Guerra na Ucrânia: invasão russa aumenta chance de China atacar Taiwan?

Para analistas ouvidos pela BBC News Brasil, as peças movimentadas por Vladimir Putin no tabuleiro de xadrez global tornam mais distantes o velho sonho chinês de 'reanexar' a ilha.

1 mar 2022 - 12h07
(atualizado às 12h41)
Quais as chances de a China buscar conquistar Taiwan de volta?
Quais as chances de a China buscar conquistar Taiwan de volta?
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Pelo cenário atual, analistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que não, que na verdade as peças movimentadas por Vladimir Putin nesse tabuleiro de xadrez global tornam mais distantes o velho sonho chinês de "reanexar" ilha que se proclamou república independente em 1911 e se estabeleceu como uma democracia.

A possibilidade de invasão chinesa tem sido levantada nos últimos dias, principalmente pelo fato de que a China é aliada histórica de Putin. Mas será que esse arroubo bélico da Rússia contra a Ucrânia pode servir de exemplo para o governo chinês?

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"O episódio da invasão da Ucrânia pela Rússia nos últimos dias suscita importantes reflexões acerca da possibilidade de que a China faça o mesmo com Taiwan num futuro próximo. Um dos principais objetivos internacionais da República Popular da China é retomar o controle da ilha de Formosa, Taiwan, que juntamente com Hong Kong e Macau, Pequim considera parte indissociável do seu território", comenta o jurista e cientista político Enrique Carlos Natalino, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

Em sua avaliação, o principal, porém, está nas relações internacionais.

"Embora a Rússia e China sejam potências mundiais, não estão isentas de elevados custos políticos e econômicos embutidos na agressão a territórios vizinhos. Nesse sentido, creio que as reações globais contra a Rússia, especialmente no estabelecimento de sanções no campo econômico, demonstram que os custos de uma possível invasão de Taiwan não seriam desprezíveis para a China e para o mundo", pondera Natalino.

Ele também ressalta que "a economia de Taiwan é muito maior do que a da Ucrânia" — cerca de cinco vezes maior, sendo Taiwan com PIB estimado em US$ 750 bilhões (metade do brasileiro) e a Ucrânia, em US$ 150 bilhões, segundo dados mais recentes do Banco Mundial e dos governos locais.

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"O país possui ainda laços econômicos muito mais estreitos com o Ocidente, com a China e com o Japão. Embora a história do século 20 demonstre que os laços econômicos e o comércio internacional não sejam suficientes para evitar a ameaça de guerras, Taiwan possui um importante elemento dissuasório que a Ucrânia não possui: o seu imenso parque industrial e a sua inserção internacional como grande fornecedor de semicondutores, inclusive para a China", afirma ele.

Segundo Natalino, uma guerra entre China e Taiwan poderia levar à interrupção brusca desse comércio, com consequências inclusive para a economia chinesa, altamente dependente desses componentes para a sua indústria de alta tecnologia e para as suas exportações.

É o que jornalista Craig Addison chama de "escudo de silício" em seu livro "Escudo de Silício: A Proteção de Taiwan contra Ataque Chinês". Para ele, o preço do impacto da guerra na produção de chips semicondutores seria alto demais para a China a ponto de inviabilizar sua intenção de invadir Taiwan. Um elemento de dissuasão que ele compara ao conceito de MAD (destruição mútua assegurada) entre potências nucleares que teoricamente não se atacam porque se destruiriam.

Para Luís Fernando Baracho, professor direito internacional e de relações internacionais da Universidade São Judas Tadeu e um dos editores do blog Fora da Cadência — sobre política internacional — a crise bélica atual escancara duas situações que precisam ser consideradas na análise da situação chinesa.

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"Primeiro, a relação de médio e longo prazo da parceria sino-russa. Outra questão é o retorno do compartilhamento de interesses, principalmente por parte de Washington, Londres e Bruxelas, com relação à Otan", aponta ele, citando como Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia novamente estão alinhados no fortalecimento da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

No caso da parceria entre Rússia e China, Baracho ressalta que ela é calcada em "interesses desiguais", uma vez que enquanto a China "é maior e tem tecnologia para entregar", a Rússia "é um país com queda constante na população, em um território enorme" e "altamente dependente de commodities que desde 2013 está em processo de deterioração econômica".

