Série 'Succession' acabou, mas o fenômeno não
Memes, GIFs, jogos com bebidas e remixes ligados ao assunto provam o quanto a produção tocou no coração de seus fãs
*Este artigo inclui spoilers do final da série Succession
THE NEW YORK TIMES - Por quase cinco anos, certas casas e escritórios e os cantos mais intensos das redes sociais se dilataram em torno de uma pergunta de um bilhão de dólares: quem sucederia Logan Roy, fundador e CEO da Waystar Royco, como chefe de um império sinistro que inclui navios de cruzeiro, parques temáticos e a ATN, um conglomerado de mídia alarmista? Resposta: ninguém. Na noite de domingo, com o segundo filho, Kendall, pronto para levar tudo, sua irmã mais nova, Shiv, o traiu. A empresa seria vendida para Lukas Matsson, um anarco-capitalista tecnológico sueco, com o marido de Shiv, Tom Wambsgans, assumindo como CEO.
E enquanto o problema de quem ganhou a eleição presidencial foi deixado em aberto, os fãs da série ficaram tranquilos ao saber que Willa, a esposa de Connor, o descendente mais velho de Roy, planejava redecorar a casa de Logan com um sofá com estampa de vaca.
Em sua temporada final, Succession atraiu menos da metade dos espectadores, em todas as plataformas, de Família Soprano ou Game of Thrones. Portanto, se esta série deu o que falar, o grupo foi selecionado. No entanto, sua sátira inquietante e mordaz dos ultrarricos exerceu uma influência descomunal em seu público. Se seu coração endureceu, ou se seu coração já estava pré-endurecido, uma espécie de conforto amotinado se criou, no qual prazer, inveja e indignação poderiam se entrelaçar.
Você poderia ter assistido ao episódio final usando um boné de beisebol preto Waystar Royco (embora os personagens prefiram a versão Loro Piana sem logotipo de $ 525) ou tomando seu café da manhã seguinte em uma caneca, disponível em tamanhos de cerca de 300 ou 400 ml, estampada com o e-mail de Tom , "YOU CAN'T MAKE A TOMLETTE WITHOUT BREAKING SOME GREGGS." (Brincadeira com a expressão "Você não pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos")
Existem memes de Succession, GIFs, jogos com bebidas, remixes do tema hipnótico e frágil de Nicholas Britell. Há um subreddit dedicado a fofocas e observações falsas. Um exemplo de postagem descreve um boato de que Kendall tem pés pequenos: "Pés pequenos, pequenos". O Saturday Night Live criou uma paródia, Black Succession, embora o sketch tenha sido cortado por falta de tempo. No Twitter, os telespectadores agradeceram à HBO por transmitir o final no domingo do fim de semana do Memorial Day, garantindo à maioria dos trabalhadores um dia inteiro para se recuperar, ou reclamar amargamente da interrupção dos planos de feriado.
Desde a segunda temporada, quase todos os episódios inspiraram reflexões concomitantes. Os escritores argumentaram que nós amamos Succession por causa do que a série diz sobre a América, o que diz sobre classe, o que diz sobre dinheiro, família, trauma e abuso. Esses personagens são como nós. Eles não são nada como nós. Eles são falsos. Eles são reais. Nós os odiamos. Nós os amamos. Estamos torcendo por eles. Será que estamos? Torcemos? Por que?
Porque agora sabemos: algumas das pessoas mais ricas do mundo conseguiram exatamente o que queriam. Algumas não. Nada disso realmente importava.
Ainda assim, a atração era inegável. Por alguns momentos, às vezes até por um episódio inteiro, o programa poderia atrair o espectador para a órbita de um personagem específico, então uma frase ou um olhar quebraria essa gravidade, deixando o mesmo espectador perdido no espaço.
Talvez você tenha se aliado por um tempo ao cabeça de vento libertário de Alan Ruck, Connor; ao fã de rap Narciso de Jeremy Strong, Kendall; à chefe feminina de Sarah Snook, Shiv; ou ao Pinóquio red pill de Kieran Culkin, Roman, o filho mais novo, ainda sonhando em se tornar um menino de verdade. Eles estavam todos feridos. Estavam todos sofrendo. Eles eram todos terríveis.
Opostos a Midas, eles feriam qualquer um que tocassem, a menos que aqueles também estivessem blindados em sua própria riqueza e privilégio. Outra série poderia ter oferecido personagens como contraste - um inocente, alguém genuinamente bom. Essa não. Todo mundo era venal. Todos estavam à venda. Quase todo relacionamento era uma transação. Este era um lugar onde o altruísmo ia morrer.
Se os personagens não encorajavam a lealdade, a trama também não recompensava muito o escrutínio. Embora certos episódios - os finais de temporada em particular - tivessem mais reviravoltas do que uma passagem pelas montanhas alpinas, a série, em sua essência, quase não tinha enredo. Quando começou, Kendall estava prestes a suplantar Logan como CEO, mas Logan destrói esse plano no primeiro episódio. O que se seguiu foram quatro temporadas de maquinações, intrigas, traições e reconciliações, nenhuma das quais mudou os personagens ou fez a história progredir.
