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Repórter da Globo revisita erro da carreira em documentário que chega ao streaming

‘Escola Base – Um repórter enfrenta o passado’ mostra as consequências de notícias falsas na vida de vítimas e envolvidos

10 nov 2022 - 05h00
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Valmir Salaro
Valmir Salaro
Foto: Divulgação

Quase 30 anos depois, uma notícia falsa espalhada no passado pode ainda ter consequências na vida de pessoas envolvidas no episódio? O documentário Escola Base – Um repórter enfrenta o passado, que chega nesta quinta-feira, 10, ao streaming do Globoplay, prova que sim.

O trabalho não é apenas a revisão de um erro, mas também um alerta para os dias de hoje, em que fake news ganharam ainda mais espaço com as redes sociais e aplicativos de mensagens. E, em meio a isso, os questionamentos na hora de compartilhá-las têm sido menos frequentes.

O documentário parte do ponto de vista do repórter Valmir Salaro, da TV Globo, que até hoje faz reportagens para o Fantástico. Em 1994, Salaro foi o primeiro jornalista a dar a notícia sobre uma suposta rede de abuso sexual infantil dentro de uma escola infantil, a Escola Base.

Depois da escalada de denúncias cada vez mais abomináveis, dúvidas sobre a autenticidade das acusações passaram a ser levantadas conforme as investigações da polícia não encontravam provas. No fim, os suspeitos foram inocentados e passaram de supostos criminosos para vítimas do incidente.

Carregando a culpa por não ter agido de forma diferente na cobertura do caso, o repórter da Globo passa o documentário, dirigido por Eliane Scardovelli e Caio Cavechini, tentando entender onde errou e buscando se redimir com aqueles que sofreram as consequências do erro.

"Cada gravação que eu fazia era uma sessão de terapia", diz o jornalista no lançamento do documentário, em São Paulo. "Esse caso é uma ferida para mim. A ferida acabou, mas ficou a cicatriz".

Salaro admite que errou, mas ressalta que a falha foi em conjunto. O jornalista chama a atenção para a responsabilização de autoridades policiais envolvidas no caso.

"Não é um momento feliz para mim, é difícil [...] Eu errei, e assumo a minha parcela pelo erro, embora tenha sido um erro em conjunto. Eu peço desculpas publicamente para vocês [vítimas da notícia falsa], mas gostaria também que as autoridades que tiveram responsabilidade nesse caso – como legistas, o delegado, o promotor, o juiz do caso, outros jornalistas que fizeram cobertura – viessem a público para reconhecer esse erro e fazer uma reflexão", acrescenta.

Valmir Salaro
Valmir Salaro
Foto: Globo / Bob Paulino

Vítimas

 A importância do documentário se revela ao registrar as consequências na vida de quem foi alvo das acusações falsas. Proprietários da escola, o casal Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada foram os primeiros a ir à delegacia responder pelo suposto crime. Do dia para a noite, a vida deles mudou.

Depois das acusações, a escola foi fechada e, posteriormente, depredada. Enquanto as investigações estavam em curso, o casal chegou a ser preso e, em testemunhos posteriores, revelou também ter sido torturado pelos policiais.

Maria Aparecida, conhecida como Cida, tentou tirar a própria vida duas vezes. Ela morreu em 2007, vítima de um câncer. Seu marido, Icushiro, sofreu um infarto no ano do caso. Em 2014, morreu após uma nova parada cardíaca.

Hoje, o filho do casal, Ricardo Shimada, é quem fala pelos pais. Mesmo novo na época dos fatos, com apenas 14 anos ele já tinha a dimensão da tragédia que atingiu a família.

"Eu era muito revoltado", diz no documentário. "Eu queria matar todo mundo".

No lançamento da produção, Ricardo conversou com o Terra e relembrou o encontro que teve com o repórter Valmir Salaro durante as filmagens.

"Ele veio pedir perdão para todo mundo e conseguiu, graças a Deus, falar com os envolvidos. Então, foi muito bom pra isso, né? Ter essa palavra de amor agora", avalia.

Valmir Salaro e Ricardo Shimada, filho do casal, Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada, proprietários da Escola Base já falecidos
Valmir Salaro e Ricardo Shimada, filho do casal, Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada, proprietários da Escola Base já falecidos
Foto: Globo / Bob Paulino

"Naquela época ali foi muito ódio, muito ódio das pessoas e também ódio do Valmir. E graças a Deus isso foi acabando. Esse filme está aí para mostrar isso", acrescentou em conversa com a reportagem. "Agora, eu tenho meu caminho em Deus e pude mostrar que o que realmente vale é o perdão".

