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Virna Lisi: os grunges mineiros mais tímidos do mundo

A história do Virna Lisi vai de guitarras, reco-reco e poesia concreta à ‘treta’ com metaleiros e o lado b da indústria dos anos 90.

18 abr 2019 - 11h15
(atualizado em 21/4/2019 às 13h56)
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“Faz dez anos aquele troço, cara?” César Maurício é pego de surpresa ao ser lembrado de que em 2009, o Virna Lisi subiu ao palco do festival Eletronika, em Belo Horizonte (MG), depois de ter cerrado as portas havia pelo menos 12 anos. “O que mais me assusta é o tempo não passar, é amarrotar tão rápido. Ele não passa, ele amarrota”, reflete o vocal, letras e homem de frente da banda, do alto de seus 50 e poucos anos. Se lá se foi uma década da apresentação no festival, em algum momento deste ano serão três décadas da formação da banda, nascida em um quintal em Montes Claros, interior de Minas, depois que ele e Ronaldo Gino (guitarra) foram apresentados a um repinique pelo irmão de Marcelo de Paula (baixo).

Foto: Arquivo Pessoal / Reprodução

Falar com César, Marcelo e Ronaldo por um hang out desses de redes sociais, em uma noite de fevereiro, é uma volta à primeira metade dos anos 90, aos bastidores do rock brasileiro pós-ressaca dos 80. Se César é a força poética da banda, de forte sotaque mineiro e de pretensões artísticas claras (ele mais ouve do que fala e está confortável com isso), e Marcelo, o músico cerebral, de frases bem pensadas, aquele que explica as intenções da banda em detalhes, Ronaldo é a metralhadora giratória. Introduz na conversa as histórias mais absurdas e se diverte com elas. Ri de si mesmo e dos outros, e não poupa ninguém, de produtores a jornalistas, passando por bandas contemporâneas. Sem a arrogância de quem se comporta como quem pensa sobre si mais do que de fato foi, e isso faz pensar que, com o que imprimiram ao rock entre 1989 e 1997 nos três discos — o último por uma major —, mereciam ter ido mais longe.

Com o nome inspirado na atriz italiana Virna Pieralisi (1936-2014), conhecida como Virna Lisi, o quinteto, que contava também com  bateria de Luís Lopes e a guitarra de Marden Veloso, apareceu no início dos anos 90 com uma música ardida, formada por guitarras, gritos, repinique e poesia curta, meio concreta, de canto falado, que esperneava “vou esperar só mais uma hora depois desse minuto”, de “Esperar o que?”. Parou em 1997, logo após assinar um contrato para três discos com uma multinacional – e ser dispensada em seguida –, com uma música de trabalho cujo refrão afirmava “não vou mais esperar, vou me desesperar".

Foram apenas três álbuns: Esperar o que? (1991) e O Que Diriam os Vizinhos (1994), ambos pela Tinitus, e Se Desce a Lona Vira Circo, Se Cerca Vira Hospício (1996), pela MCA. Cada integrante recebeu uma carta avisando do desligamento pouco depois que o terceiro disco ganhou as lojas, assim que a gravadora foi adquirida pela PolyGram e virou Universal. Fizeram apenas quatro shows pra divulgar o álbum e largaram mão.

Quando o vídeo de “Esperar o que?” apareceu numa noite na finada MTV, em 1992, num programa chamado Demo MTV, dedicado a clipes de bandas independentes nacionais, alguma coisa despertou a atenção de parte dos poucos espectadores da emissora UHF. Muitos deles não aguentavam mais a arenga das bandas do rock brasileiro dos 80, ainda que elas tivessem rendidos bons discos e formato um circuito relevante. Mas num cenário de ascensão de uma nova maneira de fazer música sertaneja – que embalou a eleição de Fernando Collor de Mello, que não durou dois anos na presidência da República –, acompanhada por um pagode de molejo industrial, tendo como pano de fundo uma crise econômica e política que assustava o país de uma ponta a outra, o rugido novo de guitarras que apareceu naquele início da década era animador. Com letras em português ou em inglês, pros adolescentes não importava – isso era papo pra crítico e executivo de gravadora.