O final enfatizou isso, começando como o início, com as tentativas de Kendall de reunir o conselho, uma retomada deliberada da 1ª temporada. "Enorme reunião do conselho", brincou a Lady Caroline de Harriet Walter, a mãe dos três Roys mais novos. "Isso nunca aconteceu antes."
Apesar de sua sofisticação, Succession tinha muito em comum com um curta dos Looney Tunes, com os filhos de Roy perseguindo o prêmio até caírem de um penhasco. De novo. De novo. De novo.
Bilhões estavam em jogo e, no entanto, esses zeros somavam muito pouco, porque os coiotes não tão astutos da série estavam equipados com fundos e paraquedas feitos de algo mais precioso que ouro. Eles teriam esses bilhões - ou, na pior das hipóteses, muitas centenas de milhões - qualquer que fosse o resultado. Ninguém teria que se tornar uma governanta. Ninguém passaria fome.
Para uma série com opções de ações e gerenciamento de ativos privados em seu próprio DNA, Succession manteve uma ambivalência profunda sobre o valor desse prêmio, que a separa das ofertas de riqueza pornográfica dos anos 1980 como Dinastia, Dallas e Falcon Crest.
Embora Succession tenha sido ambientada e filmada em belos espaços, esses espaços foram tipicamente tornados sem ar, estéreis. Poucos personagens pareciam gostar de seus trajes sob medida, seus palácios no céu. É preciso um ambicioso de classe média alta como o sorridente e flexível Tom de Matthew Macfadyen para obter algum prazer com esses acessórios. E esse prazer, como quando ele sente uma dor de barriga na manhã seguinte após engolir muito ouro comestível, é passageiro. Será que ele vai gostar do cargo de chefia pelo menos durante o frio passeio no Escalade com a esposa?
Há uma anedota familiar sobre uma conversa, provavelmente apócrifa, entre F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway: Fitzgerald diz: "Os ricos são diferentes de você e de mim", e Hemingway retruca: "Sim, eles têm mais dinheiro". Era só isso que Succession era? Parece ter sido muito disso.
Para seus telespectadores, em sua maioria de classe média, Succession ofereceu uma visão dos bastidores da vida dos ultrarricos e a garantia reconfortante de que talvez essas vidas, apesar das bugigangas caras que as adornam, não fossem especialmente boas. (Pesquisas recentes desafiaram a ideia de que os ricos são mais felizes do que o resto de nós, o que torna Succession uma fantasia aconchegante.) Esses personagens ainda ficam presos no trânsito em seus enormes carros ou são incomodados por guaxinins em decomposição em suas luxuosas casas de veraneio. Eles foram ignorados, insultados, menosprezados.
No entanto, a excelência da escrita e da atuação significou que os espectadores não podiam descartá-los totalmente. Roteiros menores teriam reduzido esses homens e mulheres a caricaturas, mas Succession insistiu na complicação. E os atores podiam encontrar profundidades, mesmo quando os irmãos e seus empregados estavam no nível mais baixo. Eles eram pessoas horríveis, mas também eram pessoas danificadas, com Culkin, Snook e Strong capazes de mostrar flashes de uma vulnerabilidade surpreendente logo abaixo da armadura de caxemira.
A dor e a comédia andaram de mãos dadas. Lembram-se do javali no chão? O rap do Kendall? O primo Greg de Nicholas Braun, vomitando pelos buracos dos olhos de uma fantasia de parque temático? O Schadenfreude não sustentaria uma série durante muito tempo. Em vez disso, os espectadores tiveram que oscilar, de uma forma enjoativa, entre a simpatia e o desprezo. E os luxuosos interiores beges e os planos arrebatadores de drones fizeram com que tudo entrasse tão suavemente como uma taça de reserva de 20 anos.
Ao tornar esses personagens fáceis de assistir e difíceis de odiar, a série acabou encorajando uma espécie de niilismo alegre, um desejo alegre de ver o que eles podem quebrar - a democracia, uns aos outros - em cada novo episódio. Sob os insultos shakespearianos e as coberturas do Upper East Side, havia algo vazio no coração de Succession.
Isso foi reconfortante, sim, pois os espectadores podiam dizer a si mesmos - como eu podia dizer a mim mesmo - que nossas vidas eram mais ricas, independentemente de nossos saldos bancários. Mas se você assistisse a muitos episódios seguidos, poderia sentir a série fazendo com você o que Ewan Roy, em sua homenagem no funeral de seu irmão Logan, acusou Logan de fazer com seus telespectadores da ATN: alimentar uma chama escura e maldosa em seus corações. No final da série na noite de domingo, como fizemos em tantas outras noites de domingo, assistimos a irmã contra o irmão, o irmão contra o irmão, o marido contra a esposa, Greg contra Tom - interações que confirmaram e alimentaram uma crença na natureza humana como oca, gananciosa, vazia. Quatro temporadas provavelmente foram suficientes.
Talvez não haja melhor ilustração desse vazio do que no episódio do funeral. Após as homenagens, um cortejo de carros segue rapidamente o corpo de Logan por Manhattan até um mausoléu comprado de um ex-magnata de alimentos para animais de estimação. Toda aquela riqueza, todo aquele privilégio, entregando um saco de carne embalsamado para um eterno lugar nenhum. E a pior ou a melhor parte: você ri. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES