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Tecnologias biométricas: os dilemas do reconhecimento facial nos estádios

Tecnologia deverá ser obrigatória em todos os grandes estádios até 2025. Porém, estudos concluem que tais sistemas podem gerar discriminação e impactar desproporcionalmente grupos sociais específicos, baseados em classe, cor e gênero.

17 set 2024 - 12h25
(atualizado em 19/9/2024 às 15h18)
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Catracas com reconhecimento facial se espalham pelos estádios do país, mas estudos indicam problemas envolvendo a tecnologia e situações discriminatórias de cor, gênero e classe social. No Atlético Goianiense (foto) elas foram inauguradas este mês. Já as do rival Goiás, instaladas em 2022, são usadas em crianças, o que está em desalinho com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Foto: Ingryd Oliveira/Atlético Clube Goianiense, CC BY
Catracas com reconhecimento facial se espalham pelos estádios do país, mas estudos indicam problemas envolvendo a tecnologia e situações discriminatórias de cor, gênero e classe social. No Atlético Goianiense (foto) elas foram inauguradas este mês. Já as do rival Goiás, instaladas em 2022, são usadas em crianças, o que está em desalinho com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Foto: Ingryd Oliveira/Atlético Clube Goianiense, CC BY
Foto: The Conversation

O futebol é parte fundamental da cultura brasileira, esporte que mobiliza multidões, desperta paixões e que demanda atenção de políticas públicas em diferentes áreas. Seja no atrativo turístico que os jogos têm, seja na atuação pública nos setores de mobilidade, limpeza e segurança, com a realocação de serviços públicos como guardas municipais, garis e policiais, por exemplo. E fazer parte de algo tão central para os brasileiros passou a significar ceder seus dados pessoais sensíveis e estar exposto a possíveis detenções injustas.

Em 2023, a promulgação da Lei Geral do Esporte (n.º 14.597/2023) estabeleceu o reconhecimento facial como tecnologia obrigatória a ser adotada até 2025 em estádios com capacidade para mais de 20 mil torcedores. Em setembro de 2023, a própria CBF deu início ao Projeto Estádio Seguro, uma parceria com o Ministério da Justiça que pretende ampliar o uso de tecnologias biométricas não apenas para a autenticação de identidade, mas também para fins de segurança pública no Brasil.

Tendo em vista essa expansão da infraestrutura de vigilância no país, o Projeto Panóptico - iniciativa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da UERJ, que desde 2019 dedica-se a acompanhar a aplicação de tecnologias de reconhecimento facial na segurança pública no Brasil, publicou o relatório de pesquisa "Esportes, Dados e Direitos", que busca compreender esse processo, apontando seus dilemas e os potenciais riscos do uso dessa tecnologia em espaços desportivos.

Erros de identificação e discriminação

A tecnologia do reconhecimento facial vem sendo implementada com a justificativa de que sua utilização aumenta a segurança do público nos estádios. Porém, seu uso em larga escala gera questionamentos. Uma série de estudos críticos sobre suas limitações frequentemente concluem que tais sistemas podem gerar discriminação e impactar desproporcionalmente grupos sociais específicos, baseados em classe, cor e gênero.

Um estudo publicado em 2018 apontou que os algoritmos de reconhecimento facial analisados tendem a ter taxas de erros maiores com mulheres negras (34,7%), enquanto o erro máximo para homens brancos foi de 0,8%.

Portanto, de acordo com tais dados, é possível concluir que o uso da tecnologia oferece algum risco de que o acesso dos torcedores possa estar sendo mediado por uma lente discriminatória. Erros de identificação são um ponto de atenção e podem gerar impedimento de acesso, abordagens violentas e até mesmo detenções equivocadas.

Catracas infantis

Além disso, o cadastramento desnecessário e, em certo sentido, ilegal, de crianças e adolescentes por parte dos clubes tem sido corriqueiro.

O cadastramento de dados biométricos de crianças e adolescentes é um ponto que levanta sérias preocupações sobre o uso dessa tecnologia em estádios. Este uso está em desacordo tanto com o Estatuto da Criança e do Adolescente, quanto com a diretriz estabelecida pelo artigo 148 da Lei Geral do Esporte, que apresenta a necessidade de controle biométrico somente a partir dos 16 anos.

