Brasil e Itália enfrentam desafios comuns no combate à violência contra mulheres

A violência contra as mulheres permanece um dos mais persistentes e alarmantes problemas sociais em diferentes partes do mundo. No Brasil e na Itália, apesar das distâncias geográficas e das diferenças culturais, a realidade apresenta semelhanças preocupantes: números elevados, casos de grande repercussão pública e um sentimento coletivo de urgência na busca por soluções eficazes e proteção das vítimas.

13 dez 2025 - 11h03

Gina Marques, correspondente da RFI em Roma

Da esquerda para a direita: Celeste Leite dos Santos, Iara Bartira da Silva, Mariana Ferrer e Kátia Hermínia Roncada durante evento ocorrido na Biblioteca do Senado, em Roma.
Da esquerda para a direita: Celeste Leite dos Santos, Iara Bartira da Silva, Mariana Ferrer e Kátia Hermínia Roncada durante evento ocorrido na Biblioteca do Senado, em Roma.
Foto: © RFI/Gina Marques / RFI

A Associação de Amizade Itália-Brasil (AAIB) promoveu em Roma, na quinta-feira (11), o debate "Combate à Violência contra a Mulher e Proteção às Vítimas de Crimes". A iniciativa, presidida pelo deputado italiano Fabio Porta, do Partido Democrático (centro-esquerda), ocorreu na Biblioteca do Senado, no centro da capital italiana, durante a visita a Roma da delegação de mulheres brasileiras que compõe o Fórum Internacional sobre os Direitos das Vítimas (Intervid), em turnê institucional europeia.

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"Nós trouxemos do Brasil representantes políticas e empresárias que estão à frente das políticas públicas para as mulheres do Brasil. Promovemos o intercâmbio para criar essa ponte e, com debates, avaliar a possibilidade de mudar a legislação brasileira inspirada na legislação italiana, e vice-versa", conta Iara Bartira da Silva, secretária-geral da AAIB, à RFI.

A iniciativa começou há quatro anos. "É importante, no mundo globalizado, que a troca de experiência em nível europeu e internacional seja valorizada e estimulada, porque o legislador precisa se confrontar e encontrar soluções legislativas e na área da prevenção", salientou o deputado Porta. 

Legislação sobre o feminicídio e o consentimento

"Na Itália, aprovamos a nova lei que aumenta as penas contra o feminicídio. Aprovamos também na Câmara dos Deputados o projeto de lei sobre o consentimento, que prevê a permissão, por parte do parceiro ou da parceira, de um ato sexual, que nunca pode ser feito sem o consentimento", destaca o deputado.

A lei sobre o consentimento "livre e efetivo", sem o qual ocorre a violência sexual, não será aprovada antes de fevereiro de 2026. O projeto de lei, já aprovado por unanimidade em 19 de novembro pela Câmara dos Deputados - em parte graças a um pacto político entre governo e oposição -, foi retido na Comissão de Justiça do Senado, onde estava previsto para ser votado em 25 de novembro, Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres.

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Alguns membros do partido de extrema direita Liga, incluindo o líder, vice-premiê e ministro italiano dos Transportes, Matteo Salvini, apontaram "questões críticas" no texto do projeto de lei, que reformaria o Código Penal. O partido recomenda um estudo mais aprofundado antes da aprovação.

Há duas semanas, o Parlamento italiano aprovou a lei que tipifica feminicídio e endurece penas para crimes de gênero, prevendo até prisão perpétua para os criminosos. Dados do Instituto Nacional de Estatística da Itália (Istat) mostram que, dos 327 homicídios registrados em 2024, 116 vítimas eram mulheres e meninas. Em 92,2% dos casos, os autores eram homens.

Segundo as estatísticas, a cada três dias, uma mulher é assassinada na Itália. O feminicídio é a ponta do iceberg da violência contra a mulher e representa o desfecho mais extremo do problema.

Mulheres brasileiras pedem ajuda

Segundo o cônsul do Brasil na Itália, Luiz César Gasser, diariamente mulheres brasileiras pedem apoio ao consulado por causa da violência. Na área de competência do consulado em Roma, vivem entre 50 mil e 60 mil brasileiros, dos quais 70% são mulheres.

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"Muitas mulheres que procuram o consulado nos reportam casos de violência. Frequentemente lidamos com estas questões e pedidos de ajuda", indicou o cônsul. "Prestamos apoio com uma consultoria psicológica, mas também uma consultoria jurídica, orientando as mulheres a buscar o suporte da própria autoridade italiana. Precisamos trabalhar em conjunto com as autoridades locais", ressaltou.