(Esperar o que?)

Porque, no fundo, essa nova geração se encontrava no mesmo lugar: num frescor que a anterior parecia ter esquecido lá em 1986, ano tão significativo pro rock nacional que ganhou mini-documentário da Revista Trip.

“A gente [Ronaldo e César] vinha ouvindo juntos o Psychocandy [o primeiro álbum do Jesus and Mary Chain], Smiths, e a Inglaterra toda, veio esse repinique e na mão do César veio ainda mais com mão de rock do que samba, porque tinha hora que o reco-reco era uma terceira guitarra com muita clareza”, resgata Ronaldo. Ele e César são de Belo Horizonte e já se conheciam; juntos, já haviam feito algum som juntos. Foi também em Montes Claros que a banda compôs e gravou em um Tascam de quatro canais a música “Esperar o que?”, antes ainda de adotar o nome Virna Lisi.

No início dos anos 90, fizeram todo o circuito universitário com apenas quatro músicas: “Esperar o que?”, “Ofício”, “A Fala” e uma quarta, que não revelam de jeito nenhum. “Porque ainda é um tesouro a ser lapidado”, explica Marcelo. Ronaldo não alivia: “ela é muito juvenil”. Os dois se lembram dos shows nas calouradas na UFMG. “A gente não estava disposto a montar show com cover... E a gente ficou muito tempo nas calouradas tocando as quatro da demotape. Pediam bis, a gente voltava nas duas primeiras”, ri. Ali também abriram shows dos Titãs, Ira! e outros nomes do rock nacional.

Dessa época, Ronaldo lembra de um estranhamento com Phillipe Seabra, da Plebe Rude. “Ele olhava pras nossas guitarras japonesas, a gente tinha guitarra japonesa porque não tinha dinheiro pra uma Fender ou Gibson, e ele não reconhecia a gente. Depois de 15 anos ele volta, sei lá se da Inglaterra ou da América, e volta com o mesmo discurso, e eu já com uma Gibson 135, e ele puxando o saco assim... [pensa alto] ‘meu Deus, como é que o adulto não se modifica, cara, que mala”, dispara.  

Um clipe sem cor por duas garrafas de vodca 

O clipe de “Esperar o que?” foi feito por Bruno Viana, colega de César, da faculdade de Belas Artes. Contam os mineiros que Viana, ali no começo dos anos 90, já sabia que a MTV estava pra desembarcar no Brasil, então acreditou no potencial da música pra transformá-la em vídeo e garantir uma brecha na emissora.

Viana veio de Portugal, fez o vídeo, mandou a fita para a MTV, retornou a Portugal e nunca mais voltou, dizem. Feito em Super V, custou “duas garrafas de vodca e uma fita de VHS”, debocha Ronaldo. “E não era preto e branco não, era sem cor!”. O vídeo tocou o suficiente na emissora pra atrair a atenção do produtor Pena Schmidt, que já havia trabalhado com o Ira!, Titãs, Ultraje a Rigor, Walter Franco e outros nomes do pop nacional.

Vieram shows no inesquecível Espaço Retrô, em São Paulo, onde o proprietário, o herói Roberto Cotrim, ao ouvir uma batucada saindo do camarim, perguntou meio bolado, “vocês vão tocar isso aí?”

Foi lá também que alguns punks deram as costas pra banda quando César começou um show esquentando um tamborim, acompanhado de um surdo. “Aí, quando entraram as guitarras e a bateria, o pessoal voltou a pular. Aliás, olhou pra frente de novo”, resgata Marcelo.

“A gente negava o samba rock, a gente não queria ser rotulado como samba rock”, lembra Ronaldo. “Porque o samba rock era diferente”, completa Marcelo. “O samba rock, né, a gente sabe que tem muito mais de samba do que rock”, avalia. “Olhando hoje, afastado, a gente era uns grunges mineiros, e mineiro tem uma timidez que ninguém ganha”, sintetiza.

