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Pagode da 27 transforma rua violenta em patrimônio cultural

Festa dominical no Grajaú, zona sul de São Paulo, volta aos encontros presenciais depois de dois anos de intervalo na pandemia

15 jun 2022 - 05h00
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Foto: Daniel Arroyo/Ponte

A bola de plástico era conduzida em ziguezague pelos pezinhos calçados em chinelos já no começo da Rua Manoel Guilherme dos Reis, na periferia da zona sul da cidade de São Paulo. Outros meninos tentavam buscar a melhor posição para soltar pipa naquela tarde de sol gelada enquanto um carro ou uma moto passava devagar cumprimentando. 

Seu Moacir Santos, 52, já anunciava que o Boteco do Feijão estava a postos para quem quisesse chegar ao levantar uma lona e empunhar uma placa com preços de bebidas. “De segunda a sábado, eu trabalho no meu comércio e, no domingo, venho para cá desde que a Família 27 me convidou para agregar porque as pessoas aqui do Grajaú já conhecem a gente”, conta, usando um boné bordado com P27, ao lado da esposa Jacilene Gonçalves, 42, nascida e criada no bairro.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

O final de semana não era num parque, mas na rua que antes de ter um nome era conhecida por número, 27, e pela violência. “Nos anos 1990, toda a periferia era violenta, mas especialmente essa rua era perigosa, quem é mais velho no Grajaú lembra, era questão de morte mesmo, homicídio, briga de uma da rua de trás com outra daqui”, lembra o músico Jefferson Santiago, 40.

“Não só aqui, na década de 90, tinha morto todo final de semana”, completa o músico Nenen Partideiro, 49. Ambos integram o Pagode da 27, roda de samba que acontece no local aos domingos desde 2005 e também atua com projetos sociais na região do Grajaú. No ano passado, a iniciativa recebeu uma placa do projeto Memória Paulistana, da Secretaria Municipal de Cultura, pelo seu valor histórico.

O ponto de virada foi a ocupação da rua. “A gente se conheceu tocando em outras rodas de samba, num bar ali para baixo, e quando não rolava em outros lugares, a gente tocava na 27 e foi ficando”, explica Jefferson, que mora no bairro desde os 12 anos e toca percussão. “A gente acaba fazendo o papel que o poder público não faz, porque só existe violência porque o Estado é ausente”, complementa Nenen, cujo filho passou de espectador da roda quando criança para tocar entre os músicos. 

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

A reunião do grupo de cerca de 10 sambistas acontece em torno de uma mesa retangular, embalada por uma toalha xadrez vermelha e branca, cores que estão tanto nas vestes dos integrantes quanto na lona que protege a roda e nas paredes do bar e da biblioteca que fica ao lado. Ao centro da mesa, um vaso com espada-de-São-Jorge serve como escudo de proteção. “As cores são vermelho por amor e branco pela paz que a gente busca para nossa comunidade, pelo respeito ao samba porque a gente enxerga como potência, alcançamos lugares que a gente nunca imaginou alcançar”, explica Jefferson. “O samba veio conectando pessoas e salvando vidas”, sorri Nenen.

O diretor musical, compositor e músico Ricardo Rabelo, 47, é uma delas. “Posso dizer que eu tinha tudo para dar errado e foi o samba que me salvou”, sentencia. Um dos fundadores da roda, como Jefferson e Nenen, ele conta que o objetivo é buscar trazer bons exemplos para a juventude. 

“Tenho familiares, pessoas que viveram comigo, que foram para o lado do crime, só que a música me pegou e não me levou para esse lado, então eu comecei a escutar, comecei a estudar, comecei a tocar, a me interessar por música e comecei a frequentar roda de samba. Eu, na verdade, fui resgatado”, diz. “O que eu faço é ser um agente multiplicador de cultura, de arte, porque quando a gente começou, a gente pensou ‘vamos usar o samba como instrumento de transformação social’. Se o samba me salvou, também pode salvar outras pessoas.”

A roda também teve esse impacto na vida de Leandro Carvalhal, 28, um dos integrantes mais novos do Pagode da 27, que assumiu o cavaquinho no grupo em 2019, mas começou a frequentá-la com 16 anos. “Meu pai, minha mãe sempre gostaram de samba, Martinho da Vila, e na época de menino, com aquela vontade de ser jogador de futebol, ele me chamou para ir e falava ‘não, vamo aprender um instrumento, procurar estudar’”, recorda.

“Eu vinha todo domingo com ele e conforme fui estudando, foi despertando aquilo de ‘será que um dia eu vou estar sentado ali?’. Me formei no Conservatório da EMESP (Escola de Música do Estado de São Paulo), fiz licenciatura em música, e hoje a visão que eu tinha lá atrás estou realizando aqui com eles, é uma gratidão que jamais vou esquecer.”

Mas a iniciativa do grupo não criou raízes com facilidade. “A gente teve um pouco de resistência no começo por parte dos moradores porque achavam que ia ser uma roda de samba que ia ter briga, ia ter violência, ia acabar e não queriam participar”, lembra Rabelo.

