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Nazareth Pacheco expõe obras sobre a transformação de seu corpo

Artista coroa trajetória traumática, marcada por sucessivas intervenções cirúrgicas para corrigir anomalias congênitas

18 mai 2019 - 03h10
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Uma das artistas mais originais em atividade no País, a paulistana Nazareth Pacheco, 58, abre neste sábado, 18, sua exposição Registros/Records na Galeria Kogan Amaro, lançando um livro que resume sua carreira, iniciada em 1985, em plena ebulição no movimento neoexpressionista no mundo. Naquela época Nazareth já andava na contramão, exibindo uma obra estreitamente ligada a uma experiência existencial que nada tinha de expressionista. Antes, era um testemunho pós-minimalista de sua trajetória traumática, marcada por sucessivas intervenções cirúrgicas para corrigir anomalias congênitas (marcas da síndrome da banda amniótica).

Desde a infância ela convive com bisturis e salas de operações - passou por transplante de córnea, correção do lábio leporino e colocação de pinos metálicos nas mãos e nos pés. Desse modo, como nota a psicanalista Miriam Chnaiderman num dos textos selecionados para o livro da artista, a obra de Nazareth Pacheco não poderia mesmo seguir a corrente modernista que perseguiu a negação do corpo. Pelo contrário, conclui a psicanalista: ela caminhou rumo a uma singular "antropomorfização", trabalhando com adornos, roupas e instrumentos cirúrgicos que se assemelham a objetos de tortura, como as peças que podem ser vistas na exposição Registros/Records, entre elas algumas que pertenceram ao enxoval de noiva da mãe e objetos fundidos em bronze que ficavam no consultório do pai, médico neurologista.

Num primeiro momento, as peças em bronze fazem lembrar os bizarros instrumentos cirúrgicos que os ginecologistas de Gêmeos - Mórbida Semelhança (Dead Ringers, 1988) usam no filme do canadense David Cronenberg, que lida igualmente com temas como natureza individual e erotismo. Um olhar mais atento, porém, revela que os instrumentos de Nazareth não foram concebidos para tratar mulheres mutantes, como as do filme de Cronenberg. Eles estão carregados de uma terna história familiar, mesmo quando se apresentam ameaçadores, pontiagudos, perfurantes. Ou remetem às agulhas de tricô da avó ou a objetos que não podem ser tocados - nesse sentido, duas das peças mais conhecidas de Nazareth usam lâminas de barbear, o vestido que ganhou o Grande Prêmio Embratel em 1997 e hoje pertence à coleção do MAM, e o impenetrável Quarto, exposto na Pinacoteca em 2005, hoje na coleção da Fundação Marcos Amaro.

Essa interdição ao "quarto" cortante desafia ainda mais os sentidos do espectador. A surrealista Louise Bourgeois (1911-2010), autora da escultura Aranha do acervo do MAM paulista, ficou tão impressionada com o vestido feito de miçangas e lâminas de barbear que selecionou a peça de Nazareth para a exposição Louise Bourgeois' Salon, em 2001, em Nova York. As duas se tornaram amigas. Jornais como o New York Times e a respeitada revista Art in America destacaram seu trabalho. Em quase todos os ensaios críticos americanos, de Edward Leffingwell a Jennifer Farrell, seus autores se referiam às peças de Nazareth (incluindo um balanço com assento acrílico feito de agulhas e um berço com lâminas) como "armadilhas da identidade cultural feminina".

Custou para que as pessoas não identificassem nesses trabalhos uma relação fetichista com a violência ou a autolesão, conta a artista. Ela não queria ser reconhecida como autora de obras ambivalentes, sedutoras e ameaçadoras, ou simplesmente identificáveis por sua estranheza. Em síntese, seu tema era a inclusão social das mulheres. Seu modelo era a escultora judia de origem alemã Eva Hesse (1936-1970), feminista pioneira no uso de materiais insólitos como látex e fibra de vidro em obras de arte. Eva era também ligada ao pós-minimalismo, definido por Arthur Danto como um movimento erótico, não mecânico ou asséptico, em oposição ao minimalismo. "Conhecer o trabalho de Eva Hesse foi para mim uma revelação", conta Nazareth, atribuindo à influência da artista o uso de materiais maleáveis em suas esculturas, como a borracha, transformada em objetos pontiagudos nos anos 1980 que, a despeito da aparência, podiam ser manipulados pelo público.

A exposição Registros/Records, como sugere o título, trata do resgate da memória familiar de Nazareth Pacheco, desde uma carta ao pai escrita pelo cirurgião escocês que a operou quando criança até uma instalação feita este ano com filmes de raio X, ressonância magnética e tomografia dos pais mortos, que cai como uma cascata do teto da galeria, passando por réplicas ampliadas em bronze dos anéis que usou para separar os dedos e um quadro feito com fios cirúrgicos de sutura. No livro, ela relembra sua carreira em entrevista a Regina Teixeira de Barros. O volume, concebido pelo designer Herbert Alluci, traz ainda textos de Cauê Alves, Ivo Mesquita, Marcus Lontra da Costa, Moacir dos Anjos e Tadeu Chiarelli.

Estadão
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