O primeiro disco, imprensa paulista e um tal bota fora do Nelson Motta

Uma visita ao apartamento de Pena ao lado do cemitério da Consolação, região central de São Paulo, deixou Ronaldo e Marcelo impressionados. O rock brasileiro estava nas paredes do imóvel, registrado em discos de ouro e platina pendurados por todos os lados. Em outra visita à cidade, Ronaldo lembra de levar um release a um jornalista da Folha de S.Paulo e ter aprendido uma lição importante. “Nossos releases pareciam um quadro pintado. E eu lembro, acho que foi o Pedro Alexandre Sanches, que olhou e disse assim: ‘ok, não entendi nada, e aí? (risos). O cara sai de Belo Horizonte, pega ônibus, e vem com aquele release conceitual (...) aí o cara diz assim: ‘do caralho’, e me ensinou que o release tinha que ter o serviço, vai tocar onde, que horas, endereço, telefone, a banda tem quantos caras, o nome deles”.

A conversa definitiva com o Pena para selar o contrato da banda com o selo Tinitus, criado pelo produtor, aconteceu em Belo Horizonte, “lá na galeria da Praça Sete”, lembra Marcelo — Ronaldo diz que a conversa foi no apartamento de Pena em São Paulo e os dois não se entendem sobre o lugar certo. O álbum foi gravado no antigo e histórico estúdio Vice-Versa, de Sá, Rodrix e Guarabira, que anos depois passou a ser da extinta gravadora Trama. As gravações aconteceram em duas sessões, entre 20h e 8h da manhã.

César celebra o que ele chama de sincronicidade do rock brasileiro naquela primeira metade dos anos 90. Enquanto o Virna Lisi botava na rua um disco de guitarras, poesia concreta e batucada do samba em junho de 1993, Chico Science e Nação Zumbi, surgidos em 1991, lançaram Da Lama ao Caos no ano seguinte, juntando guitarras aos tambores do maracatu. Também em 1994, os Raimundos somavam influências evidentes dos Ramones ao balanço e à sacanagem do forró com Raimundos, lançado pela Banguela, parceria do crítico e produtor Carlos Eduardo Miranda com os Titãs.

“Todo mundo estava buscando estéticas novas, não era só o Virna”, lembra César ao citar também os mineiros Skank e Pato Fu. “Perguntei isso pro Pena, se ele não achava que isso dava uma defesa de tese, que é a sincronicidade. Por que o Virna Lisi buscou essa tentativa estética ao mesmo tempo que os Raimundos e o Chico Science e outros? Acho que o grande barato da década de 90, que faz a gente ser fortes e participar, é exatamente esse ponto. E aí ele [Pena] me respondeu o seguinte: ‘isso é uma tese’”, conta. E revela a vontade de fazer um documentário sobre o assunto. “Tudo o que a gente fez, aquelas maluquices todas, fomos nós quem fizemos mesmo (...) isso me compõe como artista, traz pra mim essa espinha dorsal de ser artista”, reflete.

“As músicas foram compostas em menos de um ano e gravadas em dois dias”, emenda Marcelo. A banda escolheu gravar as músicas ao vivo, em vez de instrumento por instrumento de modo separado, tanto pela inexperiência do quinteto em estúdio quanto pelo desejo de que o disco soasse “visceral e verdadeiro”, classifica. “E a gente sabia da potência que a banda tinha ao vivo, né?” Marcelo diz ter vontade de remasterizar o álbum, porque a tecnologia da época, distante da atual, deixou alguns sons escondidos, avalia.

“Duas madrugadas”, detalha Ronaldo sobre as gravações do disco. E aí, mais história. Segundo o músico, jornalistas da imprensa paulista apareciam no estúdio para acompanhar as gravações do novo som trazido de Belo Horizonte e dar uma detonada na geração anterior do rock naciona: “os caras da Folha de S.Paulo e do Estadão seguravam a gente até 22h30 pra acabar com os Titãs e o Paralamas, vocês lembram disso? A gente perdia horas de estúdio e ficava dormindo de madrugada pra gravar o disco. Eles queriam acabar com a raça desses caras”.

