Afreekassia disseca o EP 'Cacau 50%' e a construção de sua identidade
Em entrevista à Rolling Stone Brasil, a artista discute o processo de vulnerabilidade no rap e como a ancestralidade do Egito Antigo municiou a construção visual de sua carreira solo
Muito antes de subir aos palcos como Afreekassia, a artista já era um nome central na cultura da Baixada Santista, organizando espaços de aquilombamento e eventos. Essa bagagem de DJ e ativista não ficou para trás; ela se transformou na base sólida de sua carreira solo. Em um momento de maturidade, a artistalança o EP Cacau 50%, projeto íntimo que, ao invés de buscar a força na dureza, encontra a cura na vulnerabilidade. A obra navega pela dualidade entre o doce e o amargo da vida de uma mulher negra.
Conversamos com a cantora sobre como Cacau 50% serviu como ferramenta de cura pessoal, a pressão estética de ser uma "mulher inabalável" no rap, e como referências que vão da leitura de bell hooks
ao estudo do Egito Antigo municiaram a semiótica poderosa de sua imagem. Ela também comenta os altos e baixos de ser uma artista independente no cenário de festivais brasileiros.
Leia a entrevista de Afreekassia à Rolling Stone Brasil abaixo:
O que o EP Cacau 50% diz sobre você hoje em dia que os outros trabalhos não tiveram a oportunidade de dizer?
Esse EP veio para aprofundar pautas que eu não abordava antes. Em 2023, no meu retorno com o EP 'Mais Eu', trouxe uma visão mais geral sobre mulheres negras. Agora, quis que as pessoas realmente me conhecessem como pessoa. Toquei em assuntos que a gente geralmente não gosta de falar: mágoas, dores e tristezas. Esse projeto apresenta a Cássia; ele é muito mais sobre a Cássia do que sobre a Afreekassia.
Qual seria o "mood" perfeito para ouvir o EP Cacau 50%?
Eu sou uma pessoa muito caseira, gosto de ficar no meu quarto ouvindo música. Então, o mood perfeito é esse: um lugar confortável e aconchegante, deitada na cama, com uma luz baixa, amarela... Talvez comendo algo gostoso enquanto ouve. É o cenário ideal para o EP.
Como tem sido a recepção do seu novo trabalho e se teve algum feedback que você olhou e falou: "OK, a mensagem chegou exatamente como eu queria"?
Essa troca acontece muito nas redes sociais, e eu fiquei monitorando cada comentário por ser um trabalho muito pessoal. Mas o feedback real veio quando cantei 'Verdades Amargas' no show da MC Luanna. Vi um vídeo de uma fã chorando copiosamente na plateia. Ler um tweet é uma coisa, mas ver a emoção acontecendo ali, na prática, é outra. Ver que meu desabafo se conectou com a vida de outra pessoa me fez sentir que a mensagem foi, de fato, compreendida.
Você considera o "50% Cacau" uma ferramenta de cura?
Sim, para mim foi. Eu sabia que, após lançar esse projeto, minha vida tomaria outra forma, e realmente aconteceu. Eu sentia que precisava falar aquelas coisas, escrever daquele jeito e colocar tudo para fora; só assim eu conseguiria seguir em frente. E tem sido assim para o público também. Muita gente me manda mensagem dizendo: 'Estou passando por tal situação e esse EP tem me ajudado a curar e seguir em frente'. Fico muito feliz com isso.
Como você lida com a pressão estética e comportamental, e onde seu EP e trabalho se encaixam nisso?
Anos atrás eu me questionava sobre o que escrever, porque não sustento essa postura baddie o tempo todo. Apesar de ter a unha comprida, sou uma pessoa mais sensível, não sou tão posturada, dura, aquela imagem de 'não preciso de homem'. Gosto desse discurso, ele traz coisas boas, mas quando estamos em casa não somos 100% assim. O lugar de escrita é muito íntimo, não tem como eu forçar ser alguém que não sou; só consigo escrever a minha verdade. Muitas músicas nasceram só para colocar o sentimento para fora, justamente para mostrar essa vulnerabilidade que as pessoas nem sempre conseguem abraçar. Mas decidi arriscar. O Cacau 50% é sobre isso: posso ter a postura baddie, mas ela tem equilíbrio. É a dualidade entre o forte e o fraco, o doce e o amargo.
Você acredita que é possível ser vulnerável e "mole" em um cenário que exige que a mulher preta seja sempre aquela mulher dura e inabalável?
É um desafio. Não tem como dizer que é fácil, mas entendi no processo de criar o EP que ser forte é ser vulnerável. Muita gente acha que força é esconder sentimentos, mas, na verdade, é abraçá-los e fazer acontecer mesmo assim. Caminhamos muito enquanto mulheres negras nesse discurso, mas também caímos num lugar prejudicial de achar que ser forte é não chorar, é ser 'seca' e seguir a vida. Para mim, muita gente tida como forte não tem coragem de chorar na frente de outra pessoa. A força mora justamente em mostrar suas fraquezas e não deixar que isso te diminua enquanto pessoa.
O que você estuda é refletido na sua imagem de hoje em dia? Como você constrói essa semiótica?
É uma construção de anos que foge do estudo tradicional. Pesquisei muito sobre o Egito Antigo e foi aí que uma chave virou para mim: é sobre a pessoa negra se enxergar grandiosa. Toda a minha postura vem de ver outras pessoas negras que fizeram história. A transição capilar também foi um marco essencial. Como sou muito visual, comecei a internalizar outras referências e a consumir conteúdo de forma mais política. Li bell hooks, Conceição Evaristo... Isso nos mune. Tudo começa na cabeça. Passei a consumir filmes e textos de maneira mais afrocentrada, e isso mudou como me visto, meu cabelo e minha unha. A imagem não é fixa, ela se constrói. Nós somos reflexo do que acreditamos. Ao consumir essas obras, comecei a me olhar com mais carinho e a enxergar novas possibilidades de me portar.