Além disso, a prática também está em desalinho com o próprio Termo de Acordo entre a CBF e o Ministério da Justiça em torno da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que prevê a coleta e compartilhamento de dados pessoais de cidadãos somente após os 18 anos.

Um exemplo preocupante desse desalinho pode-se encontrar na entrada do estádio Hailé Pinheiro, em Goiânia, casa dos jogos do Goiás Esporte Clube na Série B do Brasileirão e primeiro estádio do Brasil a adotar a tecnologia, em 2022. Ali, estão instaladas algumas catracas de tamanho reduzido, especialmente adaptadas para o reconhecimento facial de crianças.

O clube informou que dos 210 mil torcedores com sua biometria cadastrada, 30 mil têm entre dois e 14 anos, ou seja, 14,3% do total.

Outro clube da cidade - o Atlético Goianiense, que joga a primeira divisão do campeonato, estreou a nova tecnologia no último fim de semana.

Em nossa pesquisa também contatamos outros clubes como Botafogo, Flamengo, Fluminense, Palmeiras e Vasco da Gama para solicitar o número de crianças cadastradas, mas não recebemos respostas.

Problema antigo

Os problemas com a biometria facial não são novos no Brasil. Na pesquisa "Um Rio de câmeras com olhos seletivos: uso do reconhecimento facial pela polícia fluminense", O Panóptico demonstrou que no teste de reconhecimento facial nos arredores do Maracanã em 2019, 7 de 11 pessoas detidas pela Polícia Militar do Rio de Janeiro não tinham mandados de prisão em seus nomes.

Em abril deste ano, o personal trainer João Antônio Trindade Bastos, de 23 anos, foi detido na final do Campeonato Sergipano por conta de um erro no sistema de reconhecimento facial.

Atualmente, 20 estádios utilizam a biometria facial no Brasil e outros dois estudam a utilização. Apenas cinco empresas no país realizam o serviço de controle biométrico: a Bepass, a Club System, a Facepass, a Imply e a Tik+.

Os dados biométricos dos torcedores são enviados somente uma vez, antes do acesso à página de compra de ingresso, no site do próprio clube. No entanto, o cadastro da face do torcedor é administrado por uma empresa, que nem sempre produz os ingressos. No Maracanã, três empresas distintas trabalham com dados para o acesso do torcedor ao estádio através da biometria.

Possível uso indevido de dados

Com o intercâmbio dos dados dos torcedores para diferentes empresas e a consequente exposição de dados sensíveis sem a devida regulamentação necessária, os torcedores estão expostos à utilização das suas informações, entre outros, para fins comerciais e com direcionamento de propagandas.

Ainda não estão claros mecanismos de proteção de dados e o ciclo de vida dos dados das faces dos torcedores, ou seja, até quanto tempo as empresas podem manter esses dados armazenados em seus bancos de dados. Sendo a face um dado de identificação pessoal e permanente, as possibilidades de vazamento e uso indevido.

Vale destacar que nos Jogos Olímpicos de Paris, principal evento esportivo do ano, o controle de reconhecimento facial não foi usado por conta do risco de vigilância, por se tratar de um método que utiliza um dado sensível e por ser uma tecnologia com taxa de erro que varia de acordo com a cor e o gênero do fã de esportes.

No Brasil, a adoção de tecnologias de vigilância biométrica em estádios é mais um sinal da crescente militarização de diferentes aspectos da vida social no país. O fato dessa adoção ter sido fruto de um acordo entre o Ministério da Justiça com a CBF, sem a presença do Ministério dos Esportes, é mais um sinal dessa securitização.

Enquanto tais questões não forem devidamente equacionadas, ir a um estádio aproveitar um jogo de futebol começa a se tornar mais uma experiência de vigilância e segurança pública e menos um momento exclusivo de cultura e lazer dos torcedores.

The Conversation
The Conversation
Foto: The Conversation

Os autores não prestam consultoria, trabalham, possuem ações ou recebem financiamento de qualquer empresa ou organização que se beneficiaria deste artigo e não revelaram qualquer vínculo relevante além de seus cargos acadêmicos.

The Conversation Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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