“Eu não lembro disso! Você lembra, Maurício?”, pergunta Marcelo. “Eu não guardei essa parte não”, devolve César. Ronaldo prossegue: “Os Titãs chamaram a gente pra abrir o show deles e deram o telefone da casa de todos eles. Aí, dois meses depois, esses caras acabam com a raça deles e colocam como se a gente estivesse vindo e passando por cima deles. Aí… não é possível que vocês sejam tão lesados [falando aos parceiros] (...) A gente lembra de ter ganhado essa íntima com eles, e depois o César falou assim ‘gente, para de sofrer, porque a gente estava querendo pedir desculpa pros caras por um negócio que a gente nem fez’”.

Cesar: “esquece isso, Ronaldo. Eu não tava na pista não, cara…” Ronaldo diz que esqueceu e que não tem dúvidas de uma relação de cordialidade entre as bandas/gerações, “tanto é que eles [Titãs] levaram até o Jack Endino depois para [apresentar à] gente”, conta ao recordar o nome gigante da cena de Seattle, produtor do Bleach, primeiro do Nirvana, e de trabalhos com Soundgarden, Mudhoney, L7, Tad, Mark Lennegan (Screaming Trees), que trabalhou com os paulistanos em Titanomaquia, lançado em julho de 1993, um mês depois do Esperar o que?

Outra boa história sobre o primeiro disco envolve o também crítico musical e produtor Nelson Motta. “Uma pessoa esteve no apartamento do Nelson Motta quando ele estava fazendo um bota fora”, conta César, “separando vinil de cd, e o vinil do Virna ficou pra fora, hahahaha”, ri.

Ronaldo: “e aí o Virna foi pro limbo, é isso? (risos)”. “Eu não sei da vida do cara, meu”, desconversa César. “Ele tem direito. Música é bom por isso, por isso que tem a música digital”.

Foto: Reprodução

O segundo disco e a peitada nos headbangers

Em 1995, a Tinitus celebrou um acordo de distribuição com a Polygram, uma das gigantes da indústria do disco. Em janeiro daquele ano, o Virna Lisi lançou O que Diriam os Vizinhos?, também pelo selo de Pena, agora com apoio e distribuição da major. “Eu quero essa mulher”, versão envenenada pro samba de Monsueto Meneses, de 1962, botou a banda em boa rotação na MTV e nas FMs de rock. Revelava também a parceria com o percussionista e compositor Marku Ribas (1947-2013), que trazia na bagagem uma tonelada de discos, entre solos e participações, e uma gravação com os Rolling Stones, no álbum Dirty Work, e participação em “Just another night”, faixa do álbum solo de Mick Jagger, She’s the Boss, ambos de 1985.

Produzido por Antoine Midani, irmão do lendário André Midani, o disco retoma a ideia das guitarras e da poesia concreta mais surdo, tamborim, repinique e reco-reco apresentada anterior. Mas o som preenche melhor os espaços, e há algo ainda mais forte do grunge e do rock alternativo americano daquela primeira metade de anos 90 ocupando todo o disco. Ou é como se o Smashing Pumpkins fase Gish-Siamese Dream chamasse ritmistas pra uma jam de volume ensurdecedor. “Negar é afirmar” e “Brejo lodo boca mandíbula” deixam evidentes a conexão do Virna Lisi com o lado b do som importado.

“Se no primeiro a gente era punk rock, e era na tora, e eu tive que aprender a tocar esse troço [repinique] mal e porcamente”, recorda César, “no segundo a gente buscou demais construir esteticamente, com as coisas mais ou menos no lugar”, afirma. As percussões são assinadas por Ribas, cujo nome está escrito definitivamente na história da MPB com os discos-solo e as participações com outros artistas, Clara Nunes, Erasmo Carlos, Tim Maia e Ed Motta incluídos. Entre trabalhos próprios e participações, são mais de 20 discos.

Foi também em 95 que o Virna Lisi encarou a maior bucha da carreira. A banda foi escalada pra edição daquele ano do Philips Monsters of Rock, no estádio do Pacaembu, em São Paulo. No line up, os argentinos do Rata Blanca, Clawfinger, Paradise Lost, Therapy?, Faith no More, Alice Cooper e Ozzy Osbourne. Os mineiros teriam sido convocados por um executivo da Polygram que, segundo Ronaldo, teria morrido de ataque cardíaco fulminante durante o festival, enquanto estava com namorada.

