Carminha é uma vilã cativante do universo periférico brasileiro, enquanto Odete Roitman representa uma elite distante, geografica e socialmente, ligada a outro momento histórico do país.
Carminha, vilã suburbana, é uma personagem complexa, cheia de nuances, enquanto sua congênere milionária é direta, previsível. Na teoria literária, Carminha é uma “personagem esférica”, que vai se modificando em aspectos decisivos, físicos e psicológicos. Odete Roitman é uma “personagem plana”, não muda suas características.
Carminha é esperta, safa, veio do lixão e fisgou um jogador de futebol milionário. Fez mil e um malabarismos para reinar na mansão breguíssima, porém luxuosa do Divino, bairro fictício que representa o subúrbio carioca em Avenida Brasil.
Odete nasce rica e fica milionária administrando a empresa de aviação que herdou do pai. Praticou aquele tipo de honestidade que para rico não dá cadeia no Brasil. Carminha sabe o que é rodar, que pode rodar. Odete simplesmente atropela, com o poder de quem é inatingível.
Carminha sente, Odete pensa. Carminha paga pra ver, Odete paga para ter, inclusive um homem, enquanto Carminha os têm aos seus pés, que o diga Max, literalmente um capacho, como bem alertava Nina em sua vingança.
Carminha é ardilosa, sexy. Odete é direta, bonita, mas não seria capaz de levar um homem à loucura – não pelos métodos de Carminha, que expressa e esconde conscientemente sua malandragem, se é que me entendem.
Carminha se descabela, Odete olha por cima – até o pileque da filha, com whisky, é chique. Ela quer ver Heleninha bem para que funcione, seja útil, assim como o filho. Carminha despreza violentamente a filha e morre pelo amor que jamais terá do filho.
Carminha saca da vida, quer dinheiro, mas não abre mão de um amante para amar, e que a ame, além da família. Odete tem dinheiro, sempre teve, a família não faz diferença, e a relação com os filhos é prática, distanciada.
Odete é psicanalisada, tem uma régua racional e eficaz para medir tudo. Carminha aprendeu ralando, nos corres, nas esquinas. Cai, levanta, ganha e perde da rival Nina. Odete jamais será atingida em seu pedestal - não tem rivais à altura.
Carminha consegue provocar o que somente grandes personagens conseguem, empatia, apesar do mau caráter. No final de Avenida Brasil, quando sabemos mais sobre sua história, quase a perdoamos.
Mas não ligamos muito para o destino de Odete. Na primeira versão de Vale Tudo, a comoção foi por conta de quem a assassinou, não pelo assassinato. Se Carminha morresse, sentiríamos muito, enquanto Odete, que morreu de tiro, teria um infarto se pisasse na mansão do Divino.
Seria atingida pelo mal gosto estético, pela falação em altos decibéis, pelos barracos constantes. Os mundos de Carminha e Odete nunca se encontrariam, mas isso é mais profundo do que parece.
A paixão por Carminha acontece em um momento de afirmação do orgulho periférico nacional. Depois dela, as vilãs ricaças, loiras, empresárias, tiveram menos apelo. Odete Roitman é protagonista de um outro momento do país.
Vale Tudo terminou em 1989, ano em que elegemos Collor, cuja presumível beleza de padrão branco-macho-alfa abalou corações. Avenida Brasil é de 2012, depois de dois governos Lula, de políticas de cotas, de Cidade de Deus e de Sobrevivendo no Inferno, do Racionais MCs.
Carminha é nóis na fita, Odete odeia gírias. O povão ama Carminha, que só é pobre de grana. Odete, milionária, é pobre de espírito. Carminha nos ensinou a sermos mais brasileiros. E a reconhecer a elite que nos odeia, representada por personagens como Odete Roitman.