Sanções dos EUA podem bloquear sistema de GPS no Brasil? Especialistas avaliam
Apesar dos rumores, sistema não pode ser desativado por região; Brasil usa sinais de outros satélites e estuda alternativas nacionais
Com a escalada de tensões diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos, especulações sobre possíveis sanções tecnológicas voltaram à tona — entre elas, a possibilidade de o governo americano restringir ou até mesmo "desligar" o sistema de geolocalização GPS em território brasileiro. Mas, afinal, isso é tecnicamente viável? E o que aconteceria se o sinal do GPS deixasse de funcionar por aqui?
O GPS (Global Positioning System) é uma constelação de satélites desenvolvida pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, originalmente para fins militares. Desde os anos 1990, no entanto, o sistema foi aberto para uso civil e se tornou indispensável no cotidiano global. Ele está presente em aplicativos de navegação, aeronaves, navios, agricultura de precisão, bancos, telecomunicações, monitoramento ambiental e até no funcionamento de tornozeleiras eletrônicas.
A precisão do sistema depende da triangulação de sinais emitidos por satélites em órbita, que estão a cerca de 22 mil km da superfície da Terra. Por isso, qualquer alteração na transmissão dos sinais pode impactar diretamente serviços essenciais em escala global.
A hipótese de desligamento do GPS no Brasil ganhou força após rumores circularem em grupos políticos e redes sociais, associando possíveis retaliações do governo norte-americano ao uso do sistema de geolocalização. No entanto, não há qualquer declaração oficial de Donald Trump ou de autoridades americanas sobre desligar o GPS no Brasil. A ideia, por ora, não passa de especulação e, segundo especialistas, sequer faz sentido técnico.
"Não há como desligar o GPS para uma região de forma seletiva. Para que isso se torne realidade, muitas alterações deveriam ser realizadas nos satélites e no segmento terrestres do GPS. Se desligar um deles, iria prejudicar uma região muito grande", afirma João Francisco Galera Monico, professor da área de Cartografia da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Paulo Sergio de Oliveira Junior, professor e pesquisador no Departamento de Geomática da Universidade Federal do Paraná (UFPR), concorda. "Tecnicamente, não é viável desligar o sinal do GPS apenas em uma região específica do planeta, como o Brasil. O sinal é transmitido continuamente por uma constelação de satélites em órbita, cobrindo todo o globo. Ainda que haja possibilidade de degradação intencional do sinal (o chamado selective availability, desativado desde 2000), o desligamento regional não é uma prática viável nem compatível com o sistema."
Além disso, os especialistas avaliam que uma medida desse tipo poderia prejudicar os serviços das principais empresas de tecnologia dos EUA, grandes aliadas do governo Trump — Amazon, Google, Meta, Microsoft e Apple têm serviços que dependem do sistema. "O GPS é utilizado globalmente em aplicações civis, comerciais e científicas, inclusive em dispositivos americanos, o que torna qualquer tipo de desligamento improvável e estrategicamente desvantajoso, inclusive para os próprios EUA", reforça.
Episódios reais e ameaças veladas
Embora o desligamento pontual do GPS seja improvável, há precedentes de interferência em tecnologias espaciais durante conflitos geopolíticos. "Em 1982, durante a Guerra das Malvinas, entre Argentina e Reino Unido, as imagens de satélites foram interrompidas para os usuários na América do Sul, sobretudo aos usuários da Argentina e Brasil", conta Humberto Barbosa, coordenador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (LAPIS), da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Outro caso ocorreu na década de 1990, quando os EUA deslocaram um satélite geoestacionário que era fundamental para previsão meteorológica do Brasil, deixando o País sem imagens por um período temporário. Segundo Barbosa, o motivo do deslocamento ocorreu pela necessidade de monitoramento de furações na região do Atlântico Norte, cuja formação têm potencial de provocar desastres na costa leste dos EUA.
Alternativas globais
O GPS foi o primeiro sistema disponível para o público de grande utilização, mas existem outros sistemas globais de navegação por satélite (GNSS) que funcionam paralelamente ao modelo americano, inclusive no Brasil, como o Galileo (Europeu), o Beidou (China) e o GLONASS (Rússia). "Todos eles operam e são capazes de prover posicionamento e navegação com precisão comparável ao GPS. A maioria dos dispositivos atuais já é compatível com múltiplos sistemas, o que garante resiliência aos serviços de posicionamento", diz Oliveira.
Busca por autonomia
Mesmo com acesso a tecnologias estrangeiras, o Brasil ainda está longe de ter autonomia espacial. "O Brasil não possui, hoje, um sistema global próprio de navegação por satélite", explica Oliveira. O país investe em infraestrutura complementar, como a Rede de Brasileira de Monitoramento Contínuo (RBMC), composta por receptores GNSS que rastreiam os satélites continuamente e permitem o uso de métodos de posicionamento que melhoram a precisão do posicionamento em território nacional.
Barbosa lembra que o primeiro satélite geoestacionário brasileiro, lançado em 2017 com apoio da França, teve uso limitado: "Ele não tem a carga ou os sensores para monitoramento meteorológico. Foi um satélite sem a função de monitoramento, voltado para ampliar a banda larga na Amazônia". Segundo ele, o próximo grande passo pode vir apenas em 2030, com o lançamento do Cbers-5, em parceria com a China.
O pesquisador também critica a ausência de uma estratégia nacional clara. "Todo o nosso desenvolvimento espacial depende de satélites de outros países", diz Barbosa. "Nosso sistema espacial está muito entrelaçado entre a parte militar e civil. O Ministério de Ciência e Tecnologia determina o orçamento, que fica muito dividido entre aplicações civis e militares." De acordo com o pesquisador, há uma fragmentação dos recursos e ausência de uma linha estratégica da indústria com o setor espacial "que traz muita dificuldade orçamentária.
Embora os especialistas concordem que os riscos de uma interrupção deliberada dos sinais GNSS, especialmente do GPS, são baixos, em tempos de crise, há uma chance remota de desativação, o que poderia levar ao colapso total de certos serviços. Portanto, é importante o desenvolvimento de tecnologias brasileiras para garantir autonomia em situações extremas. Isso, contudo, não envolve abrir mão de tecnologias estrangeiras. Segundo Barbosa, o país precisa "trabalhar com múltiplos parceiros, como Estados Unidos e Europa, e não colocar todos os ovos numa única cesta".