No Brasil, a Lei do Feminicídio entrou em vigor em 2015. No ano passado, as penas para o crime aumentaram para até 40 anos de reclusão.

No entanto, o número de vítimas no país cresce. De acordo com o Mapa da Segurança Pública de 2025, quatro mulheres são assassinadas por dia no Brasil. O número de feminicídios aumentou 0,69% em relação a 2023. Ao todo, foram 1.459 vítimas em 2024, contra 1.449 em 2023.

O Brasil conta com uma ampla legislação de proteção à mulher. A mais conhecida é a Lei Maria da Penha, que previne e combate a violência doméstica e familiar e prevê medidas protetivas de urgência, como afastamento do agressor, proibição de contato e suporte psicossocial para a vítima.

Vítima humilhada

No entanto, muitas vítimas não denunciam os agressores porque temem represálias durante a denúncia e o processo (corrigida clareza da frase). Fazer a denúncia ainda é um ato de coragem, que pode resultar em graves consequências durante o processo.

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Foi o que ocorreu com a brasileira Mariana Ferrer. Em 2018, ela sofreu um estupro na boate Café de La Musique, em Florianópolis. O advogado do suposto agressor insultou duramente a jovem diante do promotor e do juiz do processo, que não tomaram providências. O caso ganhou tanta repercussão que o Congresso brasileiro criou uma lei de amparo às vítimas de estupro durante os julgamentos. Esta lei, de 2021, recebeu o nome de Lei Mariana Ferrer.

Hoje a jovem tem 28 anos, trabalha como jurista e é assessora da presidência do Superior Tribunal Militar. Ela fundou o Fórum Internacional de Direito das Vítimas (Intervid) e promove diálogo sobre proteção das vítimas.

"A Lei Mariana Ferrer nasce com a intenção de proteger vítimas e testemunhas, ou seja, mulheres e homens, em prol de uma sociedade que não desqualifique mais nenhum tipo de vítima. Nós tivemos de fato essa abrangência para todos os tipos de crimes patrimoniais, sexuais, de violência doméstica e familiar", afirmou Mariana Ferrer à RFI.

"O Intervid propõe ampliar as vozes dos três poderes, de influenciadores, do pessoal da área da moda, da cultura e da educação, para conseguirmos amplificar o direito das vítimas."

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Na prática, esta lei estabelece que durante a apuração e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual é proibida a realização de menções, questionamentos ou de argumentação sobre a vida sexual pregressa da vítima e seu estilo de vida.

Papel da imprensa

Celeste Leite dos Santos, promotora de Justiça e presidente do Instituto Pró-Vítima, alerta para o papel da mídia nestes casos. "Os estudos vitimológicos apontam que existe uma grande influência da mídia na propagação da violência, sobretudo na violência no sentido de vitimização secundária. A pessoa já foi vítima de um crime grave, como um estupro ou uma tentativa de feminicídio, e a imprensa destaca o papel da vítima, dando a impressão de que a vítima é quem está sendo julgada, e não o agressor, que cometeu o crime", explicou. "Precisamos tomar cuidado com a forma como divulgamos as informações para a sociedade."

Outro aspecto importante é a justiça restaurativa para as vítimas de violência sexual. "As pesquisas nos mostram que a justiça restaurativa traz resultados muito benéficos para as vítimas, para que elas possam ter as efetivas condições de cura para as suas dores", frisou Katia Herminia Roncada, juíza federal e membro da Comissão Executiva do Intervid. "É um direito dela. Os traumas de um estupro são muito fortes: podem causar depressão, ansiedade, automutilação, tentativa de suicídio e o próprio suicídio."

A magistrada mencionou o exemplo da escuta qualificada e não invasiva da vítima, que permite que ela retome, aos poucos, a sua vida e possa regressar à sociedade sem medo e, por outro lado, garante que ofensores se autorresponsabilizem e se conscientizem do que fizeram.

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"Demorou, de fato, para eu conseguir me recuperar. Eu ainda não estou 100%, mas eu já melhorei bastante", disse Mariana Ferrer, ao lembrar que, neste 15 de dezembro, completam-se sete anos que ela foi vítima de estupro.

"Foi preciso que eu vivenciasse essa dor toda, que eu chorasse, que eu ficasse restrita às pessoas, que eu ficasse no meu mundo, para que eu pudesse agora renascer e incentivar outras vítimas a fazerem o mesmo. Não é porque eu levei sete anos que outras vítimas precisam levar também", afirmou. "Queremos que, com o nosso Fórum Internacional de Direito das Vítimas, outras vítimas possam se recuperar muito mais rápido do que eu."

A RFI é uma rádio francesa e agência de notícias que transmite para o mundo todo em francês e em outros 15 idiomas.
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