Foi com esse sentimento de perdoar que Paula Milhin aceitou fazer parte do filme. Ela é uma das proprietárias da Escola Base injustamente acusada de abuso sexual de crianças, junto com seu então marido, o perueiro Maurício Monteiro de Alvarenga.

"O Valmir tinha que se perdoar também. Eu não vejo o que ele fez como um erro, porque ele acreditou nas mães que denunciaram e caiu em uma sucessão de erros dos quais ele também foi vítima. Então eu perdoo o Valmir como pessoa. A emissora eu não perdoo, não consigo perdoar, mas o Valmir, sim, porque eu senti o quanto ele ficou triste com o que aconteceu. Eu fiz esse documentário por ele, para que ele coloque uma pedra nisso e seja feliz", afirmou ao Terra.

Valmir Salaro e Paula Milhin, uma das proprietárias da Escola Base na época das denúncias
Valmir Salaro e Paula Milhin, uma das proprietárias da Escola Base na época das denúncias
Foto: Globo / Bob Paulino

"O dedo que compartilha pode ser o dedo do gatilho de uma arma"

Os envolvidos no caso Escola Base sentiram na pele as consequências de uma acusação falsa. Para eles, o documentário é um alerta importante na era das fake news, em que compartilhar uma notícia está à distância de nosso dedo para a tela do celular, por exemplo.

"Eu espero que, através desse documentário, as pessoas pensem antes de por pra frente qualquer notícia, porque, se a Escola Base tivesse acontecido nessa nossa época, eu não estava aqui para falar. Já naquele tempo eu tive que sair de casa, porque estava sendo ameaçada. Imagina agora, com Facebook, Instagram. Eu já estava morta", desabafa Paula.

A antiga proprietária da escola usou como exemplo o caso de Fabiane Maria de Jesus, assassinada em 2014, no Guarujá (SP), depois que notícias errôneas sobre sequestro de criança e bruxaria foram associadas a ela. "Mataram a coitada, meu Deus. As pessoas precisam parar, pensar. Em um ato desse, o dedinho lá de compartilhar [uma notícia falsa] é um dedo no gatilho de uma arma", acrescenta.

Após assistir ao documentário, ainda muito emocionada, a ex-proprietária da escola resumiu o que é ser vítima de acusações falsas. "Eu vi a minha morte em vida ali. Aquela Paula do passado morreu. Eu era jovem, tinha sonhos, não tem mais nada disso", lamenta.

Das vítimas da mentira, apenas Paula Milhin não foi indenizada pelo Estado, por ter trocado de advogado durante o divórcio que passou em meio ao processo. Desde maio, ela está na fila de precatórios do governo. Desempregada, ela conta com ajuda de amigos e da oferta de cestas básicas.

"Espero que, através desse documentário, o governo me ajude a liberar a minha indenização. Eu quero pelo menos estar viva para ter um final digno", acrescenta.

Quem quiser ajudar Paula, é possível fazer Pix para a chave 11 91487-4715, ou participar de um grupo do aplicativo WhatsApp para doadores que ajudam a cuidar de muitos dos gatos que ela adotou e carinhosamente cuida através deste link.

Lições

Até hoje, os erros do caso Escola Base são analisados em faculdades de jornalismo e direito, principalmente como exemplo de má apuração jornalística e erros de investigação e processos de difamação. O documentário acrescenta mais uma página à história ao revelar a coragem do repórter em se aprofundar no erro que marcou sua carreira e evidenciar como cenários como esse são complexos.

Para Eliane Scardovelli, que assina a direção junto do colega jornalista Caio Cavechini, fatos como esse demandam cuidado e atenção de todos, principalmente no momento de compartilhar uma informação cuja procedência é desconhecida.

"Quando a gente discute Escola Base na faculdade, a gente pensa: 'Olha, como a imprensa pode impactar a vida das pessoas'. Mas quando você está ao lado do repórter que fez a primeira matéria, percebe o desafio que é compreender todas as circunstâncias que resultaram no erro", avalia.

Caio Cavechini e Eliane Scardovelli
Caio Cavechini e Eliane Scardovelli
Foto: Globo / Bob Paulino

"A discussão não é tão simplista. Existe uma frase que é meio clichê que diz 'se coloca no meu lugar', e fazer jornalismo requer esse exercício de se colocar no lugar das pessoas que a gente está retratando. Ao se colocar no lugar do Valmir, a gente se fazia essa pergunta em várias ocasiões. Com os elementos que ele tinha, será que não era pra dar aquela história? O que exatamente ele poderia ter feito naquela situação? É uma discussão mais complexa", completa Caio.

Fonte: Redação Terra
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