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São Paulo é estranha, meu

Quando a pandemia acabar, eu vou te odiar outra vez. Quando a pandemia acabar, eu vou te amar outra vez

25 jan 2021 - 03h10
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Da janela desse apê, São Paulo é estranha, meu. Tem um prédio na minha frente e outro prédio atrás de mim. São como peças de dominó esperando um peteleco.

Tem um vizinho pelado, uma máscara pingando no varal, um cachorro latindo, um interfone tocando e ninguém se ouvindo.

Da janela desse apê, São Paulo é estranha, meu. Tem um céu carregado de urubus simpáticos acenando pra mim.

Tem um coach celebrando o nascimento de mais um motorista de aplicativo. E o delivery que acabou de chegar não muda o status da nossa solidão.

A cápsula de café na máquina me fez esperar. Em dez segundos, expectativa e decepção. Ou a gourmetização da ansiedade.

E esse vazio? Só mais um pastel de vento, um boneco de posto, um Borba Gato qualquer, uma bike quebrada no gramado de um parque vazio ou uma criança sozinha tentando brincar de gangorra.

Da janela desse apê, São Paulo é estranha, meu. As paredes são tão finas que eu nunca sei se meus vizinhos estão chorando ou fazendo amor.

É que a dor e a alegria frequentam o mesmo balcão, tomam da mesma bebida e brincam, em silêncio, um carnaval no mosteiro.

Sem o desafogo das suas madrugadas, essa cidade é quase inviável. Os aglomerados na casa lotérica sabem melhor do que eu.

Da janela desse apê, São Paulo é estranha, meu. Tem os mosquitos, o Pix, o serviço de streaming, os memes, uma dor nas costas, os folhetos de pizzaria, as mensagens de WhatsApp, reuniões pelo Zoom e todo esse home office.

O barulho da geladeira me fez despertar. É como um galo místico. Mais um dia vai começar.

Fecho a janela do meu apê.

Viver em São Paulo é estranho. Mas é tão bonito.

Tenho saudade de nada, não. Tenho saudade de tudo, sim.

Quando a pandemia acabar, eu vou te odiar outra vez. Quando a pandemia acabar, eu vou te amar outra vez.

Estadão
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