E avançar sobre Taiwan teria um custo político muito grande para Pequim, avalia Baracho.

"Desde 1991, Pequim tem a seguinte posição: concordamos em discordar sobre o status da China ao todo como um país", comenta ele. "Mas Taiwan não é Macau, não é Hong Kong."

Ele ressalta que a ilha carrega uma importância econômica única por ser "um grande centro de produção de semicondutores", com "mais de 50% da produção do mundo".

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"Isso é um insumo estratégico para cadeias globais de várias áreas", frisa. "Um ativo em termos de globalização econômica que interessa a todo o mundo."

E se as sanções impostas à Rússia já são enormes, a China pode esperar que algo ainda maior seria imposto a ela, avalia Baracho.

Otan fortalecida

Além disso, Baracho pontua que a atual guerra reavivou o papel da Otan, que nas últimas duas décadas estava em segundo plano na lógica política internacional.

Um ataque à Taiwan "elevaria o papel da Otan na região do Pacífico", o que "não interessaria para a China".

Avançar sobre Taiwan teria um custo político muito grande para Pequim, segundo especialista
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"Japão, Austrália, talvez Nova Zelândia, além de Mongólia, Coreia do Sul e outros mais alinhados à Otan tomariam posições enfáticas com relação a Pequim", acredita.

Um cenário assim deixaria a China, hoje "altamente inserida na economia internacional", em uma "posição de muita debilidade", segundo o analista.

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"A China hoje ganha muito participando do sistema econômico internacional. Ela teria muito a perder se buscasse um exercício exagerado de soberania nacional", diz Baracho.

"Acredito que a China teria a ganhar muito pouco diante do que poderia perder", resume ele.

Coordenador da pós-graduação em relações institucionais e governamentais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília e ex-diretor da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), o cientista político Márcio Coimbra acredita que, apesar de todas as dificuldades inerentes a um processo desses, a China acompanha os desdobramentos da guerra russa pensando em sua situação com Taiwan.

"As forças internacionais podem estar focadas na questão da Ucrânia e a China aproveitar esse corredor de oportunidade", avalia ele.

"Mas é preciso estar ciente que a 'proteção' que os Estados Unidos dá a Taiwan torna essa possibilidade muito difícil, muito mais do que para a Rússia penetrar a Ucrânia."

Proteção internacional

Natalino também ressalta como primordial essa rede de proteção.

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"Ao contrário da Ucrânia, que não possui laços formais militares com os países ocidentais, Taiwan é historicamente assistida pelos Estados Unidos na defesa do seu território. Embora Washington deixado de reconhecer diplomaticamente o governo de Taiwan, mantém relações econômicas intensas com o país", lembra ele.

O professor cita o Ato de Relações com Taiwan, uma lei de 1979, que estabeleceu o compromisso dos Estados Unidos de fornecimento de armamentos ao país, como aviões, navios, mísseis, baterias antiaéreas e tanques.

"Acredito que a China observa com atenção os acontecimentos na Ucrânia e a reação dos países ocidentais à Rússia diante do conflito", prossegue Natalino. 5

"Tanto a Rússia quanto a China são hoje governadas por regimes autocráticos que buscam rever o papel de seus respectivos países na ordem internacional no século 21."

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"Essa atitude se desdobra em uma política externa revisionista que desafia o apoio militar das potências ocidentais a países do Leste Europeu e do Leste Asiático. Os dois países se mostram cada vez mais dispostos a afirmar sua hegemonia nas suas respetivas áreas de influência geopolítica", acrescenta ele.

"Enquanto Vladimir Putin tentar retomar a influência que a Rússia exercia sobre as ex-repúblicas soviéticas do Leste Europeu e do Cáucaso, Xi Jinping almeja consolidar a hegemonia chinesa na região da Ásia-Pacífico, com crescentes investimentos militares no Mar do Sul da China e uma retórica cada vez mais agressiva contra Taiwan."

Além disso, se Putin vem experimentando mais dificuldades do que vislumbrava, o governo chinês pode entender que, no mundo globalizado do século 21, travar uma guerra que pretende conquistar um território é mais complicado na prática.

"Se os russos tivessem vencido essa guerra em dois dias, certamente a China estaria pensando mais seriamente", diz Coimbra.

