O que czares e Stálin têm a ver com a paixão pela vodca na Rússia

Desde o século 15, governantes não só toleraram a bebedeira como a incentivaram; hoje, um em cada quatro homens na Rússia morre antes de chegar aos 55 anos por causa de bebida e cigarro.

14 jul 2018 - 16h43
Um em cada quatro homens na Rússia morre antes de chegar aos 55 anos por causa de bebida e cigarro
Um em cada quatro homens na Rússia morre antes de chegar aos 55 anos por causa de bebida e cigarro
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A família retratada no clássico da literatura russa Crime e Castigo, de 1866, era assunto de um outro romance, que o autor Fiódor Dostoiévski acabou não publicando, e que se chamaria Os Bêbados. A professora e pesquisadora russa Elena Vassina conta que, quando os bolcheviques tomaram o Palácio de Inverno, durante a Revolução Russa, em 1917, a primeira coisa que fizeram foi correr para as adegas e beber tudo.

Em 2016, pelo menos 58 pessoas morreram na Rússia depois de beber, como se fosse licor, uma loção para banho que contém metanol ou álcool metílico.

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Não é sem motivo que a primeira coisa que vem na cabeça de muita gente quando se fala em Rússia é bebida, principalmente a vodca.

Nos últimos anos, a situação vem melhorando a ponto de a Organização Mundial da Saúde (OMS) dar destaque ao país em um relatório sobre políticas que deram certo para melhorar a saúde de suas populações. No entanto, russos ainda consomem cerca de 13,9 litros de álcool puro por pessoa por ano, segundo dados de 2016 da OMS, mais que o dobro média mundial, de 6,4 litros. Outros países da antiga União Soviética também estão entre os que mais consomem bebida, como Moldova e Lituânia.

O país também tem uma enorme proporção de mortes atribuídas ao álcool. Um em cada quatro homens morre antes de chegar aos 55 anos por causa de bebida e cigarro, de acordo com uma pesquisa que envolveu, entre outras instituições, a Universidade de Oxford.

Mas, afinal, como a situação chegou a esse ponto?

A explicação passa pela cultura do país, diz a professora Vassina. "Nos cafundós da Rússia, os mujiques (como eram chamados os camponeses russos antes da Revolução de 1917) não tinham o que fazer, principalmente quando começava o inverno. As pessoas faziam aguardente em casa. Veja que em todo o hemisfério Norte bebe-se muito."

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A produção e venda da vodca foi monopólio do governo desde os tempos do czaar Ivan 3º, em 1474, até o fim da União Soviética, em 1991.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Mas Vassina diz, e é consenso entre os pesquisadores do assunto, que os governantes, desde o século 15, não só toleraram a bebedeira como a incentivaram para se financiar.

Em alguns momentos da história, quem estava no poder tentou controlar o consumo de bebida - o czar Nicolau 2º, Lênin e Gorbachev, por exemplo -, mas o problema acabava voltando, seja porque outro líder revertia a política, não resistindo aos lucros da produção e venda de vodca, seja porque a população arrumava outros meios de se manter alcoolizada.

A produção e venda da vodca foi monopólio do governo a partir do século 15 até o fim da União Soviética, em 1991. Depois disso, o poder público continuou lucrando com os impostos.

"O consumo excessivo de álcool era tolerado, ou até encorajado, por causa do potencial de gerar lucros", escreveu o pesquisador Martin McKee na publicação Alcohol & Alcoholism, em 1999.

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Vodca financiou czares

A vodca começou a ser destilada no século 14. Há versões diferentes da história de origem da bebida. Enquanto a Enciclopédia Britânica diz que ela nasceu na Rússia, o livro Sage Encyclopedia of Alcohol diz que não há consenso sobre qual povo iniciou sua produção - se russos, poloneses, ucranianos -, mas afirma que certamente ela começou com o povo eslavo.

O monopólio de produção e venda de vodca pelo governo começou com Ivan 3º, em 1474. Os czares seguintes o renovaram. "Os nobres recebiam o direito de produzir e vender. Quanto mais alto o posto, mais litros podiam produzir." Ela conta que na época de Ivan, o Terrível, foram abertas kabaks, tabernas onde se bebia de tudo, gerando ainda mais recursos para o governo.

"No início do século 18, Pedro, o Grande formou o novo Exército russo. Os soldados ganhavam vodca como parte do pagamento. Assim como ganhavam refeições, ganhavam vodca", diz a professora.

Bebia-se tanto que o czar Nicolau Segundo instituiu restrições sobre a venda de álcool em 1914.

Na era Stalin, as restrições ao consumo do álcool foram suspensas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Vodca no front

Após a Revolução de 1917, Lênin manteve essa espécie de lei seca, mas isso só durou até o governo de Josef Stálin. Segundo o pesquisador americano Mark Lawrence Schrad, que escreve sobre o consumo de álcool, Stálin disse "O que é melhor, capitalismo ou a venda de vodca? Naturalmente optaremos pela vodca."

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Durante a Segunda Guerra Mundial, os soldados ganhavam uma porção diária de vodca, conta Vassina.

Lei seca fracassada

Na década de 1970, os lucros da venda do álcool representavam um terço dos recursos do governo, segundo escreveu o pesquisador Martin McKee.

Durante a perestroika, Mikhail Gorbachev declarou guerra ao álcool e ao cigarro, controlando as vendas. O número de mortes ligadas ao álcool caiu, mas a cultura de bebida se provou resistente.

Durante a perestroika, Mikhail Gorbachev declarou guerra ao álcool e ao cigarro, controlando as vendas.
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Há sinais de que ali tenha se agravado um fenômeno que dura até hoje: o consumo de líquidos que contêm álcool, como perfumes, colônias, loções pós-barba e produtos de limpeza.

Segundo especialistas, cerca de 12 milhões de russos bebem produtos que custam o equivalente a menos de US$ 1 (R$ 3,3) o litro.

A cada ano os russos consomem entre 170 e 250 milhões de litros de loções, segundo o Serviço Federal para a Regulação do Mercado de Álcool.

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Situação melhor no novo milênio

Depois da queda da União Soviética, em 1991, a privatização e desregulação do mercado de bebidas pode ter contribuído para o aumento de doenças ligadas ao álcool, diz a OMS.

No entanto, políticas adotadas a partir de 2005 têm surtido efeito, diz a entidade, tanto para reduzir o consumo de álcool quanto para diminuir o número de mortes ligadas a ele - medidas como aumento do controle das vendas, proibição da venda de bebidas com mais de 15% de álcool em alguns lugares, aumento de impostos, restrição de publicidade, programas de prevenção.

O principal líder russo do período, Vladimir Putin, chegou a comentar o problema em discursos, dizendo que o álcool estava dizimando os homens jovens.

Entre 2007 e 2016, o consumo de álcool diminui. Entre 2005 e 2015, o número de novos casos de psicose alcóolica caiu de 52,3 para 20,5 por 100 mil pessoas. A taxa de mortes por causas ligadas ao álcool também está menor, especialmente entre os homens. O número de mortes de adultos como um todo caiu, o que a OMS atribui à queda no consumo de bebidas.

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Mas a cultura de bebida ainda existe.

"Temos que entender que há várias Rússias. Nas cidades, mais ocidentalizadas, há uma cultura de vida saudável, de fitness, as pessoas preferem ganhar dinheiro a beber vodca. Mas em outras partes do país, onde não tem trabalho e quando tem, paga mal, não há o que fazer, principalmente no inverno, então as pessoas bebem mesmo", diz a professora Elena Vassina.

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