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Análise: 'Quem Você Pensa Que Sou' é um estudo interessante sobre a frustração

Há um desencontro entre as possibilidades infinitas da vida digital e as naturais limitações da vida humana

11 set 2019 - 20h11
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Quando, anos atrás, o filósofo francês Jean Baudrillard dizia que estávamos na era do simulacro, talvez não tivesse ideia de onde tudo poderia chegar. Vivemos hoje imersos num mundo disperso de imagens e não temos a menor ideia se elas correspondem em alguma medida à realidade. Fake news passam por fatos e esses simulacros políticos podem decidir os destinos do mundo, como estamos todos vendo.

O filme francês Quem Você Pensa Que Sou, dirigido por Safy Nebbou, pensa sobre essa questão numa escala mais íntima - a dos relacionamentos humanos, mediados por redes sociais. A personagem de Juliette Binoche é Claire Millaud, mulher de 50 anos que decide criar um perfil falso em uma rede social. Usa como avatar a imagem de uma jovem sedutora. O perfil interage com o marido, de quem Claire desconfia, e também com um amigo do marido, Alex. Claire inicia um relacionamento virtual com Alex e daí imagina-se o grau de confusão a que se pode chegar.

A ideia é bem bolada. Mostra, entre outras coisas, o grau de dependência a que se pode chegar no uso de redes sociais. Não por acaso se fala hoje em "detox" do uso de redes, como se tratasse de alguma substância química, de uso compulsivo, e que ameaça destruir o indivíduo. Claire torna-se viciada. E seu relacionamento virtual encaminha-se, de maneira inevitável, à prova de realidade. Isto é, o relacionamento real.

É a prova dos noves. Apesar de, em certa medida, as redes criarem uma "realidade" em si, não são de todo (ainda) autossuficientes. É preciso, em algum momento, descer do plano do simulacro e aceder à realidade palpável. Em algum momento, amantes virtuais precisam se encontrar. Mas como fazê-lo se os perfis são falsos e em nada correspondem à realidade?

Eis aí um dos inúmeros dilemas da vida contemporânea. A vida digital tende a tomar vida própria, mas ainda existe um apelo ancestral, talvez, à concretude da esfera material. Dois corpos não se encontram por obra e graça da internet, embora possam entrar em contato por meio da fantasia, essa rica capacidade de fabulação humana potencializada pelas novas tecnologias.

No fundo, Quem Você Pensa Que Sou é um estudo interessante sobre a frustração, esse sentimento tão presente na vida contemporânea. Não é raro ouvirmos, em especial em países mais desenvolvidos, com menos problemas de sobrevivência, que as pessoas estão morrendo de tédio e por falta de sentido na vida.

Há um desencontro entre as possibilidades infinitas da vida digital e as naturais limitações da vida humana. Claire sofre disso. Seria quase redundante reafirmar que, num filme um tanto convencional do ponto de vista estético, Binoche brilha mais uma vez. Se tudo é fake, nela aparecem os sentimentos de verdade, como a insegurança e a dor do envelhecimento. O humano é ainda a melhor medida.

Estadão
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