“Teve o primeiro VMB (Video Music Brasil, da MTV Brasil), onde a gente participou também. E ali o Virna começou toda aquela busca de reafirmar o primeiro disco, [que] a gente estava conseguindo reafirmar nesse segundo com mais ações que tinham sintonia com a nossa proposta estética. Então nego falou, ‘opa, eu quero esses caras aí no Monster’”, defende Marcelo. “Não foi nada fácil”, acrescenta César.

A tensão, lembra Ronaldo, começou na coletiva de imprensa, no Macksoud Plaza, com jornalistas locais e estrangeiros. “Eles queriam crucificar a gente”, diz o guitarrista. “Eles diziam assim, ‘não é o Ratos de Porão, o Angra, o Víper, qualquer paulista e tal. Por que essa banda, que canta em português?’ Aí veio o Ribas, com uma fotinho [dele] com o Rolling Stones dos anos 70 e salva a nossa cara”, ri. “Os caras da imprensa paulista estavam com prego na mão”, exagera.

“Essa coisa da existência do grupo me faz pensar assim: onde que a banda se enquadra? Em qual palco seria? Esse dilema... a gente trouxe, nunca soube meio onde é o certo e onde o som da banda podia se enquadrar”, filosofa César. “Você paga um preço por isso”.

A banda subiu ao palco pra encarar uma horda de quase 50 mil metaleiros logo depois da argentina Ratablanca. No fim da primeira música, “Brejo lobo boca mandíbula”, cai o som do palco e dos PAs. Sobraram só o som do vocal e da bateria.

“Você imagina um estádio inteiro de um festival como o Monsters, e ninguém [da equipe de produção] saiu correndo pra ver o que estava acontecendo”, lembra Marcelo. “E aí passou assim, cara, dez segundos de paranoia e o Maurício, no frenesi, continuou ‘brejo lobo boca mandíbula’ [canta], e nesse frenesi, de uma hora pra outra, fez assim, roooaaahhhh, voltou o som de novo. Aí eu falei, ‘cara, começou o inferno astral’”.

Os minutos seguintes foram praticamente de enfrentamento físico. “A gente teve que abrir os braços e desviar das coisas”, resgata César sobre a chuva de objetos que receberam.  À época, o vocalista chegou a dizer ter sido a maior “chuva de halls” que já havia presenciado.

Convidado pra participar em uma música, Iggor Cavalera, então baterista do Sepultura, apareceu no fundo do palco, atrás da bateria, e o estádio passou a gritar “Sepultura”.

“A gente sempre teve grandes dificuldades com o público”, retoma César. “O Virna nunca foi campeão de público, né? Em show, a gente sempre teve, de certa forma, quase uma batalha. A gente sabia que tinha que conquistar pessoas com estética, com atitude que foge do padrão que a TV impõe”.

Ronaldo conta que, com a morte do tal executivo da Polygram, Pena teria ido à gravadora para assumir então a coordenação do trabalho com os mineiros. “O Pena chegou lá na Polygram e disse ‘vim cuidar do Virna Lisi’. Aí disseram pra ele ‘Virna Lisi? A gente não conhece’”.

Monsters da Argentina: bolsos vazios e um baseado com o FNM

A confusão os perseguiu também na etapa do festival em Buenos Aires, onde o Virna Lisi fez a apresentação de abertura. Segundo os músicos, a Polygram pagou apenas as passagens, e a banda teve de fazer um rateio pra pagar as despesas de hospedagem e alimentação.

Uma gafe marcou o início do show. No dia 17 de julho daquele ano, Brasil e Argentina se enfrentaram pela Copa América. Os argentinos venciam por 2 a 1, sob um temporal de encharcar a alma, quando Tulio Maravilha sai do banco de reservas pra, já na segunda metade do segundo tempo, ajeitar uma bola com o braço, encobrir o goleiro e empatar o jogo. Os brasileiros venceram nos pênaltis e eliminaram a seleção de Batistuta e Burrito Ortega.