Por isso, tiveram que conquistar aos poucos a confiança não só da população local, mas também do poder público. “A gente foi atrás de todo mundo que se possa imaginar, do morador, do cara da biqueira, da polícia, porque a gente queria fazer o projeto sem violência, sem droga, tanto que, se alguém vem pela primeira vez aqui e acende um ‘baseado’, a gente para o samba e avisa ‘olha, aqui não’, porque as crianças também vêm e por isso conseguimos aproximar as famílias”, afirma.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Além disso, o Pagode da 27 pede doações de alimentos não perecíveis durante os eventos para destinar para famílias mais vulneráveis da comunidade e incentiva a leitura. “Uma coisa que deu uma aproximada dos moradores com a gente também foi a literatura. Quando a gente começou a levar livros nas casas das crianças e, depois de um mês, a gente vai lá para discutir e ver o que elas tinham achado e deixar um novo livro, automaticamente conseguiu fazer com que a família ficasse mais próxima do samba porque, queira ou não, qualquer movimento musical dentro da quebrada é sempre muito marginalizado”, explica Rabelo.

Jefferson destaca que os dois universos são complementares. “Se você for pegar a história do samba, ela traz muitas questões sociais, de meio ambiente, isso tudo tem nas letras, as letras trazem muitas questões para se refletir e para se estudar”, explica. “E trazer também essa autoestima para o morador da comunidade, de que existe um polo cultural forte no quintal da sua quebrada, ele vem, gosta, chama outra pessoa que não conhece”.

Foi isso que a encarregada de serviços gerais Simone de Souza, 58, fez ao chamar a madrinha de casamento para curtir o som pela primeira vez. De sorriso largo e com uma latinha de cerveja na mão, ela conta que mora há 20 anos no Grajaú. “Eu sempre venho, meus filhos vêm, meus sobrinhos vêm, é maravilhoso!”, afirma, toda empolgada. 

Para Silvana Neves, 35, que trabalha com bijuterias e saiu da cidade de Diadema, no ABC paulista, a propaganda de Simone foi boa. “Vim conhecer e tô gostando, tá bem animado”, sorri. Ela levou a filha Yasmin, de sete anos, para acompanhá-la, que ficou colorindo desenhos junto com outras crianças no espaço da biblioteca numa mesa com cadeiras infantis. “Foi uma surpresa [saber da biblioteca] porque, querendo ou não, é um espaço que foi dado para os pais curtirem e os filhos curtirem com a gente, então eles não ficam desanimados nem hiperativos demais, e eu consigo sair um pouco da correria do dia a dia”, pontua. 

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Mas o clima descontraído retornou à Rua Manoel Guilherme dos Reis faz pouco tempo. A roda de samba de 12 de junho era apenas a quarta realizada em 2022, depois que o Pagode da 27 ficou dois anos sem se apresentar por causa da pandemia de Covid-19. “Graças a Deus, estamos com todos os músicos aqui, fortes, e deu para garantir o básico para a família”, aponta Nenen, que trabalha em uma empresa de entregas e logística. 

“A gente parou, mas a parte social continuou”, completa Jefferson. “Então, a gente doou muitas cestas básicas, a gente fez uma parceria com a Ecoativa [centro eco-cultural localizado na Ilha do Bororé] que trouxe alimentos orgânicos. O mais forte foi a distribuição de cestas, a gente fez duas lives também para arrecadação de alimentos”. 

Segundo ele, o projeto de levar livros às casas de famílias com crianças também continuou. “Se fosse pelo público, a gente já teria voltado [com a roda de samba na rua] faz tempo, mas a gente esperou pelo menos ter a liberação das máscaras para se sentir mais seguro”, pontua.

Foi durante esse período de retorno, em maio de 2022, que o grupo reinaugurou a biblioteca reformada após conseguirem vencer um edital da Prefeitura de São Paulo, e também inaugurou a Casa 27, que fica na Rua Pedro Starbulov e a aproximadamente 500 metros da rua que deu início à trajetória do Pagode.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

“Depois de 17 anos, a gente conseguiu essa casa”, conta Rabelo, orgulhoso. E querem ir mais longe. “A gente aguarda a resposta para viabilizar um projeto para ensinar crianças a fazer seu próprio instrumento”, explica. “Vou ser o oficineiro e a criança construindo seu instrumento. O Leandro entrará como professor para ensinar a tocar. Consequentemente, a criança aprendendo o básico, ela passa a integrar a orquestra de cavaco da 27, que vai ser nosso produto final, e a gente quer atingir 70 crianças, todas do Grajaú”.

E não é difícil ver alguns meninos e meninas brincando durante a roda, algumas até tentando criar uma melodia com instrumentos do grupo. Já os adultos, puxavam o coro no repertório, que vai de canções autorais do grupo a composições famosas como “Coração em Desalinho”, do sambista Monarco, que morreu em 2021.

Entre a barraquinha de churrasquinho e os passinhos pra lá e pra cá, nem os 13 graus da fria noite de domingo afastou o público. “O pagode é isso: é reunião de amigos fazendo um sambinha. No final, é tudo a mesma coisa, é música”, conclui Nenen Partideiro. “Se você quer lavar a alma para começar a segunda-feira, você tem que passar pela 27”.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Serviço:

Pagode da 27

Onde: Rua Manuel Guilherme dos Reis, 533, Parque Grajaú - São Paulo, SP.

Quando: todos os domingos, das 16h às 20h.

Para saber mais: @pagodeda27 nas redes sociais

Ponte
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