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O que torna o escritor Georges Simenon único?

Célebres leitores de seus romances policiais, três escritores e um tradutor refletem sobre a diferença fundamental entre ele e outros autores do gênero

29 out 2025 - 05h42
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Com a obra de Georges Simenon ganhando novas edições, agora pela Editora Unesp, perguntamos a escritores e seu tradutor no que o autor belga se distinguia dos demais autores policiais. Alberto Mussa, Ignácio de Loyola Brandão, Tony Bellotto, que acaba de vencer do Prêmio Jabuti, e Jorge Coli, responderam.

Alberto Mussa, escritor

Simenon talvez seja o maior de todos autores de policial. Foi um escritor pleno, perfeito, no sentido de ter cumprido seu projeto existencial, de ter vivido a ficção de um modo intenso, e constante, como nenhum outro. Sua imensa produção literária atesta isso. A série do comissário Maigret é irretocável. Mas há outros romances espetaculares, e que também pertencem ao gênero: O Assassino, O Homem que Via o Trem Passar, O Testamento Donadieu (aqui traduzido como O Testamento Maldito). E é interessante que ele se distancie tanto do cerebralismo frio da tradição policial inglesa, como dos romances de ação dos norte-americanos. Está distante também das tendências contemporâneas, a dos serial killers, das tramas sofisticadas e inimagináveis, que nada tem a ver com a experiência cotidiana. O mundo de Simenon é o dos crimes comuns, das pessoas comuns, das soluções comuns. O que impressiona nele, e o torna grande, é sua vasta compreensão da natureza humana.

Ignácio de Loyola Brandão, escritor e colunista do Estadão

Adorei centenas de romances policiais em que os norte-americanos foram mestres. Mas confesso que, depois de ter descoberto George Simenon, abandonei aqueles inspetores chavões e machões (com algumas exceções) e fiquei apaixonado pelo comissário Maigret. Inspetor de policia francês, cara de um avô bonachão, homem que podia ser confundido com um bancário médio, um lojista, um lojista de armarinho paciente e calmo. Que eu me lembre nunca vi Maigret sacar uma arma, era tudo dedução e conhecimento do ser humano, muita psicologia classe média ( também entendia a nobreza pútrida) e meliantes. Ele ficaria maluco hoje entre ladrões de celulares, golpes pela internet, assassinos de motos, emendas de deputados, propinas, pedófilos a granel, adulteradores de álcool, etc. Resolvia tudo de modo sutil e pelo seu conhecimento do ser humano. Maigret nunca foi violento, chegou até a perder sua arma um dia. Era astuto, desconfiado, malicioso. Bem casado, voltava para seu lar como um burguês qualquer.

Criação de George Simenon, um homem mais prolifico que coelho, vendeu seus romances aos milhões. E gabava-se de ter seduzido centenas de mulheres. Depois de sua morte, um ramo da critica lamentou que Simenon jamais tenha recebido o Nobel. Imenso romancista, conhecia a humanidade, era um mentalista, irônico, humanista. Passando na rua, você poderia confundi-lo com um gerente de banco, um dono de lojinha, um alfaiate. Certa vez, li no Magazine Literaire que Maigret era tão mentalizado que podia saber de um crime antes de ele ter sido cometido. Para mim, Jean Gabin foi o melhor Maigret do cinema.

Tony Bellotto, escritor e músico

Na literatura policial, ele criou algo único. Maigret é um personagem incrível, extremamente cativante. Em suas histórias, não é exatamente a trama que interessa porque Simenon foge das regras tradicionais que se interessam em saber quem é o assassino. Maigret é intuitivo, o que confere um toque psicológico. A forma como ele decifra os casos é muito particular.

Simenon também criava atmosferas incríveis para Maigret, que é um cara comum. Não é um detetive exuberante na linha do Sherlock Holmes, nem é um detetive durão na linha do Philip Marlowe do Raymond Chandler. Aprendi muito com Simenon sobre a arte de escrever a partir de seus textos, no sentido de ir tirando as afetações da escrita.

Anos atrás o filho dele, John Simenon, veio aqui ao Brasil para lançar uma coleção do pai. E a gente fez uma pequena turnê literária a convite da Companhia das Letras, que tinha enviado para ele alguns dos meus livros com o detetive Bellini que foram publicados na França. Participamos de encontros literários sobre a obra do Simenon em São Paulo, Rio e Curitiba. Falamos como ele era um cara único e cujo volume de produção é uma coisa extraterrestre. Não dá para imaginar como um homem conseguiria escrever tanto, com tanta qualidade.

Jorge Coli, professor da Unicamp e tradutor

As traduções que realizei de quatro romances de Georges Simenon — O Inquilino, Os Suicidas, Os Clientes de Avrenos e Bairro Negro — pertencem ao grupo de obras que ele próprio chamava de romans durs, ou "romances duros". Diferentemente das histórias do comissário Maigret, esses livros não se baseiam em decifrações policiais. São narrativas centradas em crises existenciais, em que o enigma não é um crime, mas o próprio ser humano diante de suas contradições, culpas e desamparos. Nelas, Simenon explora a queda das máscaras sociais e o momento em que o cotidiano se rompe, expondo o abismo interior de seus personagens.

Simenon figura entre os grandes escritores do século 20 — sua inclusão na prestigiosa coleção da Bibliothèque de la Pléiade, que reúne autores considerados fundamentais da literatura universal comprova esse reconhecimento. Sua obra se constrói de uma reflexão filosófica sobre a condição humana. Nesse sentido, pode ser visto como um "proto-existencialista": ele põe em cena seres que vivem situações-limite, nas quais a liberdade e a responsabilidade moral se revelam de modo arrasador. Albert Camus encontrou em Simenon a forma narrativa que vem carregada dessa tensão entre lucidez e absurdo.

Traduzir Simenon significa lidar com uma linguagem de extrema precisão. Seu estilo é direto, econômico, sem ornamentos, mas com elegância e ritmo interno. O principal ponto é preservar essa naturalidade — a fluidez e a sobriedade que fazem sua prosa parecer simples, quando na verdade é rigorosamente construída. A tradução precisa evitar tanto o empolamento quanto o descuido, buscando uma voz em português que mantenha o equilíbrio entre clareza e inquietação moral.

Estadão
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