De segunda a sexta, Geilson Silva do Monte, de 40 anos, se levanta às 4h para começar mais um dia de trabalho. Ele é responsável pelo transporte escolar na zona rural de Porto Walter, no interior do Acre. Faça chuva ou faça sol, sua pequena canoa é a única opção para as 15 crianças que moram às margens do
Um trajeto que, a depender da época do ano, chega a durar até 3 horas. Tudo depende do nível da água. Quando o rio está cheio, a catraia navega sem grandes dificuldades. Mas, em épocas de seca --que têm sido cada vez mais frequentes e intensas--, a rotina do barqueiro se torna um desafio.
- Esta reportagem faz parte da série Vozes da Amazônia, que retrata a realidade de comunidades brasileiras (seringueiros e indígenas) que vivem e dependem dos recursos naturais da maior floresta tropical do mundo.
"É muito difícil arrastar uma canoa com quase 20 crianças sozinho. É um sofrimento no verão, porque a maioria dos alunos são pequenos. Eles não podem sair de dentro da canoa, porque senão ficam molhados. Eu trabalho há 10 anos nessa função, mas de uns quatro anos pra cá tem piorado", relata Geilson, que não esconde a preocupação com os impactos das mudanças climáticas na região. Medo que está estampado no olhar e também nas palavras do barqueiro.
Nascido e criado na Comunidade Iracema, ele diz sentir na pele esses efeitos. "No verão, a gente rala muito, porque o rio está cada vez mais seco. Muitas coisas influenciam, né? Tem muito desmatamento. Esse ano, por exemplo, tive muita dificuldade durante o verão. Não é fácil, mas eu tenho compromisso com meu trabalho e com as crianças", diz ele, que demonstra bastante orgulho em sua profissão.
Na Amazônia, as estações do ano se dividem em verão, entre os meses de junho e novembro, e inverno, que vai de dezembro a maio. Na primeira, as chuvas são mais escassas e há maior intensidade de calor, enquanto a segunda é caracterizada por fortes chuvas e aumento do nível dos rios.
Há dias em que a situação é tão complicada que, segundo Geilson, é preciso retirar aluno por aluno da embarcação para que a canoa possa atravessar o rio raso sem muito peso. Em seguida, é necessário colocar os alunos menores dentro do barco novamente, para que todos possam navegar em direção à escola para cumprir o horário de entrada às 7h. Às 11h15, a saga inicia novamente, já que o barqueiro retorna com as crianças para suas respectivas casas.
"Com o rio cheio, a gente não tem tantas dificuldades para fazer o transporte. No inverno, eu até consigo sair um pouco mais tarde de casa, por volta das 5h30, porque o trajeto não demora tanto. Da minha casa até a escola é só atravessar o rio, então consigo voltar em casa e retornar para a escola", explica.
Além de trabalhar com transporte escolar, Geilson é agricultor. Entre os alimentos que ele planta estão banana, mandioca, milho, arroz e melancia. A agricultura de subsistência dos ribeirinhos também tem sofrido com o período de verão ainda mais seco do que o normal, fato este ocasionado pelas mudanças climáticas.
"Não dá pra sustentar uma família com o salário de catraieiro, então a gente faz plantação. Mas está difícil, o período do verão é tão seco que a maioria das plantas morrem. A terra está quente demais e as árvores não estão produzindo tanto. Eu planto manga, mas tem época que dá, outras que não dá" -- Geilson Silva do Monte
Em julho deste ano, o Rio Juruá atingiu um dos seus piores índices e ficou abaixo dos cinco metros. O baixo nível prejudicou a navegação de moradores do interior do Acre, especialmente nos arredores do município de Porto Walter, onde mora Geilson.
De acordo com o Corpo de Bombeiros, o Rio Juruá chegou a marcar 4,04 metros, cota 73 centímetros menor do que a atingida na mesma época no ano passado, quando o nível estava em 4,77 metros. Em agosto, o governo do Acre sancionou um decreto que colocou o Estado em situação de emergência por causa da seca extrema nos rios que cortam a região. O Rio Acre atingiu sua segunda pior cota histórica no mesmo mês, com 1,34 metro, atrás somente da cota de setembro de 2024, que foi de 1,23 metro.
Cerca de 12 famílias moram na região. O espírito de comunidade é o que mantém os alimentos rodando entre as casas da Comunidade Iracema, já que cada morador ajuda o outro a plantar e a colher, quando necessário. Geilson mora com a esposa e dois filhos, um de 10 anos e outro de 5. A educação dos meninos é prioridade para o barqueiro, enquanto a esposa fica responsável por cuidar da casa. A roça fica por conta do agricultor.
"É só eu mesmo. À tarde, os meninos fazem a tarefa escolar e minha mulher toma conta da casa. Depois que eu entendi o quanto é difícil uma pessoa tomar conta da casa e dos filhos, eu nunca mais deixei minha mulher pisar na roça. Nós temos uma parceria boa, porque além de eu catraiar os alunos, ainda tenho que pegar merenda e gasolina para a escola”, afirma.