“E aí o Maurício começou o show na Argentina dizendo ‘boa noite, nós somos o Virna Lisi, banda do Brasil”, conta Marcelo. Tomaram uma vaia gigantesca. “E daí, velho, a gente mais uma vez teve de tirar, não sei de onde, bordões e riffs, e dar na cara. E aí acabou que a gente deu na cara e na segunda música o pessoal já tava batendo cabeça”.

Cesar conta que banda não tinha grana nem pra tomar café no hotel onde ficaram hospedados em Buenos Aires. “Tão falando do Sheraton?”, interrompe Ronaldo. “Eu lembro do baseado que o Faith no More enrolou e foi no meu quarto”, resgata.

“Passa essa ponta aí”, provoca Marcelo, pelo chat. “Tá falando demais de baseado, acende essa porra aí, heheheheheh”.

“O Faith no More olhava pra gente com bons olhos porque eles eram amigos do Sepultura, cara”, acrescenta Ronaldo e engata num papo sobre o fato de a banda ser bem acolhida por ser mineira e amigos dos irmãos Cavalera.

“Essa ida à Argentina... completamente largado”, resume César. “A gente teve que fazer vaquinha, arrumar dinheiro, porque a gravadora, a Polygram, disse que não tinha grana, entendeu? E a gente pegou e foi, cara, assim mesmo. Acabou o show, no dia seguinte, já de manhã, eles queriam por a gente pra fora do Sheraton, porque não tinha [mais] dinheiro. Aí eu disse o seguinte, ‘eu não posso ficar na rua porque eu não tenho mais grana e o meu voo [de volta] é só amanhã’. Então a gente teve que conversar com a produção”. Pra tentar levantar mais um troco, a banda conseguiu agendar uma apresentação numa casa noturna em Buenos Aires chamada La Negra.

Da Tinitus pra MCA, o terceiro disco e o não a Rick Bonadio

A gravadora norte-americana MCA lançou em março de 1995 os primeiros discos do catálogo brasileiro, que até então eram licenciados pela BMG. Matéria do jornalista Marcel Plasse, da Folha de S.Paulo, do dia 15 de março daquele ano, contava que a independência da companhia no Brasil seguia uma estratégia internacional, cuja ideia era de contratar artistas nos mercados em que a empresa passava a atuar.

Pena conhecia Paulo Rosa, diretor da gravadora gringa no Brasil. Que, segundo Ronaldo e Marcelo, era fã do Virna Lisi, e que então decidiu contratar a banda. Antes, conta Ronaldo, houve uma conversa entre um advogado conhecido deles e Pena para que a banda pudesse deixar o contrato com a Tinitus e se encaminhar para a MCA. “Teve uma hora que o Pena... sei lá, deixou de lado a lojinha dele e o cast, e a gente teve que tocar o terror”, explica. Ainda ligada à Tinitus, a banda se sentia amarrada. “Depois de dois anos e tanto, a gente já tinha feito três [programas do] Serginho Groismann [Programa Livre, no SBT], Jô Soares, tudo com a mesma ‘Eu Quero Essa Mulher’. Já estava pegando mal a gente ficar tanto tempo com uma música de trabalho, estava ficando aflitivo”, explica.

Um telefonema do advogado Hildebrando Pontes Neto, “um samurai dos direitos autorais”, classifica Ronaldo, colocou tudo em ordem. Segundo eles, Pena entendeu a necessidade de deixar a banda voar e topou encerrar o contrato, e as tratativas aconteceram em tom amistoso, profissional. “Foi uma conversa de senhores. É um luxo lembrar disso, porque tanto o Pena quanto o Hildebrando são caras muito legais de terem passado na nossa carreira”, registra.

