Documentário 'Escrevendo com Fogo' mostra luta de indianas
Produção que concorre ao Oscar 2022 conta história de jornalistas feministas de casta inferior que tentam pôr jornal na era digital
Rintu Thomas e Sushmit Ghosh conversam com o repórter do Estadão de Nova York. O casal de cineastas indianos está fazendo história por colocar a Índia, pela primeira vez, na disputa do Oscar de melhor documentário. Seu filme se chama Escrevendo com Fogo e aborda a luta de mulheres jornalistas para transformar o impresso Khabar Lahariya, da zona rural de Uttar Pradesh, num empreendimento digital. Só o fato de serem mulheres já lhes criaria problemas numa sociedade machista, mas a questão não é só de gênero. Elas são mulheres dalits.
Na classificação social indiana, são párias, ou intocáveis. Os párias não possuem casta, representam a poeira sob os pés do deus Brama. Realizam os trabalhos considerados impuros pelas demais castas.
Só com muita determinação, e luta, essas mulheres dalits puderam criar e manter um jornal. O documentário deu-lhes projeção internacional, com reconhecimento no The New York Times e no The Washington Post, nos EUA, e no The Guardian, britânico.
A migração para o digital lhes vale hoje o acompanhamento de milhões de seguidores. Mesmo que Escrevendo com Fogo não receba o Oscar, já mudou a vida dos cineastas, e das jornalistas. "Estamos em Nova York a caminho de Los Angeles. Nossa vida está uma loucura. Todas essas entrevistas, a exposição que o Oscar representa. A Índia possui uma produção ficcional muito intensa. Todo mundo sabe que existe Bollywood. Estamos mostrando uma outra realidade, uma outra forma de fazer os filmes. Estar no Oscar é muito estimulante. Abre uma janela importante para a produção não ficcional independente, não só na Índia, mas em toda a Ásia."
O repórter desculpa-se. Nunca havia ouvido falar no jornal. "Nós também não. Chegamos ao tema através de uma fotorreportagem mostrando as mulheres dalits que denunciavam a exclusão social em sua região. A Índia é um país imenso, com mais de um bilhão de habitantes. Uma parcela significativa dessa população vive abaixo da linha da pobreza, mas não foram exatamente as denúncias dessas condições sub-humanas que nos levaram a fazer o filme. Foram as mulheres, as jornalistas. Há uma cena no filme em que Meera, a chefe de redação, entrevista um poderoso chefe local. Ele mostra sua espada, diz que não se separa dela. O tom é ameaçador, mas ela, pequena como é, não se intimida. Fala com ele com curiosidade, e até empatia. O homem termina por fazer uma confissão. Foi o suicídio do pai, um agricultor atingido pela crise do setor, que o transformou em quem é. O respeito pelo seu objeto de investigação. Aquilo é uma lição de jornalismo que pode ser entendida no mundo todo."
O filme demorou cinco anos para ficar pronto. Rintu e Sushmit reuniram muito material. A produção é predominantemente ficcional. Radicalizaram. Decidiram que o filme deveria ter apenas 90 minutos. Isso significava cortar, cortar, cortar. "Chegamos à essência do tema, e das personagens. A história desse jornal, e das mulheres jornalistas, é também a história de seus entrevistados." A velhinha que vive numa área sem saneamento básico e faz suas necessidades no mato. "Há um mundo em transformação, pessoas que nunca tiveram voz. E falam."
Escrevendo com Fogo ainda não foi exibido na Índia. O governo exerce rigoroso controle sobre a televisão. A solução será levar o filme para os cinemas, mas será preciso abrir uma brecha na programação. O repórter aproveita para contar que São Paulo sedia um importante evento internacional de documentários que está justamente para começar - no dia 31. O É Tudo Verdade deste ano homenageia, entre outros, o grande Dziga Vertov. Quem são os mestres de Rintu e Sushmit? "Frequentamos a escola de cinema e, naturalmente, sabemos quem é Dziga Vertov. No começo da nossa entrevista você citou Satyajit Ray. Conhecemos os grandes, mas estamos construindo a nossa via, seguindo nosso caminho. Queremos fazer filmes que reflitam o mundo."
Escrevendo com Fogo está disponível nas plataformas Claro Now, iTunes/Apple, Google/YouTube e Vivo Play.