Líder dos EUA já disse que democrática Europa é "fraca" e que sente mais à vontade com os "durões" que comandam Oriente Médio. Para observadores, afinidade se explica pela admiração do poder absoluto desses governantesÉ difícil ouvir o presidente americano, Donald Trump, criticando os "homens fortes" e autoritários do Oriente Médio.
Ele já chamou o líder saudita, Mohammed bin Salman, de "fantástico" e "brilhante", e disse que "o que ele fez é incrível em termos de direitos humanos e tudo mais".
Somente neste ano, a Arábia Saudita executou mais de 240 pessoas, muitas delas sem o devido processo legal, segundo organizações de direitos humanos.
Já a relação de Trump com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, cujo governo há anos assume ares mais autocráticos, foi descrita como "bromance" pelo atual embaixador dos EUA em Ancara.
"Ele é duro de roer, mas é meu amigo", disse Trump, entusiasmado, durante uma reunião em outubro com Erdogan. O presidente turco vem ganhando as manchetes internacionais por prender políticos da oposição.
"Não sei por que, mas gosto mais dos durões que dos mais suaves e fáceis de lidar", confidenciou Trump, na mesma reunião.
Uma nova atitude
Governos anteriores dos EUA tendiam a condicionar acordos militares e ajuda ao Oriente Médio ao respeito pelos direitos humanos e às políticas democráticas - ou, pelo menos, fingiam defender esses ideais.
Mas, de acordo com a nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA, divulgada neste mês, isso mudou. O documento é atualizado periodicamente dependendo da gestão e descreve as mudanças nas prioridades.
A versão de 2022, elaborada pelo ex-presidente Joe Biden, afirmava que, no Oriente Médio, os Estados Unidos visavam "apoiar e reforçar parcerias com países que pactuam com as regras da ordem internacional" e que o país queria "exigir responsabilidade por violações de direitos humanos".
Já a nova versão, da gestão Trump, publicada no início de dezembro, não menciona direitos humanos e cita as "regras da ordem internacional" apenas uma vez. Sobre o Oriente Médio, o documento apenas indica que os EUA precisam parar de "pressionar essas nações, particularmente as monarquias do Golfo, a abandonar suas tradições e formas históricas de governo".
Nesse mesmo documento, as "formas de governo" europeias não recebem o mesmo tratamento. O governo Trump pode ter externado a intenção de parar de "intimidar" o Oriente Médio, mas, para a Europa, aparentemente, planeja fazer o que o think tank Conselho Europeu das Relações Exteriores descreveu na semana passada como uma "guerra cultural", por exemplo, apoiando partidos políticos de ultradireita e contrários à União Europeia (UE).
Por que Trump prefere os líderes árabes aos europeus?
Para Kristian Coates Ulrichsen, pesquisador do Instituto Baker de Políticas Públicas da Universidade de Rice, nos EUA, e especialista em Oriente Médio, o estilo próprio de tomada de decisões de Trump e seus instintos autoritários fazem que ele surja como "um 'homem forte' muito mais naturalmente que os líderes convencionais eleitos democraticamente".
"A afinidade de Trump com os líderes do Oriente Médio, especialmente do Golfo, pode ter origem em certas semelhanças no jeito que eles fazem política, assim como na base transacional das relações que eles constroem", diz Ulrichsen à DW. "Os líderes do Golfo também têm a vantagem de não pertencerem ao campo dos aliados ou adversários tradicionais dos EUA, ocupando um 'espaço seguro' como parceiros, embora próximos."
De acordo com um texto divulgado por Andreas Krieg, professor sênior da Escola de Estudos em Segurança na King's College de Londres, a maneira com que Trump desenvolve relações encontra um "habitat natural" no Golfo. "A premissa é simples: você recebe pelo que você paga. Não há a pretensão de compartilhar um destino, valores ou ideias. É exatamente assim que as monarquias tribais do Golfo administram suas relações", escreveu Kreg, logo após a visita do presidente dos EUA ao Golfo, em maio deste ano.
