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Clássico do Dia: 'A Primeira Noite de Um Homem', o filme que sacramentou a revolução sexual

Todo dia um filme é destacado pelo crítico do 'Estado', como este, dirigido por Mike Nichols e com trilha sonora de Simon & Garfunkel

3 jun 2020 - 10h56
(atualizado em 28/10/2020 às 18h56)
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Dustin Hoffman colou de tal maneira no 'graduate' Benjamin Braddock que hoje em dia parece impossível imaginar qualquer outro ator como protagonista do filme famoso de Mike Nichols. Mas ele não foi a primeira escolha do diretor, que já estava prestes a fazer seu filme com Charles Grodin quando ele desistiu. Charles quem? Nos EUA, ele se tornou celebridade como apresentador de talk show, mas para o público brasileiro seu nome não significa muito, embora tenha aparecido em filmes de certa rerpercussão (a série Beethoven). The Graduate, título original, surgiu na hora certa. Ao longo dos anos 1960, e sob pressão da sociedade, o Código Hays, que disciplinava o uso do sexo e da violência na tela foi sendo relaxado, até ser abolido de vez.

Violência, para falar sério, nunca foi um grande problema nos filmes de Hollywood, mas sexo, sim. Papai e mamãe sempre dormiram em camas separadas e o célebre beijo de Burt Lancaster e Deborak Kerr na praia - um casal adúltero! - em A Um Passo da Eternidade, de Fred Zinnemann, vencedor do Oscar de 1953, parece mentira, mas provovou uma polêmica épica. No caso de A Primeira Noite de Um Homem, um cartaz com a imagem de Hoffman e Anne Bancroft na cama teve de ser retirado do metrô de Nova York sob a acusação de obscenidade, mas isso é avançar a informação. Nos anos 1950, houve Elvis Presley e o rock'n'roll. Nos 60, a pílula, a minissaia, a geração on the road, os Beatles, a produção independente, tudo isso influenciou o gosto do público. O mundo estava mudando, e Hollywood correu atrás do prejuízo. O ano de 1967 foi decisivo, basta olhar quatro dos cinco indicados para melhor filme no Oscar - sexo e violência em Bonnie and Clyde, de Arthur Penn - no Brasil, chamou-se Uma Rajada de Balas -, a questão racial em Adivinhe Quem Vem para Jantar, de Stanley Kramer, e No Calor da Noite, de Norman Jewison, e a primeira noite de sexo de um garoto no Mike Nichols. O quinto indicado foi uma fantasia que, até hoje, ninguém entende como foi parar lá. Além de não representar quase nada na obra do diretor Richard Fleischer - ele fez coisas muito melhores que foram ignoradas pela Academia -, Doutor Dolittle foi um grande fracasso de público.

Ninguém quis saber de Rex Harrison cantando no seu jeito declamado, e falando com animais. O interesse estava todo na cama, com Benjamin Braddock e a mulher mais velha, Mrs. Robinson, interpretada por Anne Bancrtoft, e também na outra cama em que Clyde/Warren Beatty superava a impotência que o levava a substituir o falo pelo revólver e fazia sexo com Bonnie/Faye Dunaway no Arthur Penn. A Primeira Noite de Um Homem foi indicado para sete Oscars. Ganhou apenas um, e foi o de direção. No Calor da Noite ganhou cinco e, além de melhor filme e ator (Rod Steiger), foi contemplado como melhor roteiro adaptado (Stirling Silliphant), melhor som e melhor montagem (assinada pelo futuro diretor Hal Ashby). Só para completar, o melhor filme estrangeiro do ano foi o checo Trens Estreitamente Vigiados, de Jiri Menzel, e Alfred Hitchcock ganhou o Irving Thalberg Memorial, um prêmio de carreira. Muito importante - naquele ano ainda marcado pela luta por direitos civis, Martin Luther King foi assassinado e a Academia adiou a festa por dois dias. Estava marcada para o que terminou sendo a véspera do funeral e muita gente da indústria não quis perder o solene enterro. Nos discursos de agradecimento, proliferaram mensagens de paz e amor.

Um Oscar, apenas, mas para Nichols foi a consagração. No ano anterior, em sua estreia, ele já havia sido indicado para melhor filme e diretor, por Quem Tem Medo de Virginia Woolf? Era uma adaptação de teatro - da peça de Edward Albee - e Nichols era homem do palco, mais afeito aos atores e ao texto do que à câmera. Os ângulos rebuscados e a câmera na mão podem ter garantido o Oscar de melhor fotografia em preto e branco para Haskell Wexler - havia, naquele tempo, duas categorias, P&B e cor -, mas a crítica não se convenceu muito e A Primeira Noite, entre outras coisas, foi saudado como a desteatralização do método do diretor. Hollywood já vinha flertando com o tema do desajuste da juventude. Foi uma das consequências do pós-guerra, com a implosão da família tradicional. Com os homens no front, as mulheres foram forçadas a assumir seu papel como mantenedoras. Isso repercutiu dentro das casas.

Nos anos 1950, surgiram filmes como Sementes da Violência, de Richard Brooks, com ênfase no social, e Juventude Transviada, de Nicholas Ray, em que o nó da questão está na família. A Primeira Noite de Um Homem coloca o assunto em outro patamar. De cara, Benjamin Braddock está se formando, mas não sabe o que quer da vida. Isola-se no fundo da piscina na própria festa, distrai-se das conversas de 'adultos' que apontam para possibilidades como 'o futuro está nos plásticos'. Na sociedade do bem-estar, no subúrbio da Califórnia, todo mundo ali tem dinheiro, a vida corre mansa. Ah, é? Espere para ver. Ben é o anti-herói. Indeciso quanto ao futuro, pode não ter certeza de muita coisa, mas sabe o que não quer - ser como seus pais. Isso James Dean também não queria no Nick Ray.

Ben interessa-se pela igualmente jovem Elaine, interpretada por Katharine Ross, que dois anos depois seria a Etta Place do western desmistificador - e truffautiano - Butch Cassidy, de George Roy Hill. (Truffautiano não porque mostre um triângulo amoroso, dois homens e uma mulher, como Jules e Jim, de 1961, mas porque seu tema, como o do filme de François Truffaut, é a saudade das coisas mortas que permanecem na lembrança e a das coisas vivas que vão sumindo da memória.) Mas, embora ame Elaine, Ben antes precisa amadurecer na cama da mãe dela, a predadora Mrs. Robinson, que faz dele gato e sapato e, mais tarde, tenta impedir sua união com a filha. Elaine pode muito bem ter sido a última boa moça. Nem imagina que sua rival é a mãe, e Anne Bancroft, que já recebera o Oscar de 1962, por O Milagre de Anne Sullivan, de Arthur Penn, inicia uma nova linhagem de mães da tela. Houve antes a mãe redentora de King Vidor (Stella Dallas, de 1937) e a psicopata de James Cagney no Raoul Walsh (Fúria Sanguinária, de 1949), mas ativa no sexo, e com garotos, como Mrs. Robinson, era novidade.

Anne foi grande atriz, mas seu mito foi esculpido aqui. Não precisaria ter feito mais nada. Com uma mãe dessas, só resta à dupla fugir. Ben sequestra Elaine, que está se casando na igreja e foge com ela no colo. Corre pela rua, até um ônibus. Ao que consta, segundo os anais da produção, foi a cena mais difícil de ser filmada, um pouco porque não foi prático para Hoffman correr com o sobrepeso de Katharine e também porque, naquele tempo, filmagens na rua ainda estavam sujeitas a interferências. Um caminhão de lixo, Hell's Angels, tudo conspirou contra. Mas terminou dando certo. O desfecho faz parte do imaginário de toda uma geração. Aquele foi um ano pivotal na história do Oscar. Bob Hope continuava sendo o mestre de cerimônias, e muita gente jura que nunca houve melhor apresentador. Embora ele fosse a cara da velha Hollyood, é fato que, naquele ano, estava se iniciando uma passagem. (No ano seguinte, a Academia teria uma recaída ao premiar o musical xaroposo Oliver!, de Carol Reed - no ano de O Bebê de Rosemary, de Roman Polanski, e 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick que nem foram indicados para melhor filme).

Além da celebração da juventude e o foco crítico na questão social, com a aparição do policial negro Virgil Tibbs/Sidney Poitier no Norman Jewison, o Oscar de melhor documentário daquele ano foi para um filme pacifista, vindo da França e, com The Anderson Platoon, de Pierre Schoendoerffer, a Guerra do Vietnã, chegava à premiação da Academia. Em geral, a crítica situa a Nova Hollywood na década seguinte, com a geração de Steven Spielberg, George Lucas e Martin Scorsese, mas em 1967 uma nova Hollywood já estava dando as caras, mesmo que ainda tivesse de conviver por alguns anos com a velha. Na trilha de A Primeira Noite de Um Homem, foram surgindo filmes como Perdidos na Noite, de John Schlesinger, e o resto é história.

Mike Nichols seguiu uma trajetótia ziguezagueante, com projetos mais ambiciosos que bem-sucedidos. Abordou o universo nonsense de Joseph Heller (Ardil 22), a virulência crítica de Jules Pfeiffer (Ânsia de Amar), voltou ao tema do casal de Virgínia Woolf em Silkwood. Foi sempre profissional, grande diretor de atores, mas revela muito dizer que seu outro maior sucesso talvez tenha sido Uma Secretaria de Futuro, de 1989, que não é outra coisa senão uma cínica história de Cinderela. Talvez A Primeira Noite tenha sido um feliz acidente, em que tudo deu certo. Vai saber como teria sido com o outro ator - vai saber como seriam O Intrépido General Custer, de Raoul Walsh, e Casablanca, de Michael Curtiz, se a empresa produtora Warner tivesse mantido as equipes originais, que mudaram durante a produção.

A verdade é que muito do acerto de A Primeira Noite deve-se à trilha. É como nos spaghetti westerns de Sergio Leone. Tirem a trilha operística de Ennio Morricone e o impacto é reduzido. Ocorre que os filmes foram pensados com e para aquelas trilhas. Nichols e o produtor Laurence Turman buscaram na dupla Simon & Garfunkel os compositores ideais para expressar o espírito da época. Quando Benjamin está no fundo da piscina, a música é um velho hit da dupla, The Sound of Silence. Quando cai nas garras da mãe de Elaine, o tema é novo, composto especialmente para o filme, Mrs. Robinson. Outros temas antigos também são usados em cenas-chaves - Scarborough Fair, Canticle. Nichols aprendeu com sua parceira Elaine May a arte do diálogo desbocado (com classe) nos shows que faziam em night clubs. Essa combinação de diálogo ferino com trilha buliçosa e elenco nos trinques contribuiu para a aura. O próprio Hoffman contou ao repórter que Nichols o instruía a não atuar. Ele era apenas 6 anos mais moço do que Anne Bancroft, mas em momento algum o espectador duvida da fictícia diferença de idade. Anos depois, a série American Pie virou o The Graduate de outra geração. Não é tão bom, talvez não seja nada bom, mas a mãe de Stifler, com certeza, se transformou na Mrs. Robinson dos anos 2000.

Onde assistir:

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Estadão
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