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A ideia de "instinto maternal" é um mito?

Livro de escritora americana questiona ciência por trás da maternidade e rediscute papeis na criação dos filhos

15 nov 2022 - 10h06
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The Washington Post - Como tantas outras mulheres nos Estados Unidos, Chelsea Conaboy voltou a trabalhar logo após ter o primeiro filho. Ela estava dentro de um closet improvisado, tentando bombear leite materno, e se perguntava quando entraria em ação o mágico "instinto maternal" sobre o qual tanto ouvira.

"Eu tinha aquela sensação arraigada de que haveria um processo biológico que me guiaria por aqueles primeiros dias difíceis", disse ela. "Quando a coisa não aconteceu como eu esperava, pensei que tinha alguma coisa errada comigo".

Conaboy finalmente percebeu que ela igual a inúmeras outras mulheres que sofrem com alguma parte da transformação para a maternidade. Então, Conaboy, jornalista de saúde e ciência, começou a pesquisar o que ela chama de mito do instinto materno e como ele se perpetuou.

Aqui, ela nos fala sobre seu novo livro, Mother Brain: How Neuroscience Is Rewriting the Story of Parenthood, sobre a ciência por trás da maternidade, dos papéis de gênero e do apego humano e sobre como precisamos reformular a narrativa falsa e ultrapassada que limitou nossas vidas e experiências. (Esta entrevista foi condensada e levemente editada para maior clareza).

Você escreve que esse conceito de instinto maternal foi criado como um dispositivo barato e não científico, projetado para convencer as mulheres a ter muitos bebês. Por que esse conceito foi tão aceito como verdade? E o que começou a mudar?

O que discordo é que seja um "instinto". Um instinto é uma ideia rígida, um padrão fixo de comportamento. A maternidade não é automática. É uma grande transição, uma reviravolta no cérebro.

A ideia do instinto materno foi inscrita na teoria científica no início do século 20 por homens religiosos que tinham um interesse declarado em obrigar mulheres brancas e ricas a terem mais bebês.

Uma das minhas partes favoritas do livro é quando Leta Hollingworth chama esses mitos de "dispositivos baratos". Ela foi uma psicóloga pioneira e já em 1916 escreveu como as mulheres estavam sendo obrigadas a ter bebês pelos mesmos métodos que obrigavam os soldados a ir para a guerra. Havia essa glorificação da maternidade - e a ofuscação das partes difíceis. As taxas de mortalidade materna eram 60 vezes maiores [em 1916] do que no final do século [20].

Há uma razão pela qual o instinto maternal parece verdadeiro. Processos hormonais, experienciais e neurobiológicos de fato acontecem na maternidade, mas eles não são o que nos disseram que são. Não são essas coisas automáticas e inatas que as mulheres têm desde que nascem - que só as mulheres têm.

Você mencionou que achava que a depressão pós-parto seria como uma gripe: ou você tem os sintomas, ou não tem. Como o mito do instinto materno desempenha um papel em nossa incapacidade de lidar com os transtornos de humor pós-parto e o que podemos mudar para melhorar os resultados?

Precisamos normalizar a sensação de angústia e dificuldade. Essa transição para a maternidade às vezes é bem exaustiva. Pode ser alegre e cheia de amor e maravilhamento. [Mas] não conheço ninguém que tenha passado pela maternidade sem algum sofrimento psicológico, seja infertilidade, perda de gravidez, dificuldade ou trauma no parto, culpa pela amamentação ou pelo retorno ao trabalho. É muito exaustivo.

Não quero que a mensagem seja: é difícil para todo mundo, então pare de reclamar. É um processo muito difícil, e todas nós precisamos de apoio. Nossos sistemas não são suficientes - e muitas de nós precisamos de mais suporte.

É verdade que processos biológicos acontecem com as mães, mas isso exige muito de nós.

Pedir apoio não é sinal de que você é uma mãe ruim. Você está passando por uma transformação difícil. Numa sociedade que não reconhece esse fato, é perfeitamente normal precisar de ajuda.

