"Não queremos só sobreviver, queremos viver": extrativistas relatam dificuldades enfrentadas em reservas da Amazônia
A cerca de um mês da COP30, em Belém (PA), extrativistas lidam com mudanças climáticas em "comunidades esquecidas" pela sociedade civil
Foi aos 6 anos que a jovem extrativista Kailane Silva, de 20 anos, convenceu os avós a levá-la pela primeira vez para a mata e acompanhar de perto o processo da extração do látex direto das seringueiras, típicas da bacia hidrográfica da Amazônia. O que aquela garotinha curiosa não sabia era que acabaria seguindo os passos da família e, aos 14 anos, iniciaria sua jornada como seringueira, guiada principalmente pelos pais e pelo irmão. Um dos meios de subsistência mais comuns na comunidade São João do Iracema, localizada na Reserva Chico Mendes, em Xapuri, no sudoeste do Acre.
- Esta reportagem faz parte da série Vozes da Amazônia, que retrata a realidade de comunidades brasileiras (seringueiros e indígenas) que vivem e dependem dos recursos naturais da maior floresta tropical do mundo.
"Quando eu era muito pequena, eu sempre ouvia falar sobre cortar seringa. E quando via na madeira os risquinhos, ficava com aquela curiosidade. Pedi pra ver como era”, recorda ela, que não esconde no olhar o orgulho na profissão. Mas, como acrescenta, a trajetória não foi tão simples. "Quando eu ainda estudava, às vezes, saía para cortar seringa com meu pai de madrugada. E de lá mesmo já ia pra escola. Aprendi a cortar seringa com meu pai e meu irmão", diz.
Mesmo em meio às dificuldades ocasionadas pela falta de logística de transporte e acesso à Resex, Kailane conseguiu concluir o Ensino Médio em uma escola que ficava a 6 km de distância de sua residência. Com o passar dos anos, a jovem extrativista viu seus colegas de turma sumirem em meio aos desafios para chegar ao local. "Continuei estudando. Às vezes, ficava sozinha na sala de aula. Lembro que no Ensino Médio a turma começou com dez alunos, mas a maioria desistiu. Só restaram eu e outro colega no fim", relata.
Após concluir o Ensino Médio, Kailane ingressou em um curso de Administração à distância. Como ela não pensa em deixar o local onde nasceu, essa foi a melhor opção encontrada para que continuasse os estudos. Na comunidade em que ela vive, além da seringa, há também o extrativismo de castanha e o trabalho no roçado, que envolve plantar arroz, feijão e mandioca.
Aos poucos, Kailane passou a integrar movimentos de ativismo ambiental promovido por jovens de diferentes comunidades do interior do Acre. Em 2025, ela assumiu a presidência do Coletivo Varadouro, formado por um grupo de seringueiros que busca levar pautas das comunidades extrativistas ao debate nacional e internacional que envolve a preservação do meio ambiente.
"Existem muitas lideranças da terceira idade que conseguiram muitos recursos e muitos benefícios, mas é preciso ter a juventude à frente para dar continuidade ao trabalho. O coletivo foi criado em 2021, justamente para incentivar a juventude. Hoje, temos mais de 30 jovens que vivem nas reservas no coletivo. Conseguimos recursos para dois cursos e estamos conseguindo uma consultoria para melhorar a atuação de cada pessoa do coletivo. Buscamos parceiros para nos ajudar”, ressalta.
Kailane reforça que é preciso ter um olhar atento aos povos da floresta, para que possam viver com dignidade enquanto cuidam do meio ambiente, especialmente àqueles que moram na Reserva Chico Mendes e precisam do extrativismo para sobreviver.
“A gente sabe o quanto é importante ter a floresta em pé, mas é igualmente importante ter pessoas dentro das florestas vivendo de forma digna” -- Kailane Silva
Jovem do futuro
Pouco antes de morrer, o líder seringueiro Chico Mendes (1944-1988) deixou um recado para os jovens do futuro. Em uma carta escrita no dia 6 de setembro de 1988, três meses antes do seu assassinato, o ativista ambiental nascido em Xapuri (AC) idealizou a unificação de todos os povos paralelamente a uma revolução que colocaria fim à destruição da floresta. "Aqui ficam somente a lembrança de um triste passado de dor, sofrimento e morte. Desculpem. Eu estava sonhando quando escrevi estes acontecimentos que eu mesmo não verei. Mas tenho o prazer de ter sonhado", diz um trecho.
A luta do ambientalista foi repassada de geração em geração e deu origem à Reserva Extrativista Chico Mendes, local em que Kailane cresceu com a família. A unidade de conservação foi criada em 1990 com o objetivo de preservar o modo de vida dos povos das florestas e a natureza no entorno.
Todo processo de retirada do látex é feito com muito cuidado por parte dos extrativistas. Uma mesma árvore tem limites de cortes e é comum que os trabalhadores se dividam em diversas estradas de seringa para não correr o risco de maltratar a Hevea brasiliensis, nome científico da seringueira.
Por “risquinhos”, ela se refere aos cortes feitos nas seringueiras para colher o látex. O processo foi aperfeiçoado ao longo do tempo, mas consistia em riscar a árvore, extrair o látex líquido e armazená-lo em baldes. Em poucos minutos, o líquido se transformava em borracha.
"Usamos uma lanterna na cabeça, porque quando a gente sai ainda está de noite. Meu pai e minha mãe vão por um lado da estrada, e eu e meu irmão vamos por outro. Quando nos encontramos no meio, por volta de 7 horas da manhã, voltamos pra casa".
Na prática, o extrativismo é justamente isso: a sabedoria em retirar da floresta sem agredir o meio ambiente ou prejudicar um determinado ecossistema. Não se corta seringa o ano inteiro. Geralmente, no mês de abril, é quando se inicia o processo de roçar a estrada, ou seja, de retirar o "mato" do caminho para que se possa chegar até às seringueiras. No mês de maio, a família de Kailane acorda entre 3h e 4h da manhã para trabalhar. Cada estrada tem em média entre 150 a 200 árvores.
'Somos excluídos toda hora'
Com a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP30) em Belém (PA) se aproximando, a jovem extrativista tem participado de diversos debates ligados ao encontro. Em junho deste ano, ela participou da etapa preparatória da ONU para a conferência, a SB62, em Bonn, na Alemanha.
"Fizemos várias dinâmicas e simulações do que acontece na COP, foi tudo novo, nunca tinha tido contato. Teve toda uma preparação, tive que estudar inglês e preparar meus documentos junto ao comitê. Fomos representando as comunidades tradicionais, mas, quando cheguei, fiquei meio perdida. Em Bonn, a gente alinhou muitas coisas e aproveitou para nos conectar melhor com outras pessoas de diferentes partes do Brasil", afirma.
Para o encontro em Belém, o grupo de jovens extrativistas planeja levar os problemas e as dificuldades enfrentadas pelo moradores da Reserva Chico Mendes, principalmente no que se refere à falta de incentivos fiscais e de políticas públicas direcionadas à comunidade.
"Queremos que as pessoas nos ouçam, por mais que isso seja algo complicado em um espaço desses. A gente se sente excluído toda hora, a gente não se sente muito ouvido", pontua a jovem, que destaca a importância de uma boa articulação, de bons contatos e de boas estratégias. "Um dos grandes problemas que a gente enfrenta é o esquecimento e a falta de políticas públicas, a falta de recursos."
"Muito se fala que o problema do Brasil são as derrubadas e as queimadas, mas as pessoas dentro do território precisam viver" -- Kailane Silva
De acordo com a jovem, muitas pessoas acabam optando pela pecuária por não terem como sobreviver completamente do extrativismo, tendo em vista que poucas intervenções são feitas na floresta. Ela relata que os moradores da Resex não se sentem escutados pelo governo e pela sociedade civil.
"Não é só sobreviver, é viver. A gente está em um lugar onde você olha pro lado e vê mata em pé, mas anda pouco quilômetros e você chega em uma colocação onde não tem mais árvore, só pasto. E aí a gente vê o quanto a gente é esquecido, porque se não tem como sobreviver, a única forma de ganhar vida é a pecuária. A gente se sente obrigado a desmatar pra criar gado, porque não compensa produzir outras coisas se você não tem quem compre seu produto. Além disso, não tem quem compre o seu produto por um valor digno”, declara.
Como funciona o extrativismo na Amazônia
Em uma parte no mais extremo norte do Brasil, vive Joaquim Correia de Souza Belo, de 61 anos, ex-seringueiro. Ele mora no assentamento extrativista no município de Magazão, no Amapá, e foi escolhido como enviado especial da COP30 pelo governo federal. Os enviados especiais da Conferência atuarão voluntariamente e, em caráter pessoal, como interlocutores das áreas que representam. Ao todo, são 7 enviados internacionais e 22 enviados nacionais.
Em entrevista ao Terra, o líder extrativista, que tem uma longa trajetória na defesa das comunidades tradicionais da Amazônia, conta que sua principal atividade é o manejo do açaí.
“Todos que nascemos e vivemos nos territórios extrativistas somos extrativistas. A gente vem dessas atividades de longa data. A atividade de seringa veio do meu pai. Ele fazia toda a parte do corte, para não ferir a lenha da seringueira, e os filhos colhiam o látex”, diz.
Além de atuar como extrativista, Joaquim é secretário de Formação e Comunicação do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), onde já foi presidente por três mandatos.
“Eu atuo nessas últimas três décadas nesse movimento, mas estou construindo um projeto de uma escola comunitária que está com um currículo específico, focado em uma formação mais humana, envolvendo economias de base comunitária e bioeconomia. [Isso porque] a educação brasileira ainda trabalha justamente para tirar os jovens da comunidade”.
Joaquim nasceu e se criou na mesma comunidade em que mora até hoje. “A gente trabalha com produto nativo. O máximo que se faz é manejar a espécie, mas a gente precisa manter, com muita clareza e segurança, todas as espécies que compõem esse espaço. Por isso eu trabalho com manejo do açaí nativo”, explica.
De acordo com o extrativista, o manejo consiste em fazer pequenas intervenções na floresta, para “clarear” um pouco a área e o açái receba mais luz. Dessa forma, a produção aumenta sem alterações significativas na floresta.
“Com isso, temos a coleta, depois a comercialização até chegar o produto no mercado. Você tem um conjunto de frutos que fazem parte tanto da alimentação quanto da venda. Temos o taperebá, o ingá, a bacaba. Então, foi com um conjunto de frutos de floresta que você vai usando como alimento e vai tirando suas polpas e colocando no mercado. E aí tem o peixe, que a gente pesca o tempo todo para comer; tem muita gente que pesca para vender, assim como camarão. Só pesco camarão e peixe para comer”, afirma.
O trabalho na comunidade é feito pelos núcleos familiares. O espaço onde ele vive com a família virou um assentamento nos últimos 15 anos. “Nasci em um contexto de 12 irmãos, com pais muito rigorosos na disciplina dos filhos. Com uma família grande, você aprende a viver em comunidade desde cedo. Aqui, a gente trabalha ajudando um ao outro nas coletas e todo mundo vai usufruindo da riqueza, porque todo mundo vai se ajudando”, declara.
A vivência coletiva que nasceu com a família, hoje, se estende entre os vizinhos do assentamento. A consciência ambiental também veio com a necessidade de proteger a floresta da onde se extrai a subsistência da comunidade.
