"Cada prego que martelei é uma vitória": casas resilientes livram moradores de enchentes históricas em favela de SP

Projeto no Jardim Lapenna combate os efeitos das enchentes com habitações elevadas e adaptações que garantem dignidade e segurança

9 out 2025 - 04h59
(atualizado às 10h41)

A região da várzea do rio Tietê, em São Paulo, é nacionalmente conhecida pelas enchentes que alagam os bairros Jardim Pantanal, Jardim Romano e Jardim Lapenna. Agora, a construção de 51 casas provisórias por meio de mutirão popular e com apoio de instituições mostra a importância de soluções temporárias e coletivas como parte da resolução de problemas permanentes.

O nome técnico é “casa resiliente”, preparada para enfrentar enchentes, elevada a um metro e meio do chão. Sem frestas, evita a entrada de insetos e outros animais, minimiza os efeitos do calor e do frio extremos, facilita a ventilação e a iluminação natural, e tem o básico em termos de saneamento.

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A casa provisória é parte de uma jornada de transformação de uma moradia precária para uma permanente. É um plano de decolagem, que segue pelos próximos dois anos” – Fabiana Tok, Fundação Tide Setúbal

  • Essa reportagem faz parte da série Quebrada Sustentável, que aborda iniciativas de sustentabilidade dentro de comunidades periféricas no Brasil. O Terra conheceu projetos criados ou desenvolvidos pela própria população em Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo.
Mutirão popular ajuda a erguer casas resilientes para livrar moradores de enchentes históricas em favela de SP
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Para entender a construção das casas no “baixo Lapenna” — região mais pobre e próxima ao córrego Jacuí —, é preciso voltar a 2018, quando a comunidade definiu suas prioridades no Plano de Bairro. Dessa mobilização resultaram a canalização do córrego, a construção de um piscinão, de calçadas e ruas, e, agora, das casas.

“Elas são destinadas a famílias que vivem com menos de R$ 208 mensais por pessoa”, explica Fabiana Tok, 42 anos, coordenadora do programa Cidades e Desenvolvimento Urbano da Fundação Tide Setúbal. “Elaboramos um plano para que cada família possa alcançar, nos próximos dois anos, seus principais sonhos — como, por exemplo, começar a estudar.”

Mutirão de moradores ajuda a erguer casas no Jardim Lapena
Mutirão de moradores ajuda a erguer casas no Jardim Lapena
Foto: Divulgação

Como são as casas

As casas contra enchentes têm entre 18 e 27 metros quadrados e podem ser construídas em formato retangular ou em L. Possuem uma porta e uma janela de metal, pia de cozinha e banheiro separado, com sanitário e chuveiro. São construídas pela Teto, organização que implementa iniciativas de moradia em favelas e atua no Brasil desde 2006.

“A gente entende que todo mundo merece uma moradia definitiva, mas a verdade é que demora décadas. A solução transitória é necessária, pode ser até tabu, mas a questão é como a solução transitória se encaixa em planos definitivos”, diz Camila Jordan, 36 anos, diretora de Relações Institucionais e Incidência da Teto.

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Quando se fala em déficit habitacional, a gente não pensa em pessoas em emergência, completamente marginalizadas, esquecidas, em absoluta precariedade, que a crise climática só vem agravando - Camila Jordan, engenheira ambiental e urbanista

Camila é engenheira ambiental, mestre em Administração Pública e pós-graduanda em Urbanismo Social. Ela afirma que a principal vantagem da “casa resiliente” é estar elevada acima do solo, para evitar enchentes. Camila destaca ainda a “bandeira” — faixa de acrílico na parte superior — que permite ventilação e luminosidade.

As paredes são feitas de painéis de madeira preparados para oferecer conforto térmico, e alguns telhados são feitos de material reciclado. “O banheiro é a grande melhoria: tem chuveiro quente e vaso sanitário. As famílias usavam baldes e tinham vergonha de receber visitas em casa”, descreve Jordan.

A mobilização de Bia pelos mutirões de construção

Conversamos com Fabiana Tok, da Fundação Tide Setúbal, no Galpão ZL. Depois, seguimos caminhando até as casas provisórias. Quem nos acompanha é Viviane Boré de Carvalho. “Todos me chamam de Bia porque meu pai queria que meu nome fosse Beatriz”. Moradora há 47 anos, esteve à frente da articulação comunitária para os mutirões de construção.

“As pessoas moravam diretamente com o pé na várzea – não precisava chover para estar úmido. Era muito precário: muito rato, muita barata, cobra. Agora, com as casas mais altas, com porta e janela que podem fechar, as crianças estão frequentando mais a escola, as mães conseguem sair para procurar trabalho”.