"Certa vez, na China, eles me disseram que enquanto nós ocidentais não conseguimos planejar os próximos 7 anos, eles têm os próximos 70 anos planejados. Isso significa que eles têm, sim, os planos de invasão a Taiwan muito bem desenhados, em vários cenários, e vão esperar a melhor oportunidade para fazer esse movimento", acredita o cientista político.

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Há uma parceria entre os dois países, mas tal amizade, contudo, parece um pouco distante no atual conflito.

"O que se observa nesta crise da invasão da Ucrânia é que a China tem sido muito cautelosa em demonstrar o seu apoio à Rússia. Ao contrário da Rússia, que se mostra uma potência decadente e altamente vulnerável do ponto de vista econômico, a China vem galgando patamares muito mais elevados na cena internacional nas últimas décadas", explica Natalino.

Ele também reforça que "os custos de uma guerra que oponha" a China aos Estados Unidos, à Europa e ao Japão "podem ser muito maiores do que aqueles envolvidos na Ucrânia".

E isso poderia "mergulhar o mundo numa guerra de dimensões econômicas catastróficas".

"Enfim, as perdas econômicas russas na Guerra da Ucrânia, o desgaste político-diplomático, as baixas militares, as críticas aos ataques a alvos civis e enorme crise humanitária causada na Europa podem sinalizar para Pequim que uma invasão de Taiwan para a anexação à República Popular da China não seria um simples passeio de barco", vaticina Natalino.

Poderio militar chinês é muito superior ao de Taiwan

Seja pelas dificuldades maiores, seja porque uma reação internacional não seria conveniente para os interesses chineses, os discursos até agora procuram tirar qualquer indício de que a China estaria considerando "resolver" a questão taiwanesa.

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Principal parceiro comercial da Rússia, a China vem, por meio de porta-vozes, repetindo nos últimos dias que não interfere e nem incentiva qualquer interferência em questões de outras nações. A China inclusive absteve-se do voto do Conselho de Segurança da ONU que condenaria, na semana passada, a invasão russa da Ucrânia — contrariando as previsões de alguns analistas, que imaginavam que Pequim se posicionaria de modo favorável a Moscou.

Outra pista veio do diplomata chinês Liu Xiamong, voz considerada forte dentro da cúpula do governo chinês. Ele postou em sua conta no Twitter que a China "nunca invadiu outros países", sinalizando que o compromisso de sua nação visa a um caminho de paz (mas de reunificação com Taiwan). Afinal, Taiwan é considerada pela China como uma província rebelde, que será totalmente reintegrada um dia à China, sob a perspectiva de Uma China.

Mas as dificuldades militares também seriam maiores, em um cenário hipotético de guerra. De acordo com dados da organização Stockholm International Peace Research Institute, enquanto a capacidade militar de Taiwan é próxima da capacidade militar da Ucrânia, o orçamento destinado às forças militares chinesas é maior do que o da Rússia.

A diferença do orçamento entre China e Taiwan é de 20 vezes, enquanto a distância entre Rússia e Ucrânia é de aproximadamente 10 vezes. A China só fica atrás dos EUA em gastos militares.

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Segundo levantamento do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês), a China tem um contingente de 965 mil combatentes do Exército e Taiwan, 163 mil. No caso da Força Aérea, a China conta com 395 mil homens e Taiwan, com 35 mil.

Na hipótese de um conflito aberto, uma análise do professor e pesquisador Michael Hunzeker, da George Mason University e do Centro de Estudos de Políticas de Segurança, aponta que Taiwan conseguiria no máximo retardar um ataque chinês, tentando prevenir um desembarque de forças anfíbias em sua costa e contra-atacando com guerrilhas enquanto aguarda uma eventual ajuda estrangeira (dos EUA, basicamente). A ilha de quase 24 milhões de habitantes fica localizada a cerca de 160 km do litoral chinês.

Mas pesa a favor de Taiwan a questão internacional. "Há um cordão de defesa marítimo, com aviação embarcada, com bases em Singapura, Filipinas, Japão, Austrália, Guam, entre outras", explica o analisa Baracho.

Desta forma, ao contrário do caso ucraniano em que a comunidade internacional no começo buscou sanções verbais e financeiras para só agora começar a enviar ajuda bélica, em um caso de guerra sino-taiwanesa é de se esperar uma ação imediata.

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