“Eu nasci nesse universo, nessa vivência coletiva o tempo todo. E essa vivência coletiva social também tem uma convivência ambiental, porque a gente vai convivendo com os rios, com a floresta e com a natureza, e a gente vai aprendendo a lidar com ela. Na verdade, ela é uma grande escola, ela é a grande matriz do conhecimento; ela vem da natureza para o conhecimento natural, muita coisa para sobrevivência, para cura, para muita coisa”, relata.
Não há um número exato de quantos extrativistas existem no Brasil. Mas, segundo o Censo de 2022, existem 11,8 milhões de pessoas que assim como Joaquim e Kailane vivem em unidades de conservação, onde a prática do extrativismo é comum. E, de acordo com um levantamento do Instituto de Estudos Amazônicos (IEA), em 2020, havia 134 unidades de conservação protegendo 37,6 milhões de hectares no País.
Intervenções humanas mudam a lógica da natureza'
Mas, como pontua Joaquim, as mudanças climáticas atreladas às intervenções culturais do “mundo externo” são sentidas por todos da comunidade. “Isso muda o comportamento da comunidade. A gente já está sentindo um impacto forte na produção, nas nossas espécies frutiferas, na questão da água também, a gente já percebe que as águas não são mais as mesmas. Os rios estão secando e o impacto humano vem mudando a qualidade da água para consumo que a gente tem. Essas intervenções humanas mudam toda a lógica de como a gente se relaciona com a natureza”.
O que antes era um igarapé com peixes em abundância para a comunidade, hoje se tornou um fluxo de água baixo durante o verão amazônico. Com a água baixa, não há oxigênio suficiente para esses animais, o que acaba ocasionando a morte dos peixes.
“Quem trabalha com roça não cultiva mais uma boa roça com mandioca, porque a seca severa você começa a entrar nesse mundo da adaptação, buscando trabalhar com as espécies que são mais resistentes. Além disso, acontece sempre de o igarapé ficar quente. Se você não estiver atento, estraga muito peixe. Mas é isso mesmo, a gente já vive essa realidade, e isso é fato. E muitas Amazônias aqui, são muitas Amazônias, então a gente já vive isso mesmo”.
O assentamento tem 350 famílias. Cada núcleo familiar contribui com os trabalhos coletivos da comunidade. Em períodos em que a seca é mais severa, os alimentos são compartilhados entre os núcleos, para que ninguém passe fome.
"A Amazônia é sempre ligada a um modelo de economia que é a economia da destruição. O aquecimento global, por exemplo, tem muita gente responsável por isso que nunca assume. E para enfrentar isso tem que ser coletivamente. A gente sempre encontra dificuldade de buscar o consenso porque teve uma ruptura muito forte do rural com o urbano" -- Joaquim Correia de Souza Belo
Em relação à COP30, o líder ressalta que procura não ser cético em relação a mudanças que possam vir após a conferência, e que está esperançoso com o encontro. “Sou um cara que acredito que a gente tem condições de mudar muita coisa, mas sempre é muito difícil. Mas eu estou na esperança de que não é impossível, de que ciom tudo que a gente está vivendo, estou esperançoso de que possamos dar esse espaço nesse sentido, de que saímos dessa encruzilhada”, afirma.
Joaquim enfatiza que espera que o encontro em Belém seja inclusivo e destinado aos movimentos sociais e ambientais com foco na preservação da floresta. “Eu sou da esperança. Espero que seja uma COP de inclusão social, porque a COP sempre foi espaço reservado para a elite, para os responsáveis por todos os danos que temos. Saímos de três COPs onde tudo era segregado, não podia fazer nada. Então, a COP30 no Brasil tem uma sede de extravasar as energias dos nossos movimentos sociais, do Brasil e de fora. E nessa expectativa, nós temos essa COP como a COP do movimento social e da inclusão social”, conclui.
* Essa reportagem foi produzida como parte da Climate Change Media Partnership 2025, uma bolsa de jornalismo organizada pela Earth Journalism Network, da Internews, e pelo Stanley Center for Peace and Security.