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Segundo levantamento do Instituto Trata Brasil, o Brasil registrou mais de 344 mil internações por doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado em 2024. Quase metade delas foram derivadas de infecções propagadas por insetos-vetores. Outra metade, resultado de transmissão feco-oral.

Moradora do Jardim Lapenna
Foto: Ricardo Rocha / Terra

Moradora perdeu tudo em dez anos de enchentes

A primeira casa que visitamos é a de Marta Goreti Cândida Cavalcanti, de 53 anos. Ela enfrenta enchentes desde Recife, sua cidade natal, e mora há dez anos no Lapenna. “Perdi tudo, todos os anos. A primeira enchente foi de dia — perdi guarda-roupa, cama, coisas das crianças. A segunda foi de madrugada. Não teve misericórdia, não.”

Seu barraco foi substituído por uma casa provisória. “Antes eu não tinha porta, não tinha janela, tinha banheiro, mas a gente usava e ia direto pro rio. Hoje eu me sinto feliz que eu tenho uma casa com água, com luz, encanamento.”

Goreti mostra a parte superior das paredes, onde a faixa de material acrílico transparente contorna toda a casa. “Quando o dia está amanhecendo, a gente sente o brilho do sol. Meu barraco era todo fechado de madeirite. Eu nem conhecia esse acrílico aí.”

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“Aqui não molha, antes molhava”, diz moradora do Lapenna

As 51 casas estão espalhadas por diferentes pontos da comunidade. Caminhamos por becos e vielas, sempre acompanhados da incansável Bia. Passamos por corredores que atravessam salas, banheiros coletivos e caminhos de terra e barro, até chegarmos ao maior conjunto, com 32 construções, que os moradores chamam de “complexo”.

Foram mais de 30 caminhões de entulho para aterrar a fundação das casas. Durante os mutirões, algumas pessoas chegaram a afundar até o pescoço. Adriana Azevedo de Lima, 32 anos, viu tudo isso de perto, ajudando a derrubar seu barraco e a construir o novo lar, onde mora com três filhos.

“Antes molhava, era mais baixo, agora não entra nenhum bicho, é fechadinho. Na outra casa não tinha banheiro. Cada prego que eu martelei é uma vitória minha”, diz Adriana, que vive no Lapenna há 15 anos. Ela enfrentou enchentes com água atingindo “aqui na testa”, mas na última chuva forte, a casa não foi invadida.

Barracões do Jardim Lapenna alagavam por causa das enchentes
Foto: Divulgação

Moradores estavam cansados de promessas no Lapenna

Continuamos caminhando com Bia, uma espécie de “prefeita” do Lapenna. Ela tem um orgulho especial do “complexo”, onde costumava acordar os moradores às sete horas da manhã de sábado para as reuniões de planejamento do mutirão. Não foi fácil mobilizar a comunidade, porque “toda a vida eles participaram de reuniões e nada aconteceu. Eles não acreditavam mais”.

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Capaz de deixar o marido acamado para se dedicar aos projetos sociais, Bia é voluntária. Sua voz rouca e firme, incansável, narra os improvisos na construção das casas. “Não tem acesso para os caminhões. Tivemos que fazer um buraco no muro da divisa da comunidade para passar os painéis das paredes; abrimos de manhã e fechamos rapidinho.”

No caminho de volta ao Galpão ZL, Bia vai sendo cumprimentada, cobrada por mil pendências, responde dúvidas e se dispõe a intervir em intrincadas tretas. Estamos indo ao encontro de Daiane Conceição da Silva, 34 anos, liderança negra que passou metade da vida no Lapenna.

Daiane atua em projetos sociais, ajudou a mobilizar os moradores para a construção das casas provisórias e participou da seleção das famílias mais vulneráveis, vítimas da enchente. Explica que virão dois anos de trabalho com a Gerando Falcões, fundação de desenvolvimento social que atua em favelas e periferias, para atender às necessidades dessas famílias — o próximo passo do Plano de Bairro, iniciado em 2018, conforme narramos no início desta reportagem.

Daiane tem incontáveis lembranças da mobilização e construção das casas, mas o dia da entrega foi emblemático, pois choveu. Ela guarda na memória a imagem ideal para encerrar esta reportagem: “As pessoas falaram: ‘Agora eu posso dormir, posso deitar, posso ficar tranquila. A chuva pode vir, que minha casa está aqui, firme e forte.’ E pisaram, pularam dentro da casa, e a casa não caiu.”

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Moradoras do Jardim Lapenna
Foto: Ricardo Rocha / Terra
Fonte: Visão do Corre
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