O que aconteceu em Gaza desde o cessar-fogo com Israel? O conflito terminou?

Mais de 350 palestinos morreram desde 10 de outubro em Gaza, onde, seis semanas após o início do cessar-fogo, a situação continua desesperadora para a grande maioria dos habitantes.

5 dez 2025 - 18h16
Meninas aguardando para receber alimentos em 27 de novembro em um ponto de distribuição em Gaza
Meninas aguardando para receber alimentos em 27 de novembro em um ponto de distribuição em Gaza
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Israel e o Hamas assinaram um acordo de cessar-fogo em 10 de outubro, com o objetivo de pôr fim a dois anos de conflito que arrasaram a Faixa de Gaza.

Seis semanas após o início do cessar-fogo, continua havendo derramamento de sangue em Gaza, onde civis palestinos ainda são mortos diariamente por disparos e ataques israelenses.

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A intensidade do conflito diminuiu, mas isso não impediu que o número de vítimas palestinas continuasse subindo, embora mais lentamente.

A ajuda humanitária, após meses de um bloqueio rigoroso, está novamente chegando à Faixa, mas não em quantidades suficientes para atender às necessidades de uma população que permanece, em sua maioria, deslocada e em um território praticamente sem infraestrutura.

O cessar-fogo permitiu que a ONU começasse a reabrir as escolas que funcionavam na Faixa, a maioria das quais foi danificada por bombardeios e continua servindo de abrigo para muitas famílias.

O sistema de saúde também permanece extremamente precário. Trinta e seis hospitais de Gaza estão funcionando parcialmente, segundo as Nações Unidas.

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O Hamas, embora significativamente enfraquecido, está se recusando a se desarmar, como ficou demonstrado no dia seguinte ao início do cessar-fogo, quando mobilizou 7 mil militantes armados para as ruas a fim de reafirmar o controle sobre áreas de Gaza desocupadas pelas tropas israelenses. No entanto, sua hegemonia está sendo desafiada por um número considerável de grupos armados que proliferaram na Faixa, prontos para confrontá-lo.

Em meio a tudo isso, os palestinos aguardam o progresso do plano de paz proposto pelo presidente dos EUA, Donald Trump, para que a reconstrução do território ainda amplamente controlado pelo exército israelense possa começar.

As chuvas torrenciais das últimas semanas e a chegada do frio complicaram ainda mais a vida dos palestinos em Gaza
Foto: Abdalhkem Abu Riash/Anadolu via Getty Images / BBC News Brasil

Mais de 350 mortos em ataques israelenses

Mais de 350 pessoas morreram em Gaza em ataques israelenses desde o começo do cessar-fogo, elevando o número total de vítimas palestinas desde o início do conflito, em 7 de outubro de 2023, para 70.100, muitas delas mulheres e crianças, segundo dados do Ministério da Saúde de Gaza.

Militantes do Hamas continuam sendo alvos do exército israelense, mas a grande maioria das vítimas são civis, como o fotógrafo Mahmud Wadi, morto nesta terça-feira em um ataque de drone em Khan Younis. Ou os irmãos Fadi e Juma Abu Assi, de 8 e 11 anos, que, segundo sua família, estavam coletando lenha para cozinhar no leste da mesma cidade quando foram atingidos por fogo israelense no último sábado.

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As Forças de Defesa de Israel (IDF) disseram à BBC que atiraram em dois suspeitos que cruzaram a Linha Amarela.

Os irmãos Fadi e Juma Abu Assi, de 8 e 10 anos, estavam procurando lenha quando foram surpreendidos por um incêndio provocado por israelenses, segundo a família
Foto: Anadolu via Getty Images / BBC News Brasil

Essa demarcação, que delimita o território para o qual Israel concordou em se retirar após o cessar-fogo, não é clara para muitos palestinos, às vezes com consequências fatais.

Mas as mortes não ocorreram apenas nas proximidades da Linha Amarela. Israel realizou bombardeios em áreas densamente povoadas de Gaza em resposta, segundo as Forças de Defesa de Israel (IDF), a ataques do Hamas.