Como o acreano conta, o serviço de pegar o alimento escolar e a gasolina leva cerca de um dia e é feito uma vez por mês. É preciso pegar os recursos no município de Porto Walter, que é o mais próximo da Comunidade Iracema, e distribuir em três escolas da zona rural. O deslocamento também é prejudicado pelos baixos níveis do Rio Juruá.
"Quando o rio está raso, preciso tirar os alimentos do barco para conseguir atravessar. Guardo em cima de um pedaço de madeira, volto para puxar a canoa e embarco os alimentos de novo”, conta.
A cheia do rio costumava levar as águas para perto da casa de Geilson. Este ano, o fenômeno que ocorria desde que ele era criança, foi diferente. O barqueiro sabe que o clima está mudando — e que as intervenções do homem na floresta estão interferindo cada vez mais no dia a dia dos ribeirinhos.
"A minha vida sempre foi de muita luta. Comecei a trabalhar com 8 anos. Era meio seco, mas não como agora. Hoje, a gente tem muito mais dificuldade, cada vez mais desmatam, criam boi, a cada ano que passa a seca tá maior. Esses dias, estava com vontade de chorar, porque não sabia como ia fazer pra levar a merenda para a escola" -- Geilson
Da pesca ao turismo fluvial
Mas a seca não afeta apenas o Acre. Há mais de 4.057 km de onde vive Geilson está José Edevaldo da Silva Pires, de 37 anos. Filho e neto de pescadores, ele cresceu na Vila do Pesqueiro, localizada na Reserva Extrativista Marinha de Soure, no Pará, e até tentou seguir os caminhos do pai e do avô, mas precisou recalcular a rota, já que as mudanças climáticas tornaram a profissão insuficiente para o sustento da família.
"No inverno, o que predomina é a água do Rio Amazonas, e no verão, o que predomina é a água do oceano. Isso sempre ocorreu, mas a gente nota que de um tempo pra cá vem acontecendo uma certa diferença. A quantidade de peixe que a gente capturava antes, a gente não captura mais. A gente costumava pegar entre 100 kg e 150 kg de peixes, principalmente nos meses de maio e junho", explica.
O Pará também sofreu uma estiagem moderada entre os meses de junho e julho deste ano. Segundo o Monitor de Secas, da Agência Nacional de Águas (ANA), apesar das cheias que atingem o Norte do país durante o período do inverno amazônico, a seca persiste em mais de 22% do território nacional que pertence à bacia hidrográfica amazônica o que, consequentemente, atinge o nível dos rios.
José Edevaldo recorda ter começado a pescar ainda na infância com o pai e guarda com bastante carinho lembranças do momento. "Ele não tinha condições de dar coisas pra gente, então eu sempre ia pescar com ele. Acordava às 3h da madrugada e ia pescar. A minha infância não foi fácil, mas foi muito proveitosa comparada a das crianças de hoje em dia. Serviu de aprendizado pra mim e, hoje, eu valorizo muito isso."
Mas, muita coisa mudou de lá para cá. E, diante da instabilidade dos rios --cada vez mais frequentes--, não foi possível viver única e exclusivamente da pesca. Em busca de sua independência financeira, sem precisar deixar o local onde cresceu, o ribeirinho optou em unir a pescaria com o turismo fluvial. Mas, para conseguir juntar dinheiro e adquirir sua primeira embarcação em 2015, José precisou trabalhar um bom tempo como garçom.
A convite de um amigo, pioneiro nos passeios da região da Reserva Extrativista Marinha do Soure, José Edevaldo resolveu fazer cursos de capacitação na área. Agora, o ribeirinho passou a oferecer passeios turísticos para quem deseja visitar a região, integrada à Ilha do Marajó.
De olho na COP30, que ocorre entre os dias 10 e 21 de novembro, em Belém (PA), o pescador vislumbra um aumento nas demandas. "A gente está com a expectativa lá em cima, tanto é que eu acabei construindo uma canoa com uma capacidade maior. Estou procurando me capacitar ainda mais pra estar recebendo ainda melhor nossos visitantes. Já fiz o básico de inglês também", diz.
Os passeios são, comumente, feitos com base na maré. Se a maré estiver alta, é possível trabalhar, do contrário, não há como ter acesso às comunidades mais longínquas. Com as mudanças climáticas dos últimos anos, os moradores da região têm percebido que tanto o verão quanto o inverno amazônico estão diferentes, o que requer um cuidado redobrado com a preservação ambiental
Orgulhoso, ele conta que aprendeu desde cedo a conviver em harmonia com a natureza, fato este repassado de geração em geração.
“Minha relação com a natureza é a melhor possível. Contribui bastante pro meu bem-estar e da minha família, até porque, se a gente for extrair alguma coisa da natureza, a gente extrai tudo de forma sustentável. A gente não vai retirar tudo até para acabar. Tanto é que nós temos nossas defesas, por exemplo, com o nosso peixe de água doce, que é pra ter esse controle, não retirar demasiadamente, sempre preservar”, conclui.
* Essa reportagem foi produzida como parte da Climate Change Media Partnership 2025, uma bolsa de jornalismo organizada pela Earth Journalism Network, da Internews, e pelo Stanley Center for Peace and Security.