Como foi amplamente divulgado, o Catar presentou Trump com uma aeronave de 400 milhões de dólares (cerca de 2,2 bilhões de reais). Já os Emirados Árabes e a Arábia Saudita fizeram promessas extravagantes de investimentos bilionários na economia americana.
Trump parece gostar de se considerar um 'rei'
É possível que Trump também veja com bons olhos a falta de controles políticos dos governantes autoritários do Oriente Médio, acrescenta Coates Ulrichsen, algo que "o próprio Trump tem procurado alcançar, especialmente neste segundo mandato".
A Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Catar são governados por famílias reais que formulam suas próprias leis, não toleram dissidentes políticos e, por não serem democracias, não dependem da aprovação dos cidadãos para se manterem no poder.
Em fevereiro de 2025, Trump se referiu a si mesmo como um membro da realeza. No fim de uma postagem na rede Truth Social, na qual comentava sobre como Nova York havia acabado com o pedágio urbano, algo que ele defendia, o presidente escreveu: "VIVA O REI!". A conta oficial da Casa Branca no Instagram compartilhou a frase, ilustrando-a com um desenho feito por inteligência artificial mostrando Trump vestindo uma coroa.
A 'nova realeza'
A afinidade de Trump pelos "homens fortes" do Oriente Médio pode fazer parte de um sistema em ascensão, chamado de "nova realeza". É o que indica um artigo científico, de autoria dos pesquisadores Stacie Goddard, da Wellesley College de Massaschussetts, e Abraham Newman, da Universidade Georgetown de Washington, recém-publicado na revista "International Organization".
Os acadêmicos definem o termo "nova realeza" como um "sistema internacional formado por pequeno grupo de hiperelites que usa as interdependências militares e econômicas para extrair recursos materiais e status para si mesmos".
"A visão de Trump de soberania absoluta, sua confiança em um grupo composto por membros da família, aliados intransigentes e hipercapitalistas de elite orienta não apenas a política externa dos EUA, mas também sua ordem nas relações internacionais", escrevem eles. "Em consonância com a nova realeza, Trump vê certos governantes como detentores de algo semelhante à soberania monárquica e priorizou as relações com [eles]."
É claro sistemas baseados na realeza não são novidade, destacam Newman e Goddard. Eles perduram há séculos, e as monarquias do Golfo têm coexistido com nações democráticas por décadas.
Mas o que está acontecendo agora é "uma transformação do sistema internacional que ocorre uma vez a cada geração", argumenta Newman.
O artigo lembra que outros países também têm caminhado em direção a um tipo de sistema dominado por elites, incluindo Turquia, Índia, Hungria, China e Rússia. Agora que os EUA, com seu poderio econômico e militar, também estão seguindo essa direção, a ideia está se espalhando, já que outros líderes mundiais, incluindo os europeus, são forçados a jogar o mesmo jogo, afirma a publicação.
"Deixamos muito claro nesse texto que essa ordem (neorreal) ainda não está consolidada", afirma Newman à DW. Para que isso aconteça, é preciso que a ordem liberal atual, baseada em regras, seja minada, explica o pesquisador. É em parte por causa disso que a UE, vista como uma das principais representantes dessa ordem, está sob ataque, acrescenta. E, segundo Newman, também é um dos motivos pelos quais Trump vem se aproximando das monarquias do Golfo.
"Nesse sistema (da nova realeza), você é legitimado por meio do excepcionalismo", afirma o cientista político. "É por isso que você é o governante absoluto. Então, de quem você quer a aprovação?", ele pergunta. Dos outros "governantes absolutos", obviamente. "E o Oriente Médio é um terreno fértil para isso", observa Newman.
"O importante, se você pretende promover essa alternativa (da nova realeza), é normalizar o comportamento, legitimá-lo", afirma Newman. "Esses atores, como Erdogan, a Casa de Saud, os Emirados Árabes Unidos ou o Catar, podem proporcionar essa legitimidade. Eles oferecem a Trump uma maneira de dizer 'isso é normal, o que estou fazendo é normal'", finaliza o pesquisador.