'Caleidoscópio' mostra como o streaming se aproxima da TV tradicional
A Netflix tem sido a plataforma mais ativa na oferta de experiências interativas.
Este texto não é uma resenha sobre 'Caleidoscópio'. Uma razão para isso é que a nova série da Netflix não é especialmente digna de nota, exceto por um truque. A outra razão tem a ver com a natureza desse truque.
Os episódios, ambientados antes e depois de uma elaborada tentativa de assalto, são exibidos aos telespectadores da Netflix em ordem aleatória (exceto o episódio que descreve o roubo em si, que passa por último). Então, de certa forma, não posso resenhar a série como você talvez a tenha visto, porque não tenho como saber quais das muitas ordens possíveis você experimentou.
Esta é a parte interessante de 'Caleidoscópio'. E vamos ser honestos: nem é assim tão interessante. Alguns anos atrás, com certeza, a série teria parecido um experimento ousado sobre como a nova tecnologia poderia mudar a TV.
Agora, pela mesma razão, 'Caleidoscópio' parece um retrocesso: apenas uma das muitas tentativas de usar o streaming para alterar o tecido espaço-tempo da televisão, para deixá-lo menos linear e, em alguns casos, mais interativo. Muitas dessas tentativas chamaram atenção, mas nenhuma pegou de verdade.
A Netflix tem sido a plataforma mais ativa nessas experiências, talvez porque tenha investido mais na ideia de ser uma alternativa não apenas às redes de TV abertas ou a cabo, mas ao próprio gênero e negócio da televisão.
Seu renascimento de 'Arrested Development' ,em 2013, foi uma espécie de quebra-cabeça desconstruído: os episódios apareciam fora da ordem cronológica e do ponto de vista de diferentes personagens. Seu filme/série/jogo interativo 'Black Mirror: Bandersnatch' permitia que os espectadores escolhessem o caminho que a história seguiria. Podemos dizer o mesmo do especial 'Unbreakable Kimmy Schmidt - Kimmy vs. the Reverend' – o gato animado adicionava um elemento de jogo de perguntas e respostas. A Netflix também não estava sozinha nisso: Steven Soderbergh seguiu o caminho do escolha-sua-própria-aventura na série/aplicativo 'Mosaic', da HBO.
Depois de tudo isso, mais ou menos uma década após a revolução do streaming, a TV de hoje – ainda – se parece muito com a TV. Tentativas de interatividade não ganharam força, talvez porque nossa cultura já tenha uma forma popular e relativamente jovem de diversão interativa, o videogame. (Um deles, 'The Last of Us', está sendo adaptado pela HBO como um drama de TV convencional).
O formato dominante da TV continua sendo a temporada estática, na qual os episódios são exibidos em progressão definida. Muitas vezes, mesmo no streaming, eles chegam uma vez por semana. A única escolha que os espectadores fazem é o que assistir, quando assistir e se devem levar brigadeiro ou batata frita para o sofá.
De outras maneiras, o streaming mudou completamente o negócio e a estética da TV. Como escrevi em 2015, dar aos espectadores a opção de maratonar quando quiserem incentivou uma forma de narrativa mais focada na temporada e menos no episódio.
As séries de TV da década passada tentaram menos atrair os espectadores desde os primeiros minutos do que fazê-los afundar, como em areia movediça. Em entrevista à Rolling Stone, Tony Gilroy, showrunner da série 'Star Wars Andor', da Disney+, descartou "a ideia de que você deve encerrar cada episódio com um arco" e defendeu o início lento da série como um "investimento" necessário. (Com certeza, é mais fácil fazer com que o público pague por esse investimento quando você está vendendo uma das franquias mais famosas do mundo).
Tudo isso fez diferença – para o bem e para o mal. Acrescentou coisas novas ao pacote de truques da TV, dando aos criadores a opção de fazer trabalhos de formato longo mais unitários. (Entre outras coisas, a era do streaming foi o auge das séries de várias horas). Mas também impôs a expectativa de duração onde não é necessário. Uma coisa que 'Caleidoscópio' tem em comum com muitas séries de streaming é a sensação de ser um argumento para um filme de duas horas que foi reembalado e esticado para ser uma temporada de TV.
Pelo menos por enquanto, streaming e TV parecem estar se encontrando em um meio ainda aglutinado, com elementos do futuro e do passado da mídia. Os talentos ainda estão fluindo para o streaming: o diretor Rian Johnson ('Entre Facas e Segredos'), por exemplo, está prestes a estrear sua primeira série, 'Poker Face'. Mas, em vez de um experimento narrativo alucinante nos moldes de seu filme 'Looper', é uma história de detetive convencional.
Quanto à Netflix, em meio a recentes sinais de que a plataforma não pode continuar crescendo de forma explosiva para sempre, ela introduziu algo que costumava ser um anátema: um nível de assinatura com anúncios. Uma década atrás, a Netflix definiu nossa concepção atual de streaming. Sua próxima fase pode ser transformar-se em TV.
TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU