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A arte é capaz de mudar o mundo?

Diz a lenda que a palavra sabotagem, do francês "sabot", ou "sapato de madeira", foi usada pela primeira vez no começo do século 20 para descrever a estratégia grevista de jogar um tamanco na máquina para interromper a produção.

22 jul 2019 - 07h20
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O artista chinês Ai Weiwei de fato fez uma obra de arte ao destruir outra obra - a performance Derrubando a Urna da Dinastia Han (Crédito: Ai Weiwei)
O artista chinês Ai Weiwei de fato fez uma obra de arte ao destruir outra obra - a performance Derrubando a Urna da Dinastia Han (Crédito: Ai Weiwei)
Foto: BBC News Brasil

Diz a lenda que a palavra sabotagem, do francês "sabot", ou "sapato de madeira", foi usada pela primeira vez no começo do século 20 para descrever a estratégia grevista de jogar um tamanco na máquina para interromper a produção.

Mas na verdade a palavra vem do ato de pisotear o chão para interromper discursos oficiais. As duas histórias estão ligadas ao uso atual da palavra - são estratégias para interromper sistemas de poder, sejam correntes econômicas, acontecimentos políticos ou operações militares. Este ano, o Novo Museu em Nova York abriu seu quarto Trienal, intitulado Canções para Sabotagem, com trabalhos de 30 artistas e coletivos de 19 países que, de acordo com os curadores, "revelam os sistemas que constroem nossas realidades, imagens e verdades" com "um apelo para tomar uma atitude, um engajamento ativo e uma interferência em estruturas políticas e sociais".

Mas em vez de imagens documentais, reuniões organizacionais e workshops, o evento estava carregado de pinturas e esculturas. Presume-se que esses trabalhos de arte visual são, de fato, as músicas do título da exibição. É claro que propaganda, alegorias e apelos para tomada de atitude não são a atitude em si e que a arte que representa mudança ou resistência não necessariamente influencia mudanças ou resistências.

Isso leva a um problema que geralmente surge em conversas sobre a arte: como ela pode participar em redes de poder cujo conteúdo refuta completamente? Muitas vezes, a chamada "arte política" é simplesmente uma estética de protesto ou resistência. Às vezes, tem como efeito a licença moral - incutindo em sua audiência um sentimento falso de ter feito algo. Arte e poder sempre andaram juntos a contragosto. Afinal de contas, Karl Marx e Friedrich Engels escreveram o Manifesto Comunista no conforto do fino restaurante La Maison du Cygne, em Bruxelas.

Ai Weiwei derrubou um vaso da dinastia Han de 2 mil anos para uma fotografia em 1995 - e ele pintou outros como um ato de vandalismo (Crédito: Ai Weiwei)
Ai Weiwei derrubou um vaso da dinastia Han de 2 mil anos para uma fotografia em 1995 - e ele pintou outros como um ato de vandalismo (Crédito: Ai Weiwei)
Foto: BBC News Brasil

Vamos levar em consideração um breve histórico da sabotagem no mundo da arte - de que forma artistas lidaram com a ideia de que os atos mais poderosos de criação poderiam ser os de destruição? E mais, se é possível que as próprias obras de arte interfiram em estruturas sociais e políticas, qual é a aparência dessa disrupção? É claro que sabotagem não é o simples ato de quebrar coisas. Sabotagem é quebrar coisas para que outra coisa, diferente, possa acontecer.

Apetite por destruição

Em termos de destruição de arte, podemos pensar na proposta bem-sucedida de Gustave Courbert, em 1871, de destruir a coluna Vendôme durante a Comuna de Paris, um monumento que ele disse ser "desprovido de qualquer valor artístico que tende a perpetuar através de sua expressão as ideias de guerra e conquista da dinastia imperial passada". Ou mais recentemente a da artista britânica Hannah Black, que fez uma carta aberta em 2017 pedindo que a famosa pintura de Dana Schutz "Open Casket" ("Caixão Aberto", em tradução literal), que reproduz a imagem famosa de Emmett Till em seu enterro, fosse removida da Bienal Whitney e destruída. Emmett Till era um jovem de 14 anos que foi espancado até a morte em 1955 nos EUA por homens brancos após uma mulher branca ter afirmado que ele a desrespeitou. Ambos os casos, porém, são enquadramentos. As propostas de derrubar a coluna e destruir a pintura não são arte em si.

Daniel Buren cobriu Bern de pôsteres quando não foi convidado para uma exposição (Crédito: Photos-souvenirs: Daniel Buren, March 1969, Bern. Détails. © DB-ADAGP Paris)
Daniel Buren cobriu Bern de pôsteres quando não foi convidado para uma exposição (Crédito: Photos-souvenirs: Daniel Buren, March 1969, Bern. Détails. © DB-ADAGP Paris)
Foto: BBC News Brasil

Por outro lado, em 1995, o artista chinês Ai Weiwei de fato fez uma obra de arte ao destruir outra obra - a performance Derrubando a Urna da Dinastia Han. Sua performance foi representada em uma sequência de fotos em preto e branco: o artista segura o vaso cerimonial de 2 mil anos, o vaso está caindo no ar e, por fim, quebra-se no chão. Ao destruir a urna, Weiwei destrói o valor monetário de um objeto antigo, mas também de seu valor cultural. E, no nível simbólico, a atitude representa a rejeição aos legados da Dinastia Han (206 a.C - 220 d.C), um período marcante na história chinesa. Dessa forma, ele convida o espectador a pensar sobre quem determina valores culturais e monetários. Mas tudo isso fica apenas no nível de representação: nenhum sistema político ou social é atingido.

Atos de sabotagem no mundo da arte muitas vezes são direcionados às instituições que sustentam a arte, refletindo as frustrações de artistas com problemas de visibilidade e acessibilidade. Nós podemos lembrar dos Salões dos Rejeitados de 1863, quando Courbet, Édouard Manet, James McNeill Whistler e outros rejeitados pelo Salão de Paris mostraram seu trabalho, com o patrocínio do imperador Napoleão III, em outro local no Palácio da Indústria.

Um século mais tarde, em 1969, Daniel Buren foi excluído da famosa exibição When Attitudes Become Form ("Quando Atitudes Tomam Forma", em tradução literal) na cidade de Bern e, como reação, cobriu os painéis da cidade com suas listras, inserindo-se na exposição. Ele foi preso por isso e teve que deixar a Suíça. Cinco anos depois, a artista americana Lynda Benglis reagiu à misoginia no mundo da arte pagando U$3 mil (R$11 mil) em um anúncio em Artforum, no qual a artista promoveu sua próxima exibição na Galeria Paula Cooper em Nova York posando pelada ao lado de um enorme vibrador de látex.

Gustav Metzger criou sua Arte AutoDestrutiva ao cobrir de ácido hidroclórico tecidos de nylon e então posando ao lado deles enquanto se dissolviam durante 20 minutos
Gustav Metzger criou sua Arte AutoDestrutiva ao cobrir de ácido hidroclórico tecidos de nylon e então posando ao lado deles enquanto se dissolviam durante 20 minutos
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Estratégias de rejeição e revogação do tipo são comuns no mundo da sabotagem na arte. Em 1969, a Coalizão de Trabalhadores da Arte foi criada por artistas como Lucy Lippard e Carl Andre, organizando protestos antiguerra e pedindo a grandes instituições para se posicionarem contra a Guerra no Vietnã. Outras organizações de artistas fizeram ações parecidas na época, como o Grupo de Mulheres Artistas Ad Hoc, liderado por Lippard e cujos protestos resultaram na inclusão de artistas negras na Bienal Whitney seguinte. Em 1974, o artista alemão Gustav Metzger criticou a comodificação da arte através de trabalhos como Os Anos Sem Arte - 1977-1980, que demandava um hiato de três anos de qualquer produção ou venda de arte, sem sucesso.

Pane no sistema

Ainda assim, outros métodos de sabotagem levaram espectadores a agir. Em uma performance em 1968, a artista argentina Graciela Carnevale reuniu participantes em uma galeria de vidro em Rosário (Argentina), saiu e trancou a porta. Ela esperava incitar violência entre os participantes, que eventualmente foram libertos por um transeunte que quebrou a porta da galeria.

Em 2009, Tania Bruguera apresentou sua performance Autosabotagem na galeria Jeu de Paume em Paris: ela intercalou leituras de suas reflexões sobre arte política com um tipo de roleta russa em que pegava um revólver com uma única bala em seu carregador, apontava para sua têmpora, rolava o tambor e apertava o gatilho aleatoriamente. Sua ação desafiou o próprio efeito da arte de influenciar a realidade.

Graciela Carnevale trancou espectadores em uma galeria de vidro como um experimento para ver quanto demoraria para que tudo acabasse em violência (Crédito: Graciela Carnevale/Spai Visor)
Graciela Carnevale trancou espectadores em uma galeria de vidro como um experimento para ver quanto demoraria para que tudo acabasse em violência (Crédito: Graciela Carnevale/Spai Visor)
Foto: BBC News Brasil

Tentativas de fundir completamente arte e vida foram historicamente criticadas - como quando a Bienal Whitney de 1993 incluiu o vídeo caseiro do encanador George Holliday em que policiais de Los Angeles espancavam Rodney King ou quando o curador Artur Żmijewski convidou manifestantes do Movimento Occupy Wall Street para tomar um andar inteiro da Sétima Bienal de Berlim em 2012.

Esses projetos sabotam o próprio conceito do que uma arte pode e deve fazer. Mas voltando à pergunta inicial: o que obras de arte realmente podem fazer para ajudar a interferir em estruturas políticas e sociais? Sob pressão, consigo pensar apenas em algumas que substituem a frágil dinâmica entre arte, vida e poder para intervir em sistemas enquanto mantêm o rigor em forma ou conceito - obras de arte que verdadeiramente têm propósito e efeito no mundo real.

O artista Parker Bright protestou contra a pintura de Dana Schutz de uma vítima de linchamento ao obstruir a visão da obra (Crédit: Twitter)
O artista Parker Bright protestou contra a pintura de Dana Schutz de uma vítima de linchamento ao obstruir a visão da obra (Crédit: Twitter)
Foto: BBC News Brasil

Em 1997, o artista alemão Christoph Schlingensief fez algo do tipo quando organizou a performance Tötet Helmut Kohl! ("Mate Helmut Kohl!"), na qual ele reuniu o número máximo possível de desempregados e os levou para nadar no destino preferido do então chanceler alemão Helmut Kohl quando o político estava lá de férias. Ele disse que todos os alemães desempregados poderiam, juntos, tirar a água do lago. Em 2014, o artista Lawrence Abu Hamdan criou a obra The All-Hearing, para a qual ele pediu a dois xeiques árabes que não fizessem seus discursos semanais de sexta no Cairo mas, em vez disso, fizessem discursos sobre os perigos da poluição de som como uma questão de saúde pública. Schlingensief e Abu Hamdan abalaram o status quo para exigir uma mudança.

Em 1981, Ivan Kafka cobriu uma rua em Praga com mil palitos de madeira - a única maneira de ir ao trabalho era pisando sobre eles (Crédito: Ivan Kafka/Artlist.cz)
Em 1981, Ivan Kafka cobriu uma rua em Praga com mil palitos de madeira - a única maneira de ir ao trabalho era pisando sobre eles (Crédito: Ivan Kafka/Artlist.cz)
Foto: BBC News Brasil

É claro que a sabotagem é maliciosa. Muitas vezes, é uma intervenção que começa como uma interferência pequena que se multiplica e é ampliada resultando na destruição de um sistema. E muitas vezes é feita de forma anônima. Essa relação entre duração e autoria torna a verdadeira sabotagem uma tarefa incômoda para os artistas. Dito isso, meu ato preferido de sabotagem artística aconteceu em 1981, na calada da noite, pelo artista checo Ivan Kafka. Durante a noite, Kafka enfiou mil palitos de madeira entre as pedras arredondadas da rua Jansky, no bairro Neruda, em Praga, logo abaixo do castelo que é um símbolo histórico do governo checo. Quando os moradores locais abriram as portas de casa pela manhã para ir ao trabalho, tiveram que decidir se destruíam a obra - então um ato ilegal de liberdade de expressão - ou o preservavam e deixavam de ir ao trabalho. A instalação de Kafka me lembra a frase dos acadêmicos Fabio Rambelli e Eric Reinders: "A destruição não é o fim da cultura, mas uma das condições de sua possibilidade."

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