Paulo então chamou a banda pra assinar um contrato de três discos e perguntou se tinham um pronto para a estreia na gravadora. Eles disseram que sim, “mas não tinha disco nenhum”, assume Ronaldo. Se Desce a Lona Vira Circo, Se Cerca Vira Hospício foi feito em 40 dias, gravado no estúdio AR, no Rio de Janeiro, onde a Legião Urbana gravava, na sala maior, A Tempestade (o disco foi lançado depois da morte de Renato Russo, em outubro de 1996). Antes, a banda se exilou no sitio do pai do Ronaldo, em Minas, pra escrever o que tinha dito à gravadora que já estava pronto. O álbum foi produzido por Tom Capone e Dado Villa-Lobos.

Ronaldo acha brecha pra mais uma história. O guitarrista conta que antes de falar com a banda, um diretor de marketing da MCA teria oferecido a produção a Rick Bonadio. “Ele falou assim, ‘pensei em chamar o Rick Bonadio para produzir o disco’”, lembra Ronaldo. “Acho que eu estava ao lado do César, e a gente falou em coro, ‘o que? O cara do Mamonas? Não!’, relembra, enfático. “E aí a gente se encontrou poucos meses depois em uma festinha, nesses tapetes vermelhos aí, e quando ele [Bonadio] vira a cara pra gente de um jeito, a gente olha um pro outro e diz, ‘ele ficou sabendo’.

Ronaldo diz que ter trabalhado com Capone foi “um presente da natureza”. “A gente queria alguém um pouquinho melhor que o Bonadio, e nos deram o Tom e o Dado”, comemora.

A carta de demissão e o fim

Se Desce a Lona... foi lançado em janeiro de 1996. “Vou Te Mostrar” e “Sua Cara” ganharam boas execuções na MTV e em FMs de rock pelo país. Não o suficiente, porém, pra manter a banda no cast do selo. Quando a MCA deu lugar à Universal ao ser comprada pela Polygram, os integrantes receberam cada um uma carta de demissão.

(Sua cara)

(Vou te mostrar)

Foi esse o motivo do fim?

Marcelo: “essa é uma pergunta...”

Ronaldo: “você sabe [para Marcelo]. Você não quer falar então, porque a gente não tolerava mais...”

Marcelo [sarcástico]: “você quer falar que um xingou a mãe do outro? Que brigou...?”

E aí segue-se uma conversa entre os dois que envolve o empresário da banda à época, que também trabalhava para o Pato Fu. Marcelo discorda.

Ronaldo: “mas o empresário foi passear na Europa com a família...”

Marcelo: “que isso, a banda acabou porque tinha que acabar. Ninguém é culpado não, velho!”

Ronaldo: “eu não culpei ninguém não. Eu falei que ele era empresário da gente e da outra banda, não vou nem falar o nome de novo. Essa outra banda não tem nada com isso não! Eu também não tenho nada com o som dela, hahahaha”.

Marcelo [irônico]: “eu acho que a banda acabou por isso, você [ao repórter] acabou de presenciar por que a banda acabou”.

Ronaldo: “Cadê o César? O César tá ouvindo a gente?”

Marcelo reassume a conversa e lembra que, ao se transformar em Universal, a gravadora optou por artistas mais populares. E rescindiu o contrato com o Virna Lisi. “Aí, decidimos na hora que a gente não ia continuar. E foi isso o que aconteceu”, resume.

Os três álbuns da banda ainda não estão disponíveis no Spotify e no Deezer. Fãs subiram os dois primeiros para o YouTube. E a banda, depois da entrevista, publicou os três no Bandcamp

Os músicos cogitam lançar um box com os discos juntos, mas Se Desce a Lona... tem os direitos presos à Universal, e a banda teria de negociar com a gravadora a liberação pra uma, quem sabe, eventual caixa comemorativa de 30 anos. Não há nada definido pra isso, mas a banda não descarta alguma surpresa pra 2019. “Que venham as propostas indecorosas”, acrescenta Ronaldo.

“É sempre um prazer estar com esses caras”, diz Marcelo. “Sem puxação de saco, dediquei os melhores momentos da minha vida com grandes amigos, com grandes artistas, e me orgulha muito fazer parte dessa história. Não tem porque não dar um abraço coletivo junto com o público e tal. É só agendar tudo e vamos ver se vai dar certo”.

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