O paralelo que gosto de traçar é com o cérebro adolescente: as mudanças hormonais são fundamentalmente adaptativas e [este tempo de desenvolvimento] tem um grande papel para o risco de doença mental. Usamos a ciência para criar mais apoio para os adolescentes: horários de início das aulas mais tarde, a maneira como falamos sobre uso de substâncias e comportamentos de risco, a maneira como mudamos a aplicação da disciplina na escola. Precisamos de uma conversa semelhante sobre o cérebro das mães.

Esse conceito de instinto materno moldou muitas de nossas políticas públicas. À medida que mais famílias não tradicionais tomam forma e mais homens assumem funções de cuidadores, você também vê uma mudança nas políticas públicas?

Isso me deixa realmente esperançosa de que essa conversa possa mudar, à medida que mais pessoas experimentam cuidar de seus bebês, porque o cuidado pode ser transformador.

O padrão [para atendimento clínico] agora é uma consulta seis semanas depois do parto. Não é o padrão nos outros países desenvolvidos. [A Associação Americana de Obstetras e Ginecologistas] o caracterizou como inadequado e pediu uma abordagem mais holística - para necessidades físicas e necessidades de saúde mental.

Trata-se de um momento de desenvolvimento. Precisamos dar a todas as mães tempo e segurança financeira para se concentrarem na parentalidade. Isso também vale para mães não gestacionais. As coisas que mudam o cérebro são os hormônios e a exposição aos bebês. Essa exposição acontece ao longo do tempo, no cuidado direto da criança. Mães não gestacionais também precisam desse tempo.

Também precisamos mudar as conversas que temos e como falamos umas com as outras sobre nossas experiências de maternidade e o que as futuras mães podem esperar. Precisamos falar com mais franqueza sobre como tem sido para nós, ajudando outras pessoas a saber o que esperar e de que tipo de apoio elas podem precisar.

Quais são alguns desses exemplos de mudança individual e de como falamos sobre a experiência pós-parto?

Depois que meu primeiro filho nasceu, participei de um grupo de apoio à amamentação no hospital. Me garantiram que ele estava crescendo. Mas, nessa reunião de vinte mulheres e seus bebês, nunca falamos sobre a parte da saúde mental. Fiquei pensando: 'Será que sou a única que está sentindo a mudança em mim mesma?"

Minha cabeleireira está grávida de vinte semanas. Outro dia, ela estava falando sobre o berçário e o chá de bebê, o macacão fofo. Continuei tentando falar sobre como defender sua saúde física e mental. Ela foi receptiva, mas é desconfortável porque não é a norma. Celebramos muito nesse momento e apoiamos as mães, mas também precisamos ter conversas francas sobre o que elas vão precisar.

Pesquisadores descobriram que, à medida que mais mães ingressam no mercado de trabalho, aumentam não apenas os padrões para o que achamos de boa mãe, mas também a expectativa de que as mães devem arcar com todos os fardos com graça e facilidade. Seu livro é uma tentativa de abrir buracos nessa narrativa punitiva. Como você acha que as coisas estarão daqui a dez anos?

Daqui a dez anos, adoraria que as futuras mães tivessem a oportunidade de fazer um balanço e reconhecer que a mudança acontece dentro de si mesmas, e não apenas nos seus horários e no seu sono. Que elas pensassem no seu histórico de saúde mental e se perguntassem se precisam de mais apoio - que pedissem esse apoio. Adoraria que essa fosse uma parte muito normalizada da conversa com obstetras e doulas.

Mas este é só um ponto de partida, só uma parte do processo.

Precisamos reconhecer que essa ideia ultrapassada moldou muitas de nossas políticas públicas, até mesmo nossas crenças sobre direitos reprodutivos e quem deveria ter bebês e por que deveria ter bebês. Justiça reprodutiva, licença remunerada, equidade de gênero. Hoje temos essa aceitação social de que as mães sabem o que fazer e pertencem ao lar e têm capacidade de fazer tudo sozinhas. Essas coisas são cientificamente falsas.

Para prosperar, precisamos falar das nossas lutas.

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Rebecca Gale é pesquisadora do Better Life Lab da New America. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Estadão
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