Funcionamento do Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro é visto como uma “engrenagem seletiva” que determina quem será punido e de que forma, a partir de marcadores de raça, classe e território. Pessoas brancas recebem mais oportunidades e menos punição.
O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) lança o estudo Engrenagem Seletiva: o Tratamento Penal dos Crimes de Drogas no Rio de Janeiro. A conclusão mais significativa é a de que a probabilidade de punição é moldada por marcadores raciais e socioeconômicos, e não apenas por provas ou quantidade de droga.
O relatório analisou 3.392 casos enquadrados nos artigos da Lei de Drogas. As abordagens por tráfico e associação acontecem predominantemente em territórios pobres. No caso do uso de drogas, apesar de serem usadas majoritariamente em áreas ricas da cidade, as pessoas abordadas vêm de lugares de baixa renda.
A pesquisa mostra ainda que, independentemente da abordagem ou do crime imputado, a maioria dos enquadrados tem origem pobre, enquanto moradores de bairros de maior renda estão praticamente ausentes dos registros policiais.
Se for de periferia, a condenação é quase certa
O levantamento mostrou que o fator territorial é determinante nas condenações: 76,5% das sentenças que mencionam explicitamente o local da ocorrência ter sido em favela ou comunidade acabam em condenação do réu. O número aumenta quando se fala de territórios sob domínio de facções criminosas, com 79,3% de condenados.
Segundo a pesquisa, “quando há menção a territórios controlados por grupos armados, a probabilidade de condenação aumenta significativamente. O fato aponta haver no judiciário uma estrutura subjetiva, já fixada e baseada em racismo, de quem são e onde estão as pessoas que devem ser punidas por tráfico e associação”.
Em 19,4% dos casos estudados, há menção explícita ao local da ocorrência, que são as favelas ou comunidades. As menções à periferia aumentam consideravelmente de acordo com o tipo de crime. Em casos de uso de drogas, a menção à favela é rara, apenas 3%; no tráfico, aumenta para 15%; quando há associação para o tráfico, vai para quase a metade: 47,6%.
Pretos são os suspeitos na maioria dos casos
Julita Lemgruber, coordenadora do CESeC, afirma que “ao longo das diferentes etapas de funcionamento do sistema de justiça criminal, no Rio de Janeiro, o acusado se torna cada vez mais negro”, ou seja: negros e pardos são 69% dos réus e quase 80% dos condenados.
O relatório evidencia o punitivismo e a seletividade penal em etapas sucessivas do processo judicial, como no caso da chamada transação penal. Ela é um acordo celebrado entre Ministério Público e o autor de uma infração de menor potencial ofensivo. O mecanismo permite impor uma pena alternativa, como multa ou restrição de direitos, que é ofertada principalmente aos acusados brancos, em 60,8% dos casos.
Para Ignacio Cano, sociólogo e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o estudo evidencia que “há um procedimento, feito do momento da abordagem até a sentença, que pune mais severamente as pessoas negras”. Segundo ele, “quando vemos que ser negro diminui em 43% a possibilidade de oferta de transação penal em comparação com pessoas brancas, é inequívoco afirmar que existe um viés racial contra essa população”.