Em um desses ataques, na noite de 28 de outubro, 104 palestinos foram mortos em uma onda de bombardeios na Cidade de Gaza, Beit Lahia, Bureij, Nuseirat e Khan Younis, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza. Israel alegou ter agido contra "dezenas de alvos terroristas".

Tanto as IDF quanto o Hamas se acusaram repetidamente de violar o cessar-fogo.

Em 21 de novembro, o porta-voz do UNICEF, Ricardo Pires, observou que, desde o cessar-fogo, uma média de duas crianças morrem todos os dias em Gaza.

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"Esses não são apenas números. Cada um deles era uma criança com uma família, um sonho, uma vida repetidamente interrompida pela violência constante", disse Pires aos repórteres.

O que aconteceu com a ajuda humanitária?

O rigoroso bloqueio imposto por Israel a Gaza durante meses antes do cessar-fogo, impedindo a chegada de ajuda humanitária à Faixa, causou uma fome que matou mais de 200 pessoas, segundo a própria ONU.

O acordo de cessar-fogo firmado entre Israel e o Hamas estipulava que 600 caminhões com ajuda humanitária deveriam entrar diariamente na Faixa de Gaza para atender às necessidades básicas de seus 2,1 milhões de habitantes.

No entanto, embora Israel tenha flexibilizado os controles e permitido a entrada de ajuda desde 10 de outubro, os níveis necessários não foram atingidos, de acordo com a ONU.

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O acesso humanitário permanece altamente restrito, como relatou recentemente um grupo de especialistas da ONU, em parte porque apenas duas das seis passagens de fronteira foram reabertas.

"O volume de caminhões com ajuda que entram em Gaza nunca atingiu a meta acordada de 600 por dia e, frequentemente, foi inferior à metade desse número", afirmaram os especialistas, incluindo Francesca Albanese, Relatora Especial da ONU para os Territórios Palestinos.

A Anistia Internacional também denunciou Israel por continuar bloqueando "a entrada de equipamentos e materiais necessários para reparar infraestruturas vitais e remover munições não detonadas, entulho contaminado e esgoto", afirmou a organização recentemente em um comunicado à imprensa.

Israel afirma que, desde o início do cessar-fogo, uma média de 600 a 800 caminhões por dia entraram em Gaza transportando alimentos, suprimentos para abrigos e equipamentos médicos, de acordo com o Coordenador das Atividades Governamentais nos Territórios (COGAT). Segundo o COGAT, 41% desses caminhões são destinados ao setor privado.

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De acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, embora a frequência com que os habitantes de Gaza se alimentam tenha melhorado na maioria das famílias, "o consumo de alimentos permanece bem abaixo dos níveis pré-conflito", e a dieta é baseada principalmente em cereais, leguminosas e quantidades moderadas de laticínios e óleo, com acesso muito limitado a alimentos nutritivos, como carne, vegetais e frutas.

A cozinha de Anera em al-Zuwayda é uma das mais de 35 em Gaza que fornecem 210 mil refeições quentes por dia
Foto: BBC News Brasil

Como Sami Matar, da ONG Anera, que administra uma cozinha comunitária em Gaza, disse à BBC: "Somos obrigados a cozinhar basicamente três tipos de refeições por semana: arroz, macarrão e lentilhas. (...) Precisamos de mais variedade na alimentação para garantir vegetais frescos e proteínas essenciais, como carne e frango."

Esses produtos, segundo ele, "não podem entrar em Gaza para serem distribuídos como ajuda humanitária" e só são importados por vendedores locais, embora muitos habitantes de Gaza não tenham condições de comprá-los.

A controversa Fundação Humanitária de Gaza (GHF), criada pelos EUA e Israel para contornar o sistema tradicional de ajuda da ONU, encerrou suas atividades em Gaza seis meses após o seu lançamento. Centenas de pessoas foram mortas por disparos israelenses durante as caóticas entregas de caixas de ajuda humanitária.

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Onde está o exército israelense?

O acordo de cessar-fogo estipulava que o exército israelense se retiraria de Gaza "com base em padrões, marcos e cronogramas" a serem acordados por todas as partes.

Um mapa divulgado pela Casa Branca na época mostrava as três etapas propostas para a retirada das tropas israelenses. Na primeira fase, a única acordada até o momento, 53% de Gaza — toda a faixa ao longo da fronteira com Israel — permaneceria sob controle israelense.

Nas fases subsequentes, esse território seria reduzido para 40% na segunda etapa e para 15% na etapa final, uma espécie de "perímetro de segurança" que "permaneceria até que Gaza esteja adequadamente protegida contra qualquer ressurgimento da ameaça terrorista".

Atualmente, as Forças de Defesa de Israel permanecem atrás do que é conhecido como Linha Amarela, em um território que, segundo uma investigação da BBC Verify que analisou vídeos e imagens de satélite, é maior do que o estipulado no acordo com o Hamas.

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Em alguns locais, os marcos colocados pelas tropas israelenses para delimitar a divisão estavam centenas de metros mais adentro da Faixa de Gaza do que o esperado com base na linha de retirada.

Nesse território, Israel também destruiu bairros inteiros em demolições aparentemente deliberadas. De acordo com uma análise da BBC Verify, pelo menos 1.500 edifícios foram demolidos no primeiro mês após o cessar-fogo.

Israel argumenta que essas demolições não violam o acordo, já que, segundo os termos do cessar-fogo, "toda a infraestrutura terrorista, incluindo túneis, deve ser desmantelada em Gaza. Israel está agindo em resposta a ameaças, violações e infraestrutura terrorista", afirmou um porta-voz das Forças de Defesa de Israel.

Mas alguns analistas e especialistas em direito internacional acreditam que essas demolições podem estar violando as leis da guerra, que proíbem a destruição de propriedade civil por uma potência ocupante, além de colocar em risco o acordo de cessar-fogo.

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Mais de 90% da população de Gaza foi deslocada durante os dois anos de conflito, e a maioria continua vivendo em tendas improvisadas.

Muitos não podem retornar às suas casas porque elas não existem mais. De acordo com dados da ONU, 80% dos edifícios na Faixa de Gaza foram destruídos. Na Cidade de Gaza, o principal centro urbano do território, esse número sobe para 92%.

Proliferação de grupos armados rivais ao Hamas

Nos últimos meses, e especialmente desde o início do cessar-fogo, várias facções armadas opostas ao Hamas proliferaram na Faixa de Gaza.

Entre elas, estão grupos baseados em clãs familiares, gangues criminosas e novas milícias, algumas das quais apoiadas por Israel, como o próprio primeiro-ministro Benjamin Netanyahu admitiu.

O Hamas não parece disposto a abrir mão do controle da Faixa de Gaza e, nas semanas que se seguiram ao cessar-fogo, vídeos surgiram nas redes sociais mostrando seus militantes espancando ou executando membros de grupos rivais em plena luz do dia, acusando-os de colaborar com Israel.

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Esses novos grupos operam, cada um em sua própria porção de território, dentro da Linha Amarela, a parte da Faixa de Gaza ainda controlada pelo exército israelense.

Um exemplo são as Forças Populares, o grupo liderado por Yasser Abu Shabab na região de Rafah, que foi acusado de saquear caminhões com ajuda humanitária enviada a Gaza durante a guerra. Ou as Forças de Ataque Antiterrorista, lideradas por Hossam al-Astal na área ao redor de Khan Younis. Outro grupo é o Exército Popular - Forças do Norte, liderado por Ashraf al-Mansi, que opera no norte da Faixa de Gaza.

Uma das maiores milícias, as Forças Populares, opera perto da cidade de Rafah, no sul do país
Foto: Yasser Abu Shabab/Facebook / BBC News Brasil

Alguns desses grupos têm como objetivo participar da futura força policial de Gaza e afirmam, embora não haja confirmação, que atuam em coordenação com o Conselho de Paz, o órgão internacional que administrará Gaza sob o plano do presidente americano Donald Trump.

A presença desses grupos está gerando suspeitas entre parte da população de Gaza e a Autoridade Palestina, que desconfiam do apoio que Israel parece estar fornecendo a alguns deles.

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"Israel poderia exigir a integração dessas milícias, devido às suas próprias considerações políticas e de segurança específicas", disse o general Anwar Rajab, porta-voz das forças de segurança da Autoridade Palestina, à correspondente da BBC no Oriente Médio, Lucy Williamson.

Mas as exigências de Israel, continuou ele, "não beneficiam necessariamente os palestinos. Israel quer continuar impondo seu controle, de uma forma ou de outra, na Faixa de Gaza."

Devolução dos corpos dos reféns e dos palestinos

No acordo de cessar-fogo, o Hamas prometeu devolver os 20 reféns israelenses vivos e os corpos dos 28 reféns ainda mantidos em Gaza em 72 horas.

De acordo com os termos do acordo, Israel deveria devolver 15 corpos de palestinos sob sua custódia para cada refém morto pelo Hamas.

Todos os reféns vivos foram libertados em 13 de outubro em troca de 250 prisioneiros palestinos e 1.718 detidos de Gaza.

Até o momento, os restos mortais de 27 reféns foram entregues: 23 israelenses, além de dois tailandeses, um nepalês e um tanzaniano.

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Em contrapartida, Israel devolveu os corpos de 345 palestinos mortos durante a guerra. A maioria não foi identificada e não se sabe ao certo se morreram em Gaza ou sob custódia israelense. Alguns apresentam sinais de tortura, segundo os médicos que os examinaram. Israel acusou o Hamas de atrasar deliberadamente a recuperação dos corpos dos reféns, enquanto o Hamas insiste que está tendo dificuldades para encontrá-los sob os escombros.

O progresso lento significa que não houve avanços na segunda fase do plano de paz de Donald Trump para Gaza. Isso inclui planos para a governança de Gaza, a retirada das tropas israelenses, o desarmamento do Hamas e a reconstrução.

O Hamas fez 251 reféns em 7 de outubro de 2013, quando lançou um ataque surpresa ao sul de Israel que matou mais de 1.200 pessoas — a maioria civis — e desencadeou uma resposta militar sem precedentes do exército israelense em Gaza.

A família de reféns como Tal Haimi, cujo corpo estava em poder do Hamas, finalmente pôde enterrá-lo depois que o acordo de cessar-fogo facilitou a troca dos mortos
Foto: Alexi Rosenfeld/Getty Images / BBC News Brasil

Em que ponto se encontra a negociação da segunda fase do plano de paz?

O fim das hostilidades, o retorno dos reféns, a retirada do exército israelense de áreas da Faixa de Gaza e a entrada de ajuda humanitária fazem parte da primeira fase do que ficou conhecido como o plano de paz de 20 pontos de Trump para Gaza.

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Uma vez alcançada essa fase, as partes devem avançar para as etapas seguintes, que incluem o envio de uma Força Internacional de Estabilização (FIE) e, no futuro, um possível caminho para o estabelecimento de um Estado palestino, algo que o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, rejeitou.

Em 17 de novembro, o plano apresentado pelos Estados Unidos recebeu o apoio do Conselho de Segurança da ONU, o que permitiria avançar do cessar-fogo para a reconstrução da Faixa de Gaza.

A resolução prevê a criação de um "Conselho de Paz" que supervisionaria a governança de um comitê palestino tecnocrático e apolítico e monitoraria a reconstrução de Gaza e a entrega de ajuda humanitária, embora não especifique quem faria parte desse conselho. Neste momento, também não está claro quais países contribuirão com tropas para essas forças de estabilização, nem qual será o papel da Autoridade Palestina em Gaza, visto que o plano prevê uma profunda reforma da Autoridade.

O plano também prevê a desmilitarização do Hamas e de outros grupos na Faixa de Gaza, algo que a milícia islâmica se recusa a fazer.

De acordo com a resolução, a força de estabilização colaborará com Israel e Egito, juntamente com uma força policial palestina recém-treinada e cuidadosamente selecionada, para ajudar a proteger as áreas de fronteira e garantir o desarmamento contínuo de grupos armados não estatais, incluindo o Hamas.

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A incerteza em torno de todas essas questões paralisou o início da segunda fase do plano de paz, para a qual ainda não foi definida uma data.

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