Foi fácil para você organizar todas essas referências e trazer ancestralidade para o rap?
É complicado, porque acaba sendo muita informação para colocar para fora de uma vez. Hoje me enxergo como multiartista, mas naquela época eu fazia de tudo: evento, projeto social, discotecagem, desenho... Era uma mistura. Cheguei a querer criar plataformas que acoplassem tudo isso, mas entendi que precisava focar. A música foi a escolhida porque tem um alcance diferente. Um evento fica restrito àquele público local; a música viaja. A pessoa lá longe ouve e a mensagem que eu queria passar se espalha com uma magnitude muito maior.
Como é para você estar do outro lado, fazendo coisas de DJ?
A: Gosto muito de ser DJ, mas entendi que são lugares de palco diferentes. Atrás dos toca-discos, você consegue ser um pouco mais introspectiva. Já na frente, como cantora, a interação é direta e exige performance corporal. Existe também a questão do repertório: como DJ, você pesquisa para agradar à pista. Cantando, sinto que é 'mais simples' nesse quesito porque estou entregando a minha própria música, o que me dá mais segurança sobre o conteúdo. Mas eu sou fã de ser artista. Seja tocando ou cantando, a troca é diferente, mas sempre gostosa.
Sua experiência como DJ ajudou a compor de alguma forma?
Ajuda bastante, mas, ao mesmo tempo, atrapalha, porque são processos criativos muito diferentes. A discotecagem me força a expandir o ouvido e a escutar com atenção técnica. O problema é que, às vezes, estou montando um set e a música me inspira a escrever. Aí abandono o set para compor e entro num dilema, porque preciso terminar o trabalho de DJ. Vira uma grande questão na minha cabeça. Hoje tento separar e focar em uma coisa de cada vez; se eu misturar, acabo não fazendo nenhum dos dois.
O que passa na cabeça da artista nessas horas de euforia (como o Afro Punk) e frustração (como o cancelamento do Festival Cena)? Como você blinda sua mente?
A palavra é frustração. Foi uma questão de semanas entre a euforia do Afropunk e esse banho de água fria. Eu estava preparando um show inédito do Cacau 50%, com balé, figurino, ensaiando seis horas por dia. Tenho uma história com o festival; em 2022, toquei lá como DJ da Júlia e agora voltaria como artista principal. O cancelamento veio no dia da apresentação, quando eu estava prestes a começar a maquiagem. De repente, ficou um vazio: onde eu desaguaria toda aquela energia? O que me consolou foi ver que não estava sozinha no barco, mas é triste constatar que o nosso movimento hip-hop ainda enfrenta essas problemáticas estruturais. No dia, preferi não fazer show improvisado em outro lugar. Como sou introspectiva, fiquei em casa processando o luto. Não queria entregar metade do que planejei na correria; eu queria entregar tudo.
Como é para você, como DJ, quando não são tão valorizados nos line-ups, abrindo shows?
No início, bate um sentimento de desvalorização. Mas, com o tempo, compreendi a logística: a noite tem começo, meio e fim. Meu set, por puxar mais para o afrobeat e ser mais tranquilo, costuma abrir os trabalhos. E aprendi a ver a beleza nisso; é quem abre que dita o clima (mood) da festa. Existe, sim, uma necessidade de maior valorização tanto por parte dos contratantes quanto do público, que muitas vezes chega ansioso pelo hype imediato e tem dificuldade de se abrir para uma construção sonora mais sutil. Mas encaro como um ecossistema rotativo. Já toquei no horário nobre — aquele ápice entre 2h30 e 4h —, já abri e já fechei. O importante é entender que cada horário tem sua função vital na narrativa da noite e estar em paz com isso.
Você já sentiu que o mercado tentou te levar para caminhos que você recusou por não se sentir acolhida?
Acho que sim. Como sou muito focada no meu processo, às vezes não olho tanto para os lados, mas sinto essa pressão. Existe aquele lugar-comum que empurra mulheres negras para a estética baddie. Até os fãs pedem: 'Ah, você devia fazer um som assim, imagina a Afreekassia nessa pegada...'. Eu entendo e não julgo, mas essa não sou eu. Decidi que não vou esperar o mercado decidir por mim; eu mesma vou mostrar onde quero estar. Por isso meu retorno à música focando nas vivências de mulheres negras foi tão estratégico: serviu para demarcar exatamente o território que desejo ocupar.
O que podemos esperar de você depois do EP Cacau 50%?
Grandes coisas. Hoje, o que mais almejo é ter estrutura para lançar projetos com a qualidade que o público merece — inclusive, acabamos de soltar o clipe de '100% Pura'. Com uma equipe formada (antes eu fazia tudo sozinha), quero retomar meus projetos sociais com mulheres negras e crianças. Sinto falta dessa troca real, de ir às escolas. A vida de artista é corrida, mas é o contato humano que nos inspira de verdade. Para o próximo ano, projeto um novo EP ou quem sabe um álbum. Também penso muito em feats, mas sou criteriosa: preciso ter conexão com a pessoa para além da música, o que às vezes vai na contramão da pressa da indústria. Mas escreve aí: 2026 vai ser 'o ano'. Fico até arrepiada só de falar.
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