Ou seja, desta vez não será muito diferente, em que pese o fato de que o ponto de partida é mais baixo e a Selic não voltará ao nível de 14,25% de 2015-2016. Afirmar que as expectativas inflacionárias estão ancoradas porque a reforma da Previdência foi aprovada é uma precipitação. Ir além e pensar que a inflação continuará baixa porque os agentes econômicos confiam nas reformas exige fé, muita fé. Há, ainda, muito a fazer e a incapacidade de articulação do Planalto deixa tudo ainda mais difícil, o que torna latente o risco de uma crise política. Ainda assim, tudo somado, juros baixos são uma excelente novidade. Que sejam eternos enquanto durem.
*ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DE ECONOMIA